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Uma introdução básica aos três
tipos de Cabalá
A tradução literal da palavra Cabalá é 'aquilo
que é recebido". Para receber, devemos ser receptivos. Devemos
nos abrir, criando um receptáculo para absorver aquilo que desejamos
entender, até nos tornarmos parte da Cabalá. Abrir o ser
para uma realidade mais elevada, visualizar o espírito dentro da
matéria, elevar nossa consciência até o ponto em que
nossa percepção da realidade é completamente mudada,
e o Divino dentro de toda a Criação é revelado.
Falando de forma geral, a Cabalá está dividida em três
categorias: a teórica, que se preocupa basicamente com as dimensões
interiores da realidade; a dos mundos espirituais, almas, anjos e coisas
semelhantes, e a meditativa, na qual a meta é treinar a pessoa
que está estudando para atingir estados meditativos mais elevados
de consciência e talvez, até um estado de profecia através
do emprego dos Nomes Divinos, permutações de letras e assim
por diante. Este último tipo de Cabalá é o mágico,
que se preocupa em alterar e influenciar o curso da natureza.
A grande maioria dos textos mais importantes da Cabalá mágica
jamais foi publicada, talvez por um bom motivo. Além de ser um
assunto altamente complexo para dominar, mesmo quando dominado às
vezes pode ser perigoso. R. Joseph Della Reina (1418-1472) foi um dos
grandes mestres da Cabalá mágica. Conta a lenda que ele
tentou utilizar seus poderes espirituais para trazer a suprema Redenção,
e no processo de fracasso ficou espiritualmente ferido. Alguns dizem que
cometeu suicídio, ao passo que outros afirmam que se transformou
num apóstata. Outros ainda dizem simplesmente que enlouqueceu.
Muitos cabalistas na geração seguinte tomaram suas ações
como uma advertência contra a prática da Cabalá transcendental
avançada e mágica. A partir de então, os elementos
mágicos da Cabalá têm, para todos os fins e propósitos,
se extinguido, e seu conhecimento completamente esquecido.
Qualquer que seja o motivo, a Cabalá meditativa nunca foi uma disciplina
popular. Um dos grandes proponentes da Cabalá meditativa foi Rabino
Abraham Abulafia (1240-1296). A escola mística que ele dirigia
estava basicamente interessada num método para atingir estados
meditativos mais elevados. Ele acreditava que através do seu método
de meditação, a pessoa estava apta a atingir um nível
de profecia.
Ele propunha usar um mantra escrito, querendo dizer que em vez do costumeiro
mantra verbal ou visual, a pessoa deveria escrever uma palavra repetidamente,
muitas vezes, em diversos estilos e configurações. Deveria
tentar alterar a seqüência da palavra e permutar e circundar
as letras da palavra em todas as maneiras possíveis: combinando
e separando as letras, compondo associações completamente
novas de letras, agrupando-as e depois juntando-as com outros grupos,
e assim por diante. Isso era feito até a pessoa atingir um estado
mais elevado de percepção.
Ora, embora Abulafia fosse um escritor prolífico e autor de mais
de quarenta livros durante sua vida, mesmo assim a maioria de suas obras
jamais foi publicada. De fato, mesmo durante sua vida, muitos dos outros
grandes cabalistas se opuseram a ele e aos seus ensinamentos.
Portanto, a Cabalá, na qual a meta era atingir o estado transcendental
de consciência, jamais se tornou importante embora em nível
individual, havia diversos cabalistas, especialmente aqueles da Safed
do século dezesseis, que incorporaram seus ensinamentos como uma
maneira de atingirem estados mais elevados de percepção
e consciência.
O que nos resta é a dimensão teórica da Cabalá.
A vasta maioria da Cabalá que foi e está sendo continuamente
produzida está toda dentro do âmbito teórico. O corpo
principal deste tipo de Cabalá é o sagrado livro Zohar,
uma obra de ensinamentos do místico talmúdico do segundo
século, Rabi
Shimon bar Yochai, que foram transmitidos de geração
em geração até serem publicados no final do Século
Treze pelo cabalista R. Moshe de Leon.
