Efeitos especiais
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"Não matarás. Não roubarás. Não cobiçarás a mulher do próximo. Não trabalharás no Shabat. Não comerás porco. Não atrelarás teu boi quando debulhar…"

Por que há tantas negativas num corpo da lei que descreve-se como "Seus caminhos são caminhos de prazer e todas suas trilhas são paz"? Atinge-se realmente alguma coisa com todas estas negativas?

"E todo o povo viu os sons e as chamas e a montanha fumegando; a nação viu e estremeceu, e ficou distante." (Shemot 20:15).

"Rabi Ishmael disse: Eles viram o que é visto e escutaram o que é escutado. Rabi Akiva diz: "Eles viram o que é escutado e escutaram o que é visto." (Midrash Mechilta em versos).

Há trinta e três séculos, toda a nação judaica – aproximadamente três milhões de homens, mulheres e crianças – e as almas de todos os judeus ainda por nascer, testemunharam a revelação de D’us no Monte Sinai. Dois dos presentes, os sábios talmúdicos Rabi Akiva e Rabi Ishmael (os quais viveram suas vidas físicas no segundo século EC) ofereceram uma narrativa de certa forma diferente daquela experiência.

Uma diferença entre eles diz respeito ao modo pelo qual a revelação no Sinai foi percebida pelos nossos sentidos. Após recontar os Dez Mandamentos, a Torá relata: "E todo o povo viu os sons e as chamas e a montanha fumegando; a nação viu e estremeceu, e ficou distante."
Qual o significado de "eles viram os sons"?

Segundo Rabi Akiva, a maneira pela qual percebemos as visões e sons do Sinai foi radicalmente diferente do modo pelo qual tais estímulos são geralmente assimilados. Nossos sentidos da visão e audição trocaram seu papel – "vimos o que normalmente é ouvido, e ouvimos o que é normalmente visto."

Não foi assim, diz Rabi Ishmael. No Sinai, vivenciamos a mais grandiosa revelação Divina de todos os tempos, da mesma maneira pela qual um homem comum se relaciona com a realidade: "vimos o que é visto e ouvimos o que é ouvido." A palavra "vimos" no versículo refere-se às "chamas" e à "montanha fumegante", mencionadas mais tarde na sentença.

A respeito da descrição de Rabi Akiva de uma extraordinária transmutação de nossos sentidos, podemos apenas dizer: Espantoso, mas por que? Sabemos que, via de regra, o Criador é pouco inclinado a modificar a ordem natural das coisas: milagres são raros, e acontecem apenas para atingir um fim específico. Como Rabi Akiva explicaria o objetivo de um fato tão perturbador da natureza? De acordo com o ponto de vista de Rabi Ishmael, isso levanta a questão sobre o que este versículo está nos dizendo em primeiro lugar. A Torá já descreveu o trovão, o troar do shofar, o raio, o fogo e a fumaça que acompanharam a descida de D’us sobre o Sinai. É necessário dizer que o povo de Israel viu estes sinais e ouviu estes sons?

Duas diferenças

Como meios de percepção, visão e audição diferem de duas maneiras significativas. Visão é uma experiência extremamente "física"; vemos o próprio objeto – sua massa, seus atributos, o simples fato de sua existência. Audição, por outro lado, registra estímulos de natureza mais "metafísica." Vemos uma parede, mas escutamos música, inflexões emocionais, idéias. Isto é ainda mais verdadeiro no que concerne ao outro significado de "ouvir", que é "compreender" (em hebraico, a palavra "shemi’á" significa tanto "audição" como "compreensão"). Escutamos e compreendemos coisas que são etéreas demais para serem capturadas pelos nossos olhos físicos.

Uma outra diferença é a maneira pela qual a visão e a audição nos afetam, até onde vai o efeito que têm sobre nossa mente e coração. A visão é a faculdade que mais nos convence: desde que tenhamos visto algo "com nossos próprios olhos," é praticamente impossível que outras evidências sensoriais ou mesmo provas racionais refutem o que sabemos agora. Por outro lado, audição e compreensão imprimem com muito menor clareza a informação que transmitem. Elas nos convencerão de certas verdades, mas de forma alguma tão inequivocamente como nossos olhos. Aquilo que ouvimos e entendemos são fatos que nos foram "provados"; aquilo que vemos é a realidade.

Esta diferença está refletida também na lei da Torá. O Talmud ordena que um juiz que tenha testemunhado um crime não pode sentar-se ao julgamento deste crime. O Talmud explica: "Como o juiz viu o acusado cometendo o crime, está incapacitado de vê-lo à luz do direito." Pois um juiz deve considerar mais do que apenas se o acusado fez ou não fez – deve também examinar pontos como intenção e culpabilidade. Quando ele meramente extrai das testemunhas que o réu cometeu um ato criminoso – mesmo se estiver convencido de que elas estão dizendo a verdade – ainda pode manter a distância apropriada para considerar objetivamente os outros fatores que podem absolver o acusado da culpa. Mas quando ele mesmo viu o que aconteceu, o fato da ação criminosa do réu é não apenas conhecido mas também real para o juiz, tornando extremamente difícil para ele superar esta realidade inequívoca com considerações lógicas.

