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Uma história
sobre dois pilotos
Certo dia num movimentado aeroporto, os passageiros de uma aeronave comercial
estão sentados, esperando pela tripulação aparecer
para que possam seguir viagem. O piloto e o co-piloto finalmente aparecem
na parte de trás do avião, e começam a andar pelo
centro do corredor até a cabine. Os dois parecem ser cegos.
O piloto está usando uma bengala branca, colidindo com os passageiros
à direita e à esquerda à medida que anda aos tropeços
pelo corredor, e o co-piloto está usando um cão-guia. Os
dois têm os olhos cobertos com enormes óculos escuros. A
princípio os passageiros não reagem, pensando que deve ser
uma espécie de pegadinha. Porém, depois de alguns minutos
os motores começam a acelerar e a aeronave começa a se mover.
Os passageiros se entreolham com algum desconforto, sussurrando entre
eles e olhando em desespero para as comissárias. Então o
avião começa a acelerar rapidamente pela pista e as pessoas
começam a entrar em pânico. Alguns passageiros rezam, e à
medida que o avião chega cada vez mais perto do final da pista,
vão ficando cada vez mais histéricos. Finalmente, quando
a nave tem menos de 6 metros de pista para percorrer, e está para
mergulhar na água, há uma súbita mudança no
tom dos gritos, pois todos gritam ao mesmo tempo, e no último instante
o avião levanta voo e sobe no ar.
Dentro da cabine, o co-piloto suspira aliviado e volta-se para o piloto:
“Sabe, um dia desses os passageiros não vão gritar,
e aí então vamos cair direto na água e morrer!”
No Pomar:
O Aleijado Guiando o Cego
O Midrash parece intrigado pela declaração na porção
Vayicrá: “Quando um alma (nefesh) peca.” Não
“quando uma pessoa peca”, mas sim “quando uma alma peca.”
É a alma que peca?
Diz o Midrash:
Rabi Yishmael ensinou: isso é comparável a um rei que tem
um pomar de figos selecionados. Ele nomeia dois vigias: um era aleijado,
o outro era cego, confiando a eles seu pomar. Após algum tempo,
o aleijado volta-se para o cego e diz: “Vejo frutas tão deliciosas
nesta vinha!” E o cego responde: “Então vamos comer.”
“Mas posso andar?”
“Mas posso ver?”
Então o aleijado sobe nas costas do cego, e juntos ele alcançam
e comem os frutos, e então voltam às suas posições.
Após algum tempo, o rei entra no pomar. Pergunta a eles: “Onde
estão minhas lindas frutas?”
O cego diz: “Ó rei, eu posso ver? Como posso tê-las
comido?” E o aleijado diz:
“Ó rei, eu posso andar? Como poderia tê-las alcançado?”
O rei era sábio, o que ele fez? Colocou o aleijado sobre as costas
do cego e mandou-os caminhar juntos, dizendo: “Foi assim que vocês
comeram meus figos.”
Da mesma maneira, no dia futuro de prestação de contas,
D'us vai perguntar à alma: “Por que você pecou perante
Mim?” E a alma vai responder: “Mestre do universo! Não
pequei, foi o corpo! Veja! A partir do momento em que me separei dele,
sou como uma ave pura, voando a caminho do céu. Como pequei?”
Então D'us dirá ao corpo: “Por que pecaste perante
Mim?” E o corpo vai responder: “Mestre do universo! Não
pequei, foi a alma! Veja! A partir do momento em que a alma me deixou,
estou sem vida como uma pedra largada sobre a terra! Como posso ter pecado
perante Ti?”
O que D'us faz? Traz a alma, joga-a no corpo, e castiga os dois, como
está escrito: Ele chamará aos céus acima –
esta é a alma – e à terra – este é o
corpo – para julgar Seu povo.
Quem Precisa da Metáfora?
O Midrash está explicando que o pecado somente é possível
através de uma colaboração plena e funcional entre
corpo e alma. O corpo pode fazer as coisas, mas é sem direção;
a alma dá direção mas é distante e “aleijada”
– espiritual e etérea. Juntos, eles podem conseguir as duas
metas: podem transgredir juntos, e podem realizar boas ações
juntos.