Os três estágios do desenvolvimento da Cabalá teórica
É o aspecto teórico da Cabalá que tem sido desenvolvido
através dos tempos em diversos estágios. Para fins práticos,
a tradição deste estilo de Cabalá pode ser dividido
em três estágios básicos. O primeiro é a era
da publicação do Zohar, com a mística do livro e
a geração seguinte que articulou estes ensinamentos. O segundo
seriam os místicos do Século 16 que viveram na cidade de
Safed. Este período específico da história é
mencionado como a grande Renascença Cabalista. O movimento foi
guiado pelos profundos e sistemáticos ensinamentos de R.
Yitschac Luria (1534-1572). Ultimamente, o terceiro desenvolvimento
da Cabalá foi com o nascimento de R. Yisrael ben Eliezer (1698-1760),
conhecido como Báal
Shem Tov, o Mestre do Bom Nome, fundador do Movimento Chassídico,
que de maneira direta ou indireta tem orientado todos os outros movimentos
até os dias de hoje.
Alguém que tenha tido apenas vislumbres da Cabalá teórica
– o novato – tende a considerá-la um escrito repleto
de fantasia, ocorrências e imagens estranhas, fantásticas
paisagens místicas, aparentemente irracionais, irreais e sem base
na realidade. Ao abrir a obra clássica da Cabalá teórica,
o Zohar, a pessoa se surpreende com a imaginação dos autores,
mas talvez o fascínio termine aí. Para o novato ele se parece
com um livro de fantasia, nada além disso. Um famoso mestre cabalista,
o Tsadic de Zitshav, disse certa vez sobre a Cabalá que estes três
estágios em seu desenvolvimento podem ser relacionados com uma
parábola.
Numa época em que viajar era uma aventura perigosa e árdua
e a maioria da pessoas jamais saíra de sua própria aldeia,
um homem viajou a um país distante. Ao voltar, reuniu o povo de
seu vilarejo e entusiasmado, relatou as aventuras de sua viagem. Falou
sobre uma ave que tinha visto num país distante, cuja aparência
era fantástica. Por exemplo, o pássaro tinha feições
humanas; as pernas eram como as de uma girafa. Os aldeões zombaram
da história, considerando-a pura fantasia.
Inspirado pelas aventuras que ele contou, um aldeão saiu para fazer
a mesma viagem, determinado a ver o mundo por si mesmo. Anos depois retornou
à aldeia, um homem do mundo. Assim como o viajante que tanto o
inspirara, ele reuniu as pessoas do lugar e relatou suas aventuras. Também
falou sobre aquele pássaro fantástico, mas sua descrição
era um pouquinho diferente. A face da ave, disse ele, não era realmente
humana, embora lembrasse bastante um homem, e as pernas eram longas e
finas, definitivamente lembrando uma girafa; no entanto, não eram
realmente pernas de girafa. Ao ouvirem a história deste homem,
os aldeões ficaram divididos. Alguns acreditaram piamente no homem,
cuja história era mais convincente que a do primeiro viajante.
Apesar disso havia muitos cépticos, para quem a história
ainda soava inventada e irreal.
Um dos habitantes da vila estava determinado a pôr um ponto final
no assunto deste pássaro estranho e empreendeu a longa viagem para
vê-lo por si mesmo. Ao voltar, reuniu os moradores locais e triunfante,
declarou: O assunto está resolvido! Abriu uma bolsa grande e dali
retirou a estranha e fantástica ave. Desta vez ninguém duvidou.
Esta parábola se relaciona com os três estágios de
desenvolvimento do âmbito teórico da Cabalá. O autor
do Zohar, a obra magna do pensamento cabalista, Rabi Shimon bar Yochai,
foi o primeiro a descrever a Divina presença e nosso relacionamento
com o Ein Sof. No Zohar, encontramos histórias tão estranhas
e fantásticas, configurações e imagens tão
míticas e místicas, que mal podemos acreditar. No Século
16 em Safed, a cidade dos místicos, a Cabalá começou
a adotar uma forma de análise mais abrangente e detalhada. Os padrões
e os processos de pensamento sistemático começaram a aparecer
na literatura cabalista. Por fim, com o nascimento do Movimento Chassídico,
a Cabalá amadureceu.
O Chassidismo é o movimento místico fundado pelo R. Yisrael
ben Eliezer, o Báal Shem Tov. Ele trouxe a imagem do Criador até
a realidade. Estes conceitos místicos não eram mais irreais
e distanciados, mas se tornaram uma parte concreta da nossa vida diária,
afetando cada faceta da criação. O Céu foi trazido
à Terra.
