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  O Judeu Moderno Pode Entrar no Deserto?
  Por Yosef Y. Jacobson – Em algemeiner.com
Baseado numa palestra proferida pelo Rebe, Shabat Bamidbar, 29 de Iyar 5732, 13 de maio de 1972).
 

O Deserto
Qual foi o significado do fato de a Torá ter sido outorgada num deserto estéril, não em terreno civilizado, nem em solo apropriado à vida humana e às bênçãos da natureza? Por que D’us comunicou Seu projeto para a vida e o início de um pacto eterno com o povo judeu na aridez e desolação de um deserto?

1. A Torá foi dada em solo não particularmente pertencente a qualquer povo ou comunidade, para significar que a Torá pertence a toda alma judaica.

2. A Outorga da Torá no deserto representa a verdade de que a Torá não é o produto de uma cultura ou gênero específico. Enriquece todas as culturas, e as transcende.

3. A função da Torá é confrontar e refinar “o deserto estéril” dentro da psique humana e do mundo.

Hea uma quarta dimensão, a mais profunda, articulada pelo Rebe de Lubavitch num pronunciamento pré-Shavuot, há mais de 3 décadas. É uma mensagem que pode ser particularmente relevante para o judeu moderno.

O Judeu Moderno

Um dos erros que um judeu vivendo na era atual tem chance de cometer é que o Judaísmo não faz exigências profundamente existenciais em seus seguidores. O Judaísmo é uma religião para sentir-se bem, e seu objetivo é deixar a pessoa confortável consigo mesma.

Para muitos líderes religiosos e professores hoje em dia, o objetivo fundamental é apresentar uma versão do Judaísmo que se encaixe bem no estado de espírito e padrões de vida de seus constituintes, dando-lhes a certeza de que são pessoas maravilhosas, amadas por D’us e pela humanidade. Muitos rabinos são comprometidos em ensinar um Judaísmo que não abale suas zonas de conforto.

Em muitas maneiras esta se tornou a marca registrada da versão moderna do Judaísmo – projetada para se conformar com os paradigmas da nossa era. “À imagem do judeu moderno, criamos o Judaísmo.”

“Minha meta é estudar e praticar um Judaísmo que não interfira com as minhas conveniências,” disse-me um homem certa vez. “Tenho meu estilo de vida, filosofia, agenda, hábitos, padrões sociais e instintos – estes são o epicentro da minha existência. Enquanto o Judaísmo puder se encaixar nisto, terei lugar para ele e também o apreciarei.”

Mas essa perspectiva pode inspirar um futuro? Este tipo de Judaísmo pode se enraizar nos corações dos jovens? Pode apelar para a dimensão idealista da alma humana, buscando tocar a verdade?

Além disso: se desenvolvermos um Judaísmo apenas para fazer as pessoas se sentirem bem, por que realmente precisamos dele? Por que não inventar o que funciona melhor para nossa vida e ir atrás disso? Terapia, yoga, exercícios, nutrição, esportes, arte, etc. Se o Judaísmo está aqui meramente para alimentar minha identidade pré-definida e satisfazer meus apetites intrínsecos, por que me preocupar com ele?

Um conto sobre duas imagens
Mas suponha que o Judaísmo fosse real – fosse o autêntico projeto para a vida do D’us vivo – então a pergunta não deveria ser “Como encontro um Judaísmo que não me incomode demais”, mas sim – “o que o Judaísmo realmente diz sobre a vida, verdade e identidade humana? O que o Judaísmo acredita sobre amor, intimidade, dinheiro, ética, conforto e responsabilidade? O que a Torá tem a dizer sobre a questão mais importante e os dilemas enfrentados pela mente e pelo coração humano? A questão não deve ser como posso moldar o Judaísmo à minha imagem, mas como posso me moldar à imagem da Torá?

Se a Torá é verdadeira, devo ter a coragem de olhar profundamente minhas noções pré-concebidas, padrões de pensamento e conduta, pronto a descobrir a verdade que pode desafiar-me até a raiz.