Porém essas perguntas devem ser feitas: O objetivo das alegorias
na Torá é esclarecer um conceito que poderia ser difícil.
Porém o ponto neste Midrash parece ser direto e simples: o corpo
por si só é um corpo; a alma por si mesma “sai para
almoçar”. Juntos, eles criam a realidade que chamamos “o
ser humano”. Por que a necessidade da elaborada metáfora
do cego e do aleijado para explicar o conceito?
A verdade é, no entanto, que essa metáfora nos explica não
apenas que corpo e alma precisam um do outro, mas também a própria
natureza do corpo e da alma e por que eles precisam tão desesperadamente
um do outro.
A Capacidade Para a Revolução
O corpo é representado pelo cego. Cegado pela realidade material,
por si mesmo é alheio à existência de D'us. Apega-se
a uma interpretação da existência do tipo “aquilo
que você vê é o que você consegue”; é
incapaz de ver além da perspectiva temporal; é incapaz de
perceber ou identificar a verdade. E o pior tipo de cegueira é
aquela de quem pensa que pode ver.
Porém a alma pode ver. Está consciente no íntimo
das realidades mais elevadas da vida; não é enganada pela
ilusão do materialismo e do consumismo.
Por outro lado, o corpo pode caminhar, enquanto a alma é imóvel.
Este é um dos grandes paradoxos da vida. Como a alma pode ver,
é considerada “aleijada” e imóvel. Face à
dura verdade não há espaço para erros, portanto não
há espaço para decisões. Se não há
tomada de decisões, se não há desafio ou conflito,
então não há crescimento, nenhum movimento real.
A alma, por estar tão intensamente consciente da verdade, e por
ser tão perfeita, está “parada” em sua órbita.
O crescimento depende do catalisador da falha, da imperfeição.
Somente se você é capaz de cair muito baixo é capaz
de subir muito alto.
O corpo, devido à sua cegueira, sabe como caminhar e correr. Nas
palavras do Rei Shelomô: “Voltei e vi sob o sol, que a corrida
não pertence ao rápido, nem a guerra ao poderoso; nem o
sábio tem pão, nem o compreensivo tem riquezas.”
Em sua ignorância, o corpo é susceptível a cair e
subir, a lutar e perseverar, a aprender com seus erros e crescer. E ensina
à alma os segredos do crescimento. Antes disso, estava no piloto
automático, robótico e consistente como os anjos, e portanto
estagnado.
A História de Sam Reshevsky
Samuel Herman (Sammy) Reshevsky (1911-1992) foi um famoso prodígio
do xadrez e mais tarde um Grande Mestre americano do xadrez. Concorreu
no Campeonato Mundial de Xadrez dos anos 1930 até os anos de 1960,
chegando ao terceiro lugar no Campeonato Mundial em 1948, em segundo em
1953. Venceu oito vezes o Campeonato Americano de Xadrez.
Aos seis anos de idade, ele jogava com 30 oponentes ao mesmo tempo, movendo-se
rapidamente de tabuleiro a tabuleiro e podia repetir todos os 30 jogos
depois, movimento por movimento. Era conhecido como “Shmulik der
vunder kind” – Shmuel, o menino prodígio. Era descendente
de Rabi Yonasan Eibshitz, que descendia do grande cabalista, Rabi Isaac
Luria, o Arizal.
Sammy Reshevsky cresceu num lar observante, e no decorrer de sua vida
e fama, continuou fiel ao Judaísmo e Torá, recusando a jogar
xadrez no Shabat e nas Festas. Ao completar 70 anos e não estando
mais no topo de seu jogo, ele perguntou ao Rebe, Rabi Menachem Mendel
Schnnerson, se poderia se aposentar. O Rebe aconselhou-o a continuar jogando
porque era um “Kidush Hashem” – uma orgulhosa demonstração
de um judeu sendo bem-sucedido sem comprometer seus ideais e seus valores
espirituais. Reshevsky concordou e pouco depois, viajou à Rússia
e incomodou o campeão mundial, Vassuly Smyslov.
Cá entre nós, um detalhe interessante: em 1984, o Rebe enviou
Sammy Reshevsky à Califórnia para tentar ajudar seu colega
Bobby Fischer a sair de seu famoso isolamento e depressão.