A jornada cabalista completa um círculo
A opinião das pessoas sobre o propósito da Cabalá
está repleta de equívocos. Um dos mais populares é
que o estudo da Cabalá pretende transformar a pessoa num vidente,
capaz de ter habilidades miraculosas e sobrenaturais. Isso, no entanto,
é equivocado. O supremo propósito no estudo da Cabalá
é a perfeição do Ser. Transformar o Ser num indivíduo
melhor, mais expandido, mais transcendente, mais sintonizado com a essência
e as raízes da própria alma, é isso que a Cabalá
oferece àqueles que realmente desejam recebê-la.
O critério da jornada autêntica e cabalista é aquele
que faz um círculo completo e a pessoa termina voltando ao mundo
do aqui e agora. O Talmud fala dos quatro Sábios que entraram no
pomar celestial e tiveram uma experiência transcendental. Ben Azzai
olhou e morreu. Ben Zoma olhou e ficou transtornado. Em outras palavras,
ficou louco. Acher (o outro, nascido Ben Avuyah) olhou e arrancou suas
plantas, ou seja, transformou-se num herege. Rabi
Akiva entrou e saiu em paz. O pomar representa os reinos
espirituais mais elevados. Rabi Akiva foi o único sábio,
dentre estes quatro, que pôde entrar e sair no pomar místico
sem sofrer danos.
Sendo um homem de grande estatura espiritual, um mestre verdadeiro e equilibrado,
ele percebeu que o objetivo não é se identificar com a luz
e não retornar, como fez Ben Azzai, ou mentalmente, como Ben Zoma.
Também não era sentir alívio pessoal ou êxtase,
mas sim ir e voltar para cá, com a sabedoria adequada para servir
aqui e agora. A jornada deve percorrer um círculo completo no comportamento
do dia-a-dia da pessoa.
Agora, porém, o âmago de toda a Cabalá é o
objetivo distinto de atrair a Luz Infinita da santidade abstrata para
a realidade do dia-a-dia. E os primeiros cabalistas eram conhecidos como
"Homens de labuta" – seus esforços não eram
de natureza física, mas trabalharam durante toda a vida para se
aperfeiçoarem e elevar seu nível de consciência até
o ponto de uma percepção espiritual da realidade. Com a
chegada do Báal Shem Tov, esta noção adquiriu um
significado novo. Com os ensinamentos do Báal Shem Tov, a trilha
tornou-se tão clara a ponto de este refinamento poder ser alcançado.
Conhecer a Cabalá é viver cabalisticamente
A Cabalá é comparada à proverbial "árvore
da vida". É um estudo da vida, e assim como a vida não
pode ser estudada num livro, mas somente através da própria
vida, também o estudo da Cabalá somente é eficaz
quando se pratica os seus ensinamentos em nossa vida diária. A
Cabalá estudada como uma matéria escolar num livro é
como alguém que estuda 'amor', mas jamais o experimenta por si
mesmo.
R. Simchá Bunem de Pshischá, famoso mestre chassídico,
disse certa vez sobre um famoso cabalista que ele não tinha compreensão
sobre a Cabalá. Explicou que embora fosse verdade que ele era versado
na literatura cabalista, não tinha um verdadeiro entendimento.
Para ilustrar o que queria dizer, ofereceu a seguinte metáfora.
Digamos, por exemplo, que uma pessoa deseja se familiarizar com Paris.
Compra um mapa e um guia da cidade e os estuda diligentemente, até
conhecer todos os detalhes e os caminhos da cidade; porém, é
desnecessário dizer que se ele jamais visitar aquela cidade, jamais
saberá realmente como é Paris. O coração e
o pulso de qualquer cidade somente podem ser sentidos quando se vai lá.
Assim também, concluiu Reb Bunem, para entender totalmente a Cabalá,
a pessoa deve vivê-la, e isso aquele cabalista não tinha
feito.
O refinamento do caráter
É preciso apenas um breve vislumbre da obra dos grandes mestres
da Cabalá teórica para perceber que a grande maioria dos
textos não tratam de transformação do caráter.
Embora seja verdade que a literatura mística cabalista seja voltada
ao ato de relacionar o teórico com a vida diária, a Cabalá
em si parece não se importar tanto com a pessoa. Ao contrário,
parece estar interessada em explicar as esferas celestiais, anjos, almas
e 'coisas' deste tipo, não como o indivíduo pode vencer
o comportamento negativo.