Estas duas diferenças entre visão e audição estão conectadas. Somos seres físicos habitando uma realidade física. O físico é real para nós, ao passo que o conceitual e o metafísico são estranhos e insubstanciais. Desta maneira a visão, que percebe objetos físicos, é definida e absoluta, ao passo que os intangíveis percebidos via ouvido e mente são, na maioria, "fatos provados", sempre sujeitos a reavaliação e reconsideração.

Dado ou provado


Conta-se a história do místico que disse ao filósofo: "Sabe a diferença entre você e eu? Você está sempre pensando em D’us, enquanto estou sempre pensando sobre mim mesmo."

O filósofo ficou muito satisfeito com o cumprimento. Mas certo dia teve um lampejo do verdadeiro significado das palavras do sábio. O filósofo está convencido de que ele, o pensador, existe, e não se detém para pensar nisso. Portanto, pondera sobre a existência de D’us: D’us existe? O que é D’us? Como Sua existência nos afeta?

Para o místico, entretanto, D’us é a própria essência da realidade. Mas onde isso nos leva? Que possível legitimidade pode nossa finita e transitória existência ter, dentro da transcendente e penetrante realidade de D’us? A verdade Divina é dada, o místico pondera sua própria realidade subjetiva. Eu existo? Que significado há, se há algum, em minha existência? Por que eu existo?

Isto é o que Rabi Akiva quer dizer quando fala que no Sinai nós "vimos o que é ouvido, e escutamos o que é visto." Normalmente, é nossa existência física que é "vista" e real para nós. É claro que entendemos que tudo isso tem um Criador e um propósito. Há provas disso na majestade e complexidade do Universo; cada pulsar de vida o proclama e cada palpitar da consciência da alma do homem. Mas esta realidade mais elevada é meramente "ouvida" em nosso mundo – deduzida, sentida, mesmo vivenciada – mas jamais percebida com a realidade inequívoca da visão. Para nós, realidade é o físico; tudo o mais é meramente um conceito.
Mas não no Sinai.

No Sinai nossos olhos estavam abertos: "vimos o D’us de Israel." Enxergamos o que é ouvido, o que é normalmente abstrato e "espiritual." E ouvimos o que é visto: nosso mundo formidável, tão real e tangível, subitamente tornou-se um eco distante, um conceito. Se a essência da existência é a infinita e onipresente verdade divina, o que é o nosso mundo? Apenas uma ilusão? Mas não, deve haver um mundo – caso contrário, qual o significado da criação? Da Torá e seus mandamentos? Tudo isso nos diz que nosso mundo existe – prova-nos que o mundo existe.

Caindo na realidade

Rabi Ishmael discorda. Para ele, a revelação no Sinai não veio para virar nossa realidade ao avesso. A função da Torá não é esmagar e negar nosso mundo, mas tornar possível para nós entendê-lo, em seus próprios termos, e desvelar seu potencial de refletir a bondade e a perfeição de seu Criador.

Isto, afirma Rabi Ishmael, é um milagre ainda mais grandioso que, para a realidade material, evaporar o momento em que D’us apresenta a Si mesmo. Esta seria a coisa mais natural e óbvia a acontecer. Mas no Sinai, conquistamos uma façanha ainda maior: caímos na realidade.
Confrontados com a própria essência de D’us. Insistimos em aplicar a revelação à nossa realidade. Nós vimos e ouvimos a Divindade, mas em nossos termos, vendo o que é visto e escutando o que é ouvido. O físico continuou real e o espiritual continuou abstrato, e ambos foram permeados com a visão de sua essência divina e propósito.

Nossa resposta

Um segunda diferença entre as reminiscências de Rabi Akiva e Rabi Ishmael sobre a revelação no Sinai diz respeito à nossa resposta à proclamação de D’us dos Dez Mandamentos. A Torá relata que "D’us falou todas estas palavras para dizer: ‘Eu sou o Senhor teu D’us… não terás outros deuses antes de Mim…’" O Midrash fica perplexo pela Torá ter usado a palavra leimor, "dizer". O que significa que "D’us falou todas estas palavras, para dizer"? Ao longo da Torá, dúzias de leis são precedidas pelas palavras: "E D’us falou a Moshê para dizer…", mas nestes exemplos Moshê está sendo instruído a transmitir aquelas diretivas Divinas ao povo judeu. Obviamente, leimor não pode ser interpretado assim em nosso caso, como todos os judeus tendo estado presentes no Sinai. O Midrash explica: "dizer" significa que o povo judeu respondeu a cada um dos Mandamentos, afirmando seu comprometimento com a sua observância.