É por isso que a Torá foi dada no deserto estéril, longe da civilização. Se a Torá tivesse sido outorgada numa cidade ou num lindo espaço natural, teria, por definição, se conformado com a energia e cultura prevalecentes naquelas áreas específicas. Nas planícies dos grandes rios onde a civilização começou (Tigre, Eufrates e o Nilo), o olho é cativado pelas cenas mutáveis da natureza; nas cidades, o olho é dominado pelas obras do homem – arte e arquitetura. Nestes ambientes, os israelitas conseguiriam apenas absorver uma religião que se adaptasse às suas psiques, padrões, sentidos e sensibilidades, como todas as religiões pagãs da época. Os judeus jamais poderiam sintonizar-se com a palavra de um D’us que transcende a natureza, a psique humana e o universo.

O Sinai desafiou o povo judeu a revisitar toda a existência, a reexaminar vida e história desde seu próprio nucleo; a ver o mundo não sob a perspectiva humana, mas sob a perspectiva do D’us que não pode ser confinado em modalidades humanas. Uma revolução dessa magnitude não pode ocorrer num ambiente povoado, nem sequer num ambiente onde a vida brota e a natureza floresce. Somente no vazio e na desolação do deserto o ego é subordinado à busca pela verdade. Somente no silêncio do deserto uma pessoa pode se despedir de todos os seus paradigmas e permitir que sua alma absorva a transcendência.

Um Povo Ousado
Isso explica um episódio duplamente enigmático ocorrido no Sinai.

A Torá relata que quando Moshê apresentou o pacto perante os israelitas, eles responderam: “Faremos e ouviremos (Shemot 24:7). Essa expressão sempre foi uma fonte de espanto e surpresa para os rabinos e uma refutação do retrato dos judeus como calculistas e auto-protetores. “Faremos e ouviremos” implica um compromisso de observar o pacto antes mesmo de ouvirem os detalhes e entenderem suas ramificações.

O Talmud (Shabat 88b) relata uma história sobre um saduceu que certa vez viu um dos grandes sabios talmúdicos, Rava, tão absorto no estudo que não cuidou de uma ferida na própria mão. O saduceu exclamou: “Vocês, povo ousado! Colocam a boca à frente dos ouvidos [ao dizer “faremos e ouviremos”] e ainda persistem em sua falta de cuidados. Primeiro, deveriam ter ouvido. Se estivesse dentro da sua capacidade, então aceitem. Caso contrário, deveriam tê-lá rejeitado!”

Este argumento tinha lógica. Imagine se alguém lhe oferece a chance de fazer um grande investimento numa empresa em desenvolvimento. Responder “Claro, aqui está o dinheiro, depois ouvirei os detalhes,” é ridículo. Se você não souber o que é esta empresa, por que sujeitar seu dinheiro a uma possível perda? E apesar disso, neste caso, os judeus declararam que estavam prontos a abraçar um pacto que lhes alteraria a vida, antes mesmo de ouvirem todos os detalhes e saberem o que era o Judaísmo! Por quê? Como?

Rava respondeu ao saduceu com essas palavras: “Nós caminhamos com todo o nosso ser.”

O que Rava quis dizer foi: Por definição, um relacionamento com D’us não pode ser criado em nossos termos; deve ser em Seus termos. Se existe algo chamado Verdade, se existe algo chamado Realidade, não podemos definir; ele deve nos definir. Não podemos aceitá-lo sob a condição de que serve aos nossos sentidos e sensibilidades. Pelo contrário, devemos realinhar nossa condição a Ele. Somente num deserto podemos nos abrir àquele tipo de busca e descoberta. Somente num deserto, você pode caminhar até algo com todo o seu ser, pronto a encontrar qualquer coisa. Foi ali que os judeus puderam declarar: “Faremos e ouviremos.”

Uma vez que eles sabiam que D’us estava Se comunicando com eles, eles não queriam adequar religião em sua imaginação; eles não tinham pré-condições para um relacionamento com a verdade.

Este processo deve ocorrer novamente todo ano. Para receber a Torá, devemos ter a coragem de caminhar até um deserto; devemos nos despir de qualquer identidade pré-definida. Precisamos estar prontos a ouvir o som por debaixo dos sons a que estamos acostumados. A Torá não é meramente um documento bonito e difícil repleto de rituais, para satisfazer a nostalgia e a tradição. A Torá exige que nos abramos com todo nosso ser e declaremos: “Faremos e ouviremos!”

 
   
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