No entanto, isso não implica que a Cabalá não esteja
interessada na pessoa em si. Ao contrário! Na verdade, há
incontáveis declarações em todas as obras da Cabalá
sobre a negatividade dos maus traços de caráter, como raiva,
preguiça, depressão, e outros. A condenação
mais severa da depressão, fúria e outras emoções
prejudiciais são encontradas nas obras da Cabalá. Porém
o método cabalista de refinamento de caráter é uma
abordagem bem diferente daquela que estamos acostumados a encontrar. Não
é uma batalha que combate a negatividade em seu próprio
campo, e também não se trata de superar o negativo com o
positivo. Sua abordagem é vir de outro ponto de vantagem e ver
as coisas sob outras perspectiva.
O objetivo fundamental do pensamento místico é fazer a pessoa
entender que não há nada além do Infinito. Ao ler
as várias configurações, mapas e diagramas que a
Cabalá apresenta, a pessoa desperta à conscientização
de que tudo que realmente existe é o Ein Sof. Há uma sensação
que deve ser despertada quando penetramos nas verdades da Cabalá,
e esta é a sensação de que o mundo como temos a tendência
de percebê-lo, separado, independente de um criador, é apenas
uma ilusão, e na realidade não há nada que não
seja a luz infinita. Tendo esta noção em mente, consciente
ou subconscientemente, estamos aptos a conquistar todas as nossas emoções
e traços negativos.
O ego: o falso senso do ser como fonte de todas as emoções
negativas
Rabi Eliyahu ben Moshe di Vidas, um cabalista do Século 16, declara
que há três traços negativos básicos, que podem
ser considerados "os traços principais'" a partir dos
quais ocorre toda dissensão. São eles: arrogância,
teimosia e fúria, dos quais todos alegam originar-se na mesma fonte,
ou seja, o ego. O ego é a fonte a partir da qual brota toda a negatividade.
O âmago de toda a corrupção é aquele falso
senso de ser/ego, que vive num estado incessante daquilo que pensa que
irá causar a sua sobrevivência.
É o ego que faz surgir todas as emoções negativas.
Por exemplo, quando uma pessoa fica furiosa, é a maneira do ego
de demonstrar sua objeção porque não está
feliz. O ego, quando sente que está ameaçado, é aquele
que protesta: 'como você pode fazer isso comigo' – o que desperta
a raiva. O medo da aniquilação é a constante condição
do ego. A raiva é apenas uma manifestação da preocupação
da pessoa com sua presunção imaginária de sobrevivência.
O total envolvimento com o "eu" ilusório é a raiz
de todas as emoções negativas.
Ao superar este falso senso de ser, que brota da falsa estimativa de sobrevivência
da pessoa, as emoções negativas são dominadas. Por
meio do estudo da Cabalá, chegamos à percepção
de que o falso senso de ser/ego é apenas um disfarce de nossa real
dinâmica interior, nossa alma transcendente. A sensação
que temos quando contemplamos a Cabalá é que tudo existe
é Ein Sof. Procuramos sentir isso num nível cósmico,
e então entendê-lo em nosso próprio nível.
Conseqüentemente, a ilusão de separação/ego
e, como resultado, a preservação dessa miragem começará
lentamente a desaparecer, e com ela desaparecerão as emoções
negativas que são a manifestação do ego.
Em vez de ver o ego como um inimigo real que precisa entrar na batalha
para ser superado, começamos a perceber que não há
nada além da Luz, e tudo o mais é simplesmente uma ocultação
daquela verdade. Esta é a abordagem cabalista para a auto-perfeição.
Não lida com o ataque negativo, de maneira alguma. Ao contrário,
busca a fonte de todos os problemas, o Eu/ego, e por extensão,
toda a realidade física, e demonstra como, de fato, estas realidades
aparentemente independentes não passam de uma camuflagem. Ao perceber
isso, nossa negatividade é dominada com mais facilidade.
Sobre o autor:
Rabino DovBer Pinson é um renomado estudioso, pensador
e escritor de assuntos espirituais. Entre suas obras publicadas estão
" Reencarnação e judaísmo" e "Em direção
ao infinito: o caminho da meditação cabalística".
Dirige o Instituto Iyyu, um centro judaico em Brownstone Brooklyn.
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