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Ao anoitecer da
sexta-feira de minha breve, última visita, fui com Vovô à
sinagoga dar as boas-vindas ao Shabat. Então eu soube que esta
pequena sinagoga, Shtiebel, também, tinha perecido. Fora destruída
durante o último incêndio e agora todos os chassidim de Chabad
remanescentes se encontraram na casa inacabada que pertencia a um dos
fiéis membros, um carpinteiro. Nessa atmosfera de dia da semana
– os andaimes ainda não removidos, pilhas de madeira espalhadas
por toda parte – os próprios congregantes pareciam sobreviventes
de alguma catástrofe. Vovô dominava o ambiente, impressionante
em sua dignidade e rara firmeza de espírito.
Durante
aqueles inflamados momentos de prece, Vovô e eu, seu jovem antagonista,
nos reconciliamos. Até meu último momento me lembrarei de
Vovô de pé perante o quorum, entoando as preces que recepcionam
o Shabat. Ele era magro e alto, e o cinto estreito de sua túnica
de seda preta parecia emprestar ainda mais comprimento à sua imagem.
Todos os seus movimentos eram dirigidos para cima: até sua barba
pontuda parecia levantada. Uma vela ardendo em santidade na véspera
de Yom Kipur – esta era a imagem que ele trazia à mente.
Suas preces eram como um fogo ardente, firme e dominante. Subia das profundezas
de seu coração à fonte de consolo. Meus olhos ansiosos,
com todos aqueles da assembléia, estavam erguidos para ele. E foi
durante aqueles momentos ardentes de prece que Vovô e eu, seu jovem
antagonista, nos reconciliamos. O poder da sua prece, e minha participação
nela, destruíram as diferenças entre nós.
Na verdade, tinha havido uma ocorrência que poderia ter tornado
nossa reconciliação quase impossível. Meus colegas
na cidade souberam da minha visita e da minha próxima aliyá
a Israel, e arranjaram uma reunião pública em minha homenagem.
Meu nome aparecia nos cartazes que eles tinham afixado. A reunião
não pôde ser ocultada de Vovô e seus amigos, e eu estava
com medo que, como resultado disso, minha visita aumentaria ainda mais
o abismo entre nós dois. Mas quando rezamos juntos, o medo se dissipou
e o abismo desapareceu.
Escutando o canto de Vovô, pude ouvir além das palavras seu
profundo lamento sobre o inexorável declínio do mundo precioso
que tinha sido o seu. Ouvi seu sofrimento pelas diferenças que
dividiam os homens, Ouvi sua apaixonada gratidão pela grande alegria
que sentia na proximidade com a fonte de todas as bênçãos;
na eternidade de Israel, inabalada de geração em geração;
e no vínculo – finalmente – entre minha alma e a dele.
Ainda posso ouvir a voz de Vovô cantando para seu Pai no Céu,
na presença de seu neto na terra:
“Santuário do Rei, cidade da soberania, eleve-se, saia das
tuas ruínas.
“Os aflitos do meu povo confiam em Ti – a cidade será
construída sobre seu local antigo.”
E então Vovô entoou o Salmo do Shabat num tom sincero, rítmico,
do mais puro agradecimento:
“Como são grandes as Tuas obras, ó Senhor! Como são
profundos os Teus pensamentos.
“Um homem bruto não sabe; um tolo também não
compreende isto…”
Que sua prece de Shabat era um presente que duraria por toda a minha vida,
isso Vovô não podia saber. E nos últimos instantes
antes que minha carruagem se movesse, ele deu-me mais um presente, totalmente
valioso.
Exceto pelas reuniões com meus colegas, eu tinha passado o Shabat
inteiro e as horas de sua partida no sábado à noite na companhia
de Vovô. Ao que me lembro, falamos muito pouco sobre a família
e de maneira alguma sobre temas controversos. Foi uma discussão
erudita sobre a Torá que nos ocupou, e ficamos ambos felizes por
eu ainda poder ser páreo para ele, embora mais como ouvinte que
como falante. Sempre que ele falava sobre os mistérios do Chassidismo
ou da racionalidade do Talmud, ou mesmo quando ele entoava as melodias
de sua prece perante Seu Criador – parecia-me muito claro que de
certa forma ele estava se dirigindo a mim, na esperança de que
suas palavras, com todas as suas conotações e seu sabor
especial, entrariam no meu coração. E meu coração
estava de fato aberto para recebê-las.
Cedinho na manhã de domingo, quando o cocheiro veio apanhar minha
mala, Vovô vestiu seu casaco de verão, abriu seu guarda-sol,
e caminhou comigo até a saída da cidade.
Enquanto andava, ele disse algo mais ou menos assim:
“Meu filho, você conhece a melodia do ‘Alter Rebe’
[Rabi Shneur Zalman de Liadi, o primeiro Rebe de Chabad] muito bem. Há
algo especial sobre ela, algo que aprendi com os velhos chassidim na casa
do Rebe.
“Às vezes um homem deseja lembrar uma melodia que lhe é
familiar e simplesmente não consegue recordar, por mais que tente.
Por outro lado, há vezes em que uma melodia fica tocando na mente
de um homem e ele não gosta, mas não consegue se livrar
dela. Em ambos os casos é claro que a melodia – por mais
que seja boa – não vem da mesma raiz que a alma do homem.
Ele e a melodia são duas entidades completamente separadas.
“Porém se um homem consegue lembrar a música sempre
que quiser e isso lhe dá prazer, este é um sinal de que
a melodia é realmente dele, derivando da mesma fonte que a alma
do homem.
“A melodia do Alter Rebe está enraizada na alma de todo chassid
de Chabad e seus filhos, e os filhos dos seus filhos, até o fim
das gerações. Se um chassid justo ou qualquer um dos seus
descendentes quer se lembrar dessa melodia sagrada e ela lhe escapa por
mais que tente lembrá-la, isso simplesmente prova que naquela hora
específíca ele se desviou do caminho verdadeiro e deve examinar
sua alma e se arrepender.
“Não pode ser à toa, meu filho, que um chassid esquece
a melodia do Rebe – este valioso presente e pedra fundamental. Não
a perca, meu filho!”
Nossos Sábios disseram que os homens devem dividir-se enquanto
falam sobre a Lei. Vovô fez exatamente isto. Quando ele viu o cocheiro,
apresentou um problema complicado sobre oferendas de frutos da Terra e
resolveu-o referindo-se a uma passagem de Maimônides. Então
ele me beijou na boca e a carruagem começou a mover-se.
Muitos dias tempestuosos se passaram desde então, porém
eu jamais esqueci de Vovô de pé com seu guarda-sol no meio
da estrada ao meio-dia de um dia de julho, em paz com seu neto e antigo
inimigo, seus lábios murmurando a bênção tradicional
da partida, seus olhos úmidos, brilhantes, fixos na carruagem enquanto
esta se movia rudo à Terra pela qual ele e seu povo andavam, a
Terra que certa vez fora dele e de seu neto. Sua radiância permanecerá
em meu coração até sua última batida, e seu
presente maravilhoso, também, está comigo até hoje.
Em todas as perplexidades da minha vida, sempre que tento me lembrar da
melodia do Alter Rebe, ela aparece. Tenho sentido novas forças
dentro de mim, uma prova de que minha direção está
correta. Todo o desespero vencido, sigo meu caminho com esperança
e paz interior. |