Morando em Crown Heights nos anos de 1940, Sammy rezava na Sinagoga central
Lubavitch no 770 da Eastern Parkway, Brooklyn, NY. Certa vez, numa reunião
de Shabat (farbrenguen, em yiddish) em 1948, o Rebe, em reconhecimento
à sua presença. explicou o significado espiritual por trás
do jogo de xadrez.
O Jogo de Xadrez
Há um rei. Todas as outras peças se movem ao redor dele
e sua missão é proteger e servi-lo. D'us é o Rei,
tudo o mais foi criado por Ele, recebeu a oportunidade de conectar-se
com Sua verdade e de servi-Lo.
A rainha representa a manifestação feminina do divino, conhecido
como a “shechiná”, intimamente envolvida com todo aspecto
da criação, concedendo vitalidade e substância a toda
existência. A rainha é a peça mais praticamente afetiva,
com frequência enviada às linhas de fogo, até mesmo
colocada em perigo. Da mesma forma, D'us arrisca Sua própria dignidade,
por assim dizer, investindo-se em toda criatura e existência, sujeitando-Se
às vicissitudes da condição humana. E há ainda
os bispos, torres e cavalos. São rápidos, livres, não
limitados pelas casas imediatamente ao lado deles; podem “voar”
livremente, sem restrições. Esses simbolizam os anjos –
em suas três categorias místicas que discutimos nos serviços
de prece matinais: serafim, chayos e ofanim, representados pelos bispos,
torres e cavalos.
Para que haja livre arbítrio no mundo, há duas equipes,
a branca e a preta. Uma representa a Divindade e santidade; a outra representa
tudo que é a antítese da Divindade e da santidade. As equipes
se engajam em batalhas ferozes. E para que o confronto seja significativo,
cada equipe contém, pelo menos na superfície, todas as propriedades
contidas na equipe adversária. As duas equipes têm rei, rainha,
bispos, torres e cavalos. Finalmente, há os peões. São
bastante limitados em seus movimentos, movendo-se apenas uma casa por
vez, somente numa única direção, e constantemente
são “abatidos”. Mas… quando eles lutam pelo “tabuleiro”,
chegando ao seu destino, podem ser promovidos até mesmo ao nível
de rainha, algo que o bispo, a torre e o cavalo não podem atingir.
O Peão representa o ser humano vivendo aqui na terra. Nós
seres humanos damos passos muito pequenos, e somos bastante limitados
em todo aspecto da nossa jornada, e do nosso crescimento. Também
cometemos erros constantemente e somos “nocauteados”. Mas
quando o homem persevera e supera a angústia e o desespero das
próprias falhas e mortalidade, quando lutamos para subjugar as
trevas e revelar a presença do “rei” dentro de nossos
corpos, nossas próprias psiques e o mundo ao redor – o ser
humano supera até mesmo os anjos; o peão é transformado
numa rainha! A vida humana se reúne com sua fonte acima, a rainha,
a Shechiná, experimentando a mais profunda intimidade com o próprio
Rei.
Os bispos, torres e cavalos, embora espiritualmente fortes e angélicos,
são previsíveis, e limitados pelo seu papel. Não
há espaço para verdadeira promoção, nenhum
crescimento substantivo, nenhuma progressão radical. Sim, eles
voam em volta, mas somente dentro da própria órbita. Os
anjos no alto, bem como a alma sozinha no alto, antes de entrar no corpo,
são poderosos porém confinados pelo próprio status
espiritual. São as limitações da pessoa humana que
estimulam seu crescimento mais profundo. Os limites da nossa existência
criam fricção, fazendo-nos lutar contra as provações
e desapontamentos da vida.
Abraçando o Casamento Difícil
Portanto corpo e alma podem escolher aceitar sua esquizofrenia natural
como uma vítima, com cada qual culpando o outro pelos seus erros,
fugindo à responsabilidade e ao dever. Ou podem escolher abraçar
os desafios e oportunidades que este conflito existencial traz, levando
a vista, clareza e visão da alma e atrelando-o à mobilidade
e energia do corpo.
Essa, então, é a mensagem por trás da metáfora
do midrash do aleijado e do cego vigiando o pomar do rei. Quando a alma
aleijada lidera o corpo cego, o corpo cego pode elevar a alma aleijada
a alturas inimagináveis. |