O que disseram eles? Segundo Rabi Akiva, "Eles disseram ‘Sim’ a cada um dos mandamentos positivos e ‘Sim’ (i.e., obedeceremos) às proibições." Rabi Ishmael discorda: "Eles disseram ‘Sim’ aos mandamentos positivod e ‘Não’ (i.e., ‘Não obedeceremos’) às proibições.

Mas qual a relevância desta discórdia? Em ambos os casos, nossa resposta foi declarar nossa prontidão para apoiar tanto os mandamentos positivos como os negativos. Que diferença faz se dissemos a palavra ‘Sim’ ou a palavra ‘Não’, se o significado das duas respostas é o mesmo?

O Não positivo

Há duas maneiras de referir-se aos mandamentos Divinos na Torá. Uma abordagem é vê-los através das lentes da experiência humana: exaltar a sabedoria adquirida com o estudo de Torá, a elevação espiritual que se atinge pela prece, a tranqüilidade experimentada no Shabat, o potencial educacional de um sêder de Pêssach, o valor social da caridade. Pelo lado "negativo", pode-se apreciar a importância da mitsvá que proíbe o roubo, a maledicência, a promiscuidade, a comida prejudicial ao corpo e à mente, e assim por diante. De fato, nossos sábios disseram que "As mitsvot foram dadas para o refinamento da humanidade."

Porém, isso é realmente relevante? Afinal, são mandamentos de D’us. Que maiores conquistas pode haver que as de cumprir Sua vontade? Vistas desta perspectiva, todas as mitsvot são iguais, pois tudo o mais empalidece até a insignificância perante fato tão monumental. Nas palavras de Rabi Schneur Zalman de Liadi, "Tivéssemos nós sido ordenados a cortar lenha, esta seria não menos mitsvá que o mais esclarecedor, completo e refinador de caráter dos mandamentos de D’us."

Esta é a razão de Rabi Akiva sustentar que respondemos "Sim" aos mandamentos positivos e "Sim" às proibições. No Sinai, Rabi Akiva está dizendo, não havia tal coisa de mitsvá "negativa."
De fato, aquele que enxerga a mitsvá em termos de seus efeitos benéficos sobre o homem e a sociedade, distinguirá entre os mandamentos positivos e as proibições. Doar um milhão de reais para caridade é fazer algo. Mas o que se ganha deixando de comer alimentos não-casher? Comer aquele cheeseburger seria prejudicial à nossa saúde espiritual; mas não comê-lo é fazer – nada. Mas no Sinai, disse Rabi Akiva, estávamos além disso. Vimos o que é ouvido e ouvimos o que é visto. O mundo material, com seus "assuntos," obsessões e pretensões de significância, nada era além de uma fantasia da imaginação. A realidade era D’us. Visto deste ponto tão vantajoso, quem pensaria que D’us expressou vontade em termos de utilidade moral e social?

Para aquele que está no Sinai, disse Rabi Akiva, a definição de mitsvá é uma oportunidade para cumprir a vontade de D’us. Tudo o mais é secundário, apenas significando "audível". Quando você doa um milhão para caridade, está fazendo algo: está cumprindo a vontade de D’us. Quando se abstém de comer um alimento proibido, está fazendo algo: está cumprindo a vontade de D’us.
Cada mitsvá é um ato positivo, o mesmo ato positivo, o ato positivo supremo – a implementação de um desejo divino. Cada mitsvá traz à tona a mesma resposta positiva: "Sim, obedeceremos."
Rabi Ishmael discorda. Reunidos no Sinai, obviamente sabíamos que o significado definitivo da mitsvá é que ela representa a vontade Divina. Mas a conhecemos como uma verdade sublime, como um conceito que é "ouvido" e entendido, mas permanece além de nosso entendimento tangível. Nossa realidade era a existência física, e o ponto de revelação no Sinai não foi para transformar nossa perspectiva, mas para aperfeiçoar aquela que tínhamos. O que foi real para nós – o que ‘vimos" – foi a maneira pela qual as mitsvot santificam nossa vida diária e criam um mundo que está em paz consigo mesmo e com o seu Criador.

Por isso, há diferenças entre as mitsvot – entre "faça" e "não faça", como convém num mundo polarizado pelo bem e o mal. Há mitsvot com as quais desenvolvemos o positivo em nosso mundo, a aquelas que nos guiam na rejeição do negativo; dissipam a escuridão.

No Sinai, diz Rabi Ishmael, ouvimos o que é ouvido e vimos o que é visto. Na verdade, entendemos que a essência de uma mitsvá vai além de tudo que nosso ser finito e físico possa perceber. Mas nossa primeira e eterna resposta registrada em nossa história aos mandamentos de D’us foi adotá-los como o alicerce de nossas vidas – e é isto que nos leva a comemorar a Festa de Shavuot todos os anos e a Torá como nosso legado em todos os dias de nossa existência.

 
   
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