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Era
o final da tarde de Shabat, aquele momento mágico entre o crepúsculo
e a escuridão. Os visitantes tinham saído. O bebê
já estava dormindo, Logo as luzes seriam acesas. Meu pai e meu
irmão estavam para chegar da sinagoga. Haveria um chamado para
a vela da Havdalá, vinho e temperos, e a semana de trabalho teria
início.
Mas naquele momento era Shabat – a paz do Shabat, a quietude do
Shabat. Aninhei-me perto de minha mãe no sofá da sala de
estar e pedi: "Conte uma história. Conte-me algo sobre mim
mesma, quando eu era pequena."
E minha mãe começou:
Você nasceu numa época muito difícil, triste e sofrida
para nossa família, para o povo judeu. O perverso Hitler estava
em marcha em toda a Europa. Como Haman fizera antes, ele tinha jurado
nos destruir, matar todo judeu, homem, mulher ou criança que vivesse
na face da terra.
Os exércitos de Hitler ainda não tinham chegado à
Hungria. Ainda não chegara à nossa cidade. Ouvíamos
histórias terríveis, coisas em que não acreditávamos,
que não podíamos acreditar. Mas eu era jovem, não
muito mais que uma menina, e tinha sido abençoada com meu primeiro
bebê. Esquecendo todos os nossos problemas, eu esperava ansiosa
que a enfermeira trouxesse meu bebê para mim. Sentei-me na cama
do hospital, e observava as enfermeiras que levavam os bebês às
outras mulheres.
Gritei: "Oh, traga-me minha filha! Por favor, deixe-me segurá-la!"
Mas a enfermeira, uma mulher grande com olhos pequenos e duros, não
sorriu.
Finalmente, uma delas aproximou-se de minha cama, segurando uma trouxinha
embrulhada num cobertor de flanela. Que bebê lindo você era:
olhos grandes e azuis no rostinho rosado. Alguém tinha atado uma
fita azul combinando em seu penacho de cabelo castanho.
"Segure-a" – disse ela, atirando você sem carinho
na cama. "Não sei por que temos de nos incomodar com estes
fedelhos judeus." Eu devo ter engasgado, porque ela olhou-me e repetiu:
"Estes fedelhos judeus. São um desperdício de tempo
e dinheiro. Hitler cuidará de vocês antes que o ano chegue
ao fim."
Não pude responder. Apenas segurei você em meus braços
e chorei, como eu chorei.
"Ouça, querida, não deixe aquela bruxa velha te amolar."
Era a mulher na cama ao lado. Era uma fazendeira de faces rosadas e cabelo
grisalho. "Deixe-me ver seu bebê. Oh, que linda, como é
lindinha! Que pena…"
De repente, ela sentou-se ereta, e falou-me com seriedade: "Ouça,
ouça-me, Sra.…"
"Sra. Rosenberg" – completei.
"Ouça, Sra. Rosenberg, deixe-me levá-la." Seu
rosto pesado estava rosado de entusiasmo. "Deixe-me levá-la.
Por que ela tem de morrer, a bebezinha inocente? Eu prometo, cuidarei
dela como se fosse minha. Nunca tive filhos, sabe. Dê a bebê
para mim."
Olhei para ela com perplexidade. "O que quer dizer? O que está
dizendo? Como posso dá-la a você? Ela é nossa. É
uma criança judia e a criaremos, se D'us quiser, como uma judia."
"Vocês não a criarão." O tom amável
se fora da sua voz. "Esta pobre criança, não terá
uma chance. Não haverá mais crianças judias quando
Hitler chegar aqui."
"Não esteja tão certa" – respondi trêmula.
"Não tenha tanta certeza. Esta não é a primeira
vez que eles tentam nos destruir." E de repente me lembrei. Lembrei-me
que aquele dia era Purim.
Você nasceu em Purim. Era um sinal, pensei, um sinal do Céu,
meu bebê nascer no mesmo dia em que Haman encontrou sua queda. O
dia que foi transformado de trevas em uma grande luz. De repente senti-me
repleta de coragem e confiança. "Em toda geração
eles se ergueram para nos destruir, e D'us sempre nos salvou das mãos
deles. E Ele o fará novamente, Ele o fará!"
Minha vizinha continuou a argumentar comigo, nas eu não estava
mais escutando. Estava pensando sobre o nome da minha filha.
Seu pai foi visitar-me naquela tarde. Como foi bom vê-lo, sua Meguilá
debaixo do braço, um cesto de comida casher na mão! Minhas
primeiras palavras para ele foram: "Avram, já sei qual será
o nome do bebê. Ela se chamará Esther, Esther Malka."
Seu pai concordou. "Esther. Esther Malka. Um lindo nome, um bom nome."
Ele acariciou sua cabecinha. "D'us certamente ajudará."
