Pêssach no Paquistão

   
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Em 1987, Rabi Zalman Gerber, que era então um jovem aluno da yeshivá, foi enviado de improviso ao Paquistão pelo Rebe. Sua tarefa era organizar um sêder para um grupo grande de refugiados judeus que haviam recém-chegado do Irã. Neste Pêssach, no sêder comunal que ele promove todos os anos em Filadélfia, um dos destaques da noite será sua história de um exílio nos dias de hoje, que ele teve o privilégio de assistir há onze anos. Foi uma experiência que ele jamais esqueceu.

A história começa em New York, apenas uns poucos dias antes de Pêssach, quando Rabi Sholom Ber Hecht foi procurado por um dos membros da congregação persa que preside em Queens.

Rabi Hecht relembra: "Ele me disse que um grupo de 150 refugiados judeus iranianos havia acabado de chegar à cidade paquistanesa de Karachi. Estavam esperando para receber alguns documentos de viagem. Naquela época, era quase impossível para cidadãos iranianos receber qualquer visto de saída, a menos que planejassem cruzar a fronteira até o Paquistão. Isso ocorria porque o Paquistão, como o Irã, era um país muçulmano fundamentalista. Estes judeus de alguma forma tinham conseguido autorização para viajar ao Paquistão, e de lá estavam tentando achar uma maneira de chegar ao ocidente.

"Mas enquanto lá estivessem, como fariam para celebrar o sêder? Viviam em condições difíceis, e deixavam seus aposentos somente em caso de necessidade. Mesmo assim, um deles de alguma forma conseguiu fazer contacto com um parente, que por acaso era membro de minha congregação. Ele chamou-me imediatamente e contou-me sobre o apuro em que estavam. Seria possível fazer algo por eles, principalmente porque alguns deles estavam desesperadamente necessitados de tratamento médico, que não podia ser obtido no Paquistão?

"Percebendo como estas pessoas desafortunadas precisavam urgentemente de assistência, perguntei a meu pai, o falecido Rabi Yaakov Yehudah Hecht, o que poderia ser feito. Como ele já havia se envolvido anteriormente no resgate do judaísmo iraniano, tinha uma vasta rede de conexões, e eu estava certo de que teria algumas idéias boas para ajudá-los."

Após ouvir a história do filho, Rabi J.J. Hecht perguntou ao Rebe se deveria envolver-se, e caso a resposta fosse sim, o que deveria fazer.

Logo após todo o incidente, Rabi Hecht disse ao repórter de um jornal: "Escrevi ao Rebe contando tudo, e recebi uma resposta positiva. O Rebe disse que, se possível, eu deveria encontrar alguém familiarizado com os costumes judaico-iranianos, e que deveria pagar pela viagem e pela matsá."

Um voluntário destemido

Não foi tarefa fácil encontrar alguém preparado para fazer esta viagem. Rabi Hecht pediu a dois alunos iranianos da yeshivá, se poderiam cumprir esta shlichut urgente. Infelizmente, um deles precisou cancelar por razões pessoais. O outro estava disposto a viajar ao Paquistão, mas no último minuto tomou-se a decisão de que era perigoso demais enviá-lo nesta missão em especial.
Havia algumas justificativas para os temores de todos. O Paquistão estava na época sob o severo governo islâmico do General Zia, e não possuía mais uma comunidade judaica estabelecida. Se um sheliach (enviado/mensageiro) americano tivesse viajado às claras a Karachi para ajudar os refugiados judeus iranianos, teria havido sérias repercussões, tanto para ele como para os refugiados. O sentimento anti-americano era tão forte naquele país islâmico, que o governo dos Estados Unidos oficialmente desencorajava os cidadãos americanos a viajarem para lá. Outro problema sério era como contrabandear as matsot sem despertar a curiosidade dos oficiais alfandegários. Como todas as bebidas alcoólicas são proibidas pela lei muçulmana, levar vinho estava fora de cogitação.

Por fim Rabi Hecht procurou Zalman Gerber, então aluno regular da yeshivá no "770." Zalman concordou imediatamente, porém insistiu que seus pais não deveriam saber nada a respeito.

Na entrevista mencionada acima, Rabi Hecht relembra: "Chamei imediatamente o Senador Alfonse d'Amato e pedi-lhe que conseguisse toda as autorizações do governo necessárias para viajar ao Paquistão. Não havia tempo a desperdiçar. Como era perigoso para nós usarmos um passaporte americano, conseguimos um "passaporte branco." É um tipo especial de documento de viagem que é válido apenas por uma vez, e é emitido somente em circunstâncias muito especiais. Após uma série de telefonemas entre o Senador e a administração, o passaporte branco foi emitido. Acredite-me, só o fato de conseguir tudo aquilo em tempo foi um grande milagre!