E foi assim que você recebeu o seu nome. Para nós, seus pais,
para nossos parentes, e para todas as pessoas que a conheceram, seu nome
encerrava um significado especial. Significava esperança. fé.
"Ah, Esther'ke, Esther Malka" – as pessoas diziam, sorrindo
para você. "Um lindo nome, um bom nome." E então
suspiravam: "D'us ajudará, D'us com certeza ajudará."
De fato, precisávamos desesperadamente da ajuda de D'us naqueles
dias. Os exércitos de Hitler entraram na Hungria. Quando você
completou dois anos, fomos forçados a deixar nossa casa, e fomos
morar no gueto. O que é um gueto? Uma espécie de prisão.
Havia uma parte da cidade cercada por muros e guardada pelos soldados
nazistas. Homens jovens como seu pai eram levados sob a mira de revólveres
e tinham de trabalhar para os nazistas. Era o único jeito de os
judeus deixarem os muros do gueto. E dentro daqueles muros nós
vivíamos, apinhados, muitas famílias juntas em um apartamento.
Tínhamos frio, fome e medo. Muitos adoeceram e morreram. Outros
foram levados pelos nazistas e nunca mais se ouviu falar deles.
Foi assim que você morou e cresceu no gueto. Era uma garotinha pálida
com grandes olhos azuis, sempre ansiosos. Havia tantas coisas que você
não conseguia entender.
E então chegou Purim, seu terceiro aniversário. Seu pai
e eu estávamos determinados a fazer com que este dia tivesse um
gostinho da alegria de Purim, para que você pudesse rir, ter alguma
diversão. Planejamos tudo com cuidado. Naquela manhã, antes
de seu pai sair com os trabalhadores, costurei um par de brincos de ouro
dentro da sua jaqueta. Ele os trocaria com os fazendeiros por farinha,
açúcar e fruta seca. Você teria hamantashen. Depois
que ele saiu, cortei uma cortina de renda. Tornou-se o seu vestido. Com
cartolina e papel de embrulho velho, fiz uma coroa. Sua fantasia estava
pronta. Quando os homens voltaram do trabalho, as pessoas se reuniram
em nossa casa para ouvir seu pai ler a Meguilá. Como é preciso
pouco para fazer uma criança feliz! Você vestiu a fantasia,
como uma rainha. Deixei seu cabelo solto e o escovei até que brilhasse.
Seus olhos reluziam sob a coroa. Suas faces estavam rosadas de entusiasmo.
Em sua felicidade, você era o centro das atenções.
Eles estavam recordando outras festas de Purim em épocas melhores.
Toda vez que seu pai lia o nome Esther HaMalkah (Esther, a Rainha) as
outras crianças sorriam para você, que estava muito ereta,
muito séria orgulhosa. A Meguilá era a sua história.
Naquela noite, quando eu a coloquei na cama, rosada e contente, recheada
de hamantashen, você murmurou sonolenta: "Tenho sorte de ser
Esther."
Porém aquele foi o último dia feliz de que posso me recordar
no gueto. Todos os dias, os soldados alemães recolhiam judeus aterrorizados
e os forçavam a entrar em vagões de gado. Eles nunca retornavam.
Finalmente, chegou o dia em que vimos que você teria de ser mandada
para longe. O plano era contrabandear você para fora do gueto, e
enviá-la para o interior, para alguma das pequenas aldeias tão
pobres e pequenas que ninguém se lembrava que existiam, nem mesmo
os alemães. Ali você moraria com uma família de camponeses
até que a guerra terminasse. Por uma quantia em dinheiro, o último
que tínhamos, talvez eles concordassem em aceitar uma criança
judia, sem fazer muitas perguntas.
Quando você acordou naquela manhã, eu tinha empacotado as
suas roupas numa mochila grande. O homem que levaria você estava
sentado, esperando pacientemente num canto. Enquanto eu a vestia às
pressas, tentei explicar, dizendo que o homem era um amigo. Ele a levaria
a um lugar onde não havia soldados e armas, onde você poderia
comer todas as batatas e pão que desejasse.
Você perguntou: "Você e Tati vão comigo?"
Respondi que não. Segurei-a então pelos ombros e falei seriamente.
"Lembre-se de uma coisa. Você não se chama mais Esther.
Seu nome é Eva. Repita. Eva. Não importa quem perguntar
a você, não importa quando perguntarem. Ninguém deve
saber que você é judia. Entendeu?"
Você tinha apenas três anos, e não entendeu. Começou
a chorar. "Você não vai vir comigo. Tati não
vai vir comigo. E não posso sequer ter o meu nome."
Tentei pensar em palavras para confortá-la. Mas nenhuma veio à
minha mente. Além disso, eu temia que, se falasse, terminaria por
chorar junto com você.
Então o rapaz falou. "Venha cá, Esther'ke." Sua
voz era calma e amigável. "Venha, quero lhe contar um segredo."
Você então parou de chorar, olhando para ele com curiosidade.
Alto e loiro, vestido com as roupas grosseiras de um camponês, ele
parecia um gentio. Mas falou com você em yidish, e seus olhos eram
judeus, bondosos e tristes. "Você não está deixando
sua mãe, seu Tati ou seu nome. Não de verdade. Você
os guardará com você, aqui." E ele apontou para o seu
coração.
"E à noite, quando estiver sozinha, na cama, você recitará
o Shemá e pensará neles, sua mãe, seu pai e seu nome
judaico. Mas não dirá a ninguém. Será o seu
segredo. E um dia, seus pais irão buscá-la, para trazê-la
novamente para casa."
"E você, você tem um segredo?" você perguntou
a ele. Ele assentiu. "Sim, eu tenho, Est… quero dizer, Eva.
Sim, eu tenho." Você então me deixou, segurando as mãos
do seu novo amigo. Seu rosto estava manchado pelas lágrimas. Mas
foi com ele quietinha, vencida por um pirulito e uma boneca nova.
Durante muitos, muitos meses, não tivemos qualquer notícia
sua. Ao se aproximar o fim da guerra, as estradas e pontes tinham sido
bombardeadas, e ficamos isolados do interior. De alguma forma, através
de muitos milagres, sobrevivemos, seu pai e eu. Muitos, muitos judeus,
milhões de judeus, não tiveram a mesma sorte. Até
que a guerra chegou ao fim. Os perversos nazistas foram destruídos.
Como todos os judeus sobreviventes, tentamos novamente organizar nossa
vida. Nosso único pensamento era encontrar você.
Viajamos até a aldeia para onde você fora levada. Caminhamos
quinze quilômetros a pé. As ferrovias estavam destruídas
e não havia trens. E enquanto andávamos, íamos rezando.
Rezamos para encontrá-la sã e salva. Sabíamos que
muitos aldeões tinham se livrado das crianças judias que
tinham concordado em abrigar. Outros as tinham entregado aos nazistas.
Sabíamos também que havia pessoas que tinham passado a amar
as crianças aos seus cuidados e que não queriam devolvê-las
aos pais. E as próprias crianças muitas vezes eram pequenas
demais para se lembrarem que tinham pais judeus.
Divididos entre o medo e a esperança, percorremos a estrada que
cortava a aldeia. Decidimos não lhe dizer de imediato que éramos
os seus pais. Talvez isso a assustasse. Tentaríamos fazer amizade
com você aos poucos. Para conquistá-la. Gradualmente, você
se lembraria.
De repente, avistamos uma criança, uma garotinha com a pele bronzeada
pelo sol, cabelos castanhos e pés descalços. Ela brincava
na areia em frente a uma casa. Nosso coração deu um salto.
Era você. "Menininha" – seu pai chamou numa voz
trêmula – "venha cá."
Você se aproximou e olhou-nos com os olhos arregalados, seus lindos
olhos azuis. Ficou ali, com o dedo na boca. Como posso descrever o que
sentimos? Meu coração cantava de gratidão a D'us
porque nós a tínhamos encontrado, saudável, viva.
Mas em seus olhos não havia boas-vindas, nenhum sinal de reconhecimento.
Você tinha nos esquecido por completo. De repente, você voltou-se
e correu para dentro da casa. "Ma" – você chamou
alguém lá dentro – "há pessoas aqui, pessoas
engraçadas. Estão aqui fora."
Uma mulher pequena com um lenço preto na cabeça saiu. Estava
segurando você pela mão. Tinha o rosto branco, pétreo.
Olhou-nos de cima a baixo, nossos rostos pálidos, as roupas citadinas
empoeiradas.
De repente, tive medo. Ela segurava você tão apertado, como
se você pertencesse a ela. Lembrei-me da mulher no hospital que
dissera: "Dê o bebê para mim." Esqueci todos os
nossos planos, esqueci que tínhamos decidido contar-lhe aos poucos,
gradualmente.
"Esther'ke" – explodi. "Esther Malka. Somos Mamãe
e Tati! Não se lembra de nós?"
Você estacou. Ficou olhando para mim, sem se mexer. De repente,
seu rosto mudou. Parecia estar acordando de um sonho. O reconhecimento
lampejou em seus olhos. Com um gritinho, você soltou suas mãos
da mulher que a segurava, e correu para os nossos braços.
Tinha escurecido enquanto minha mãe falava. Ela se mexeu, olhou
para o relógio na parede, o Shabat tinha terminado. Porém
eu queria prolongar o momento, fazê-lo durar um pouquinho mais.
"Como pude" – perguntei – "como pude me esquecer
de tudo – você e Tati e de ser judia – e me lembrar
apenas de uma pequena coisa, meu nome?"
Minha mãe levantou-se para pegar os temperos, a vela de Havdalá
e o copo de vinho. "Acho" – disse ela – "acho
que é porque um nome, um nome judaico, não é uma
coisa pequena, afinal."
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