"Tudo isso aconteceu numa quinta-feira. No dia seguinte, o sheliach foi ao Consulado Paquistanês para entrar com um pedido de visto. Ao mesmo tempo, foi advertido pelo Governo Americano de que estava fazendo esta viagem por sua própria conta e risco, e que os Estados Unidos não aceitariam a responsabilidade de protegê-lo.

"Neste ínterim, procurei o Sr. Moshe Chayempour, que havia desempenhado um papel vital no resgate de milhares de crianças judias do Irã, entre 1978 e 1980 [durante e logo após a revolução Islâmica]. Ficou muito feliz em cooperar, e entrou em contacto com um médico judeu que vivia no Paquistão, que concordou em ajudar os refugiados da melhor forma possível.

Naquela sexta-feira, Zalman recebeu sua permissão de entrada no Paquistão. Deixou New York às 23h30m do sábado pela Air France, e após uma breve escala, chegou a Karachi no dia seguinte.

Zalman recorda: "Meu maior problema foi descobrir um modo de levar vinho e matsot comigo para o sêder. Finalmente, decidimos que seria mais seguro transportar suco de uva por não ser alcoólico, e portanto permitido pela lei islâmica. Mesmo assim, ainda me preocupava que pudesse ser confiscado na alfândega. Afinal, se eu perdesse o suco de uvas e as matsot, todos meus esforços teriam sido em vão. Obviamente, teria sido impossível realizar um sêder casher sem eles.

"Naquele país estritamente islâmico, seria aconselhável que eu não mostrasse ostensivamente que era judeu. Rabi Hecht deu-me muitos conselhos sobre como comportar-me enquanto estivesse lá. Disse, por exemplo, para enfiar meus tsitsit dentro das calças e para usar um boné de turista sobre minha kipá. Levar Hagadot através da alfândega poderia também denunciar-me, porque as palavras em hebraico teriam revelado minha identidade judaica. Por isso, fingi ser um negociante de tapetes que estava viajando ao Paquistão para comprar mercadorias, chegando mesmo a levar documentos oficiais para reforçar esta farsa.

"Quando o avião deixou a França após uma breve escala, percebi que a maioria dos passageiros era de muçulmanos. Não aceitei a refeição que me foi oferecida, mas um comissário gentil deu-me uma maçã, que guardei para fazer charoset.

"Toda minha viagem ao Paquistão foi pontilhada por incidentes que me fizeram sentir que estava sendo protegido pelo mérito da bênção do Rebe."

Mantendo o sangue frio em Karachi


Quinze horas após deixar o Aeroporto Kennedy, Zalman aterrissou em Karachi. Suas mãos tremiam ao colocar sua bagagem na mesa da alfândega.

"Tem alguma coisa a declarar?" perguntou o agente.

"Não," respondeu Zalman. O agente olhou para ele com curiosidade e pediu-lhe para abrir as malas.

"Eu estava apavorado," relembra Zalman. "O propósito de toda a viagem estava para ser derrotado?" O funcionário pegou uma caixa de matsá. Percebendo as letras hebraicas sobre ela, abriu-a imediatamente, deu uma espiada dentro e fechou-a novamente. Colocou-a dentro da mala e acenou-me para passar. Abafei um enorme suspiro de alívio."

Quando Zalman deixou o aeroporto, foi saudado por visões e sons que não eram familiares a seus olhos acostumados com o ocidente. As ruas movimentadas estavam repletas de pessoas, cavalos, burros e veículos pitorescos. Os mendigos na calçada chegavam a assustar, e a pobreza clamava por todos os lados. Zalman imediatamente sentiu que estava num país islâmico. Não era um sentimento agradável. Para ele, a cultura e o idioma ao seu redor eram totalmente estranhos. Os homens usavam caftãs, enquanto as mulheres escondiam-se atrás de seus véus.

Não passou muito tempo observando o cenário. Deveria esperar pelo médico judeu no aeroporto, mas não via ninguém que se ajustasse à descrição. O tempo passava, e o médico não aparecia. Como já estava se fazendo tarde, achou um táxi e pediu ao motorista que o levasse a um hotel respeitável. Em poucos minutos, estava no Sheraton Karachi.

"Depois descobri que houve uma falha na comunicação," disse Zalman. "O médico simplesmente estivera esperando por mim no local errado. Tão logo deixei meus pertences no quarto do hotel, saí para encontrar os refugiados iranianos. Em New York, haviam me dado o nome do hotel e o número do quarto onde eles estavam. Peguei um táxi para este novo endereço.

"Era um edifício velho e dilapidado. Cento e cinqüenta refugiados judeus apinhavam-se em condições esquálidas. Em alguns casos, sete pessoas estavam dormindo em um quarto que podia acomodar apenas duas. Estavam lá para não chamar a atenção sobre si mesmos, pois estavam com medo que pudessem ser deportados para o Irã. Por este motivo, quase nunca deixavam o prédio.

"Os refugiados deram-me uma calorosa recepção. Como eu não falava farsi, o médico judeu a quem eu deveria ter encontrado no aeroporto serviu de intérprete durante minha visita. Os refugiados estavam muito felizes ao ver um judeu que não raspava a barba e ainda cobria a cabeça. Observando o grupo à minha volta, percebi que a metade deles era de famílias com crianças, enquanto que o restante eram homens jovens que haviam fugido do Irã para evitar o recrutamento.
"Naquele mesmo dia fui até o mercado para comprar maçãs e ovos para o sêder. Quando voltei a meu hotel, percebi que tinha um pequeno problema. Recebera um quarto no oitavo andar. Em Yom Tov não poderia fazer uso do elevador, mas se ficasse subindo e descendo oito lances de escadas, provavelmente levantaria suspeitas, exatamente o que não desejava. Resolvi este problema solicitando um quarto no primeiro andar, sob a alegação de que queria ficar perto de um cliente com problemas físicos, alojado no mesmo pavimento.

Sussurrando a Hagadá

"Na noite de segunda-feira fizemos o primeiro sêder. Jamais havia visto algo assim em toda minha vida. Como era muito perigoso ter um sêder grande para todos, dividimo-nos em grupos. Conduzi um sêder para cinquenta homens jovens. A princípio, sentimo-nos muito temerosos de ser apanhados, e muito poucos ousaram erguer a voz. Porém com o passar do tempo todos relaxaram. As faces ansiosas tomaram a liberdade de sorrir, e até mesmo cantamos juntos. Por alguns instantes, sentiram-se realmente libertados de tantos problemas e sofrimento.

"No segundo sêder, todos haviam perdido completamente o medo. Dessa vez, todos cantamos e até apreciamos a noite. Um fato digno de nota é que os membros mais jovens do grupo estavam mais assustados que os homens mais velhos, cuja atitude era: 'Vamos dançar, tudo vai dar certo.'
"O próprio sêder compreendia uma exótica mistura de estilos. Recitei a versão Chabad da Hagadá, e os refugiados contribuíram com seus próprios poemas e canções tradicionais. Uma delas eu aprendi, e gosto de cantá-la mesmo agora, em nosso sêder comunal na Filadélfia. Infelizmente, quando estes judeus deixaram o Irã, a comunidade judaica havia diminuído tanto que a maioria deles tinha pouco conhecimento real da Torá; eram alimentados apenas pelo tênue apego que tinham às memórias das tradições familiares. Porém, mesmo esse pouco era suficiente para fazê-los tão orgulhosos e felizes por participar de um sêder."

Zalman precisava voltar a New York durante Chol HaMoed. Numa despedida triste, os refugiados expressaram sua gratidão por toda a ajuda que lhes dera.

"Minha viagem teve sucesso, afinal," conclui Zalman. "Olhando em retrospecto, aquilo tudo foi um milagre. Eu não falava o idioma local nem podia entender a mentalidade islâmica, mas de alguma forma nosso objetivo foi atingido sem nenhum obstáculo. Credito tudo à força de uma berachá do Rebe. Além disso, tudo não aconteceu em Pêssach, uma época de milagres?

"Todos os anos, gosto de rememorar a história deste êxodo dos tempos modernos. É um relato que meus convidados para o sêder nunca se cansam de ouvir."

Como Rabi Hecht concluiu nesta entrevista:

"Este episódio merece ser registrado na história judaica como o milagre de Pêssach de 1987. O Rebe se preocupava com cada judeu, não importa quão distante ou isolado esteja. Como já vimos, o Rebe não se intimidava por dificuldades aparentes. Enviava um sheliach apenas para levar matsá shemurá a qualquer judeu, para que mesmo esse único judeu também possa ter seu sêder e sentir-se verdadeiramente livre."

       
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