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Trinta
e oito anos depois que os Estados Unidos conseguiram a sua Independência
da Grã-Bretanha, um editor suiço de livros judaicos em Zurique
imprimiu um livro de Mishná, a narrativa escrita da Torá
Oral, que define o significado das leis bíblicas. Impresso em cores
vivas e lindamente encadernado, o livro deve ter parecido espetacular
quando saiu da impressora Gutenberg.
Em
algum ponto no tempo, há 191 anos, um antepassado meu comprou este
livro e levou-o para casa com a finalidade de estudar. O que aconteceu
ao livro durante os primeiros cento e vinte e cinco anos permanece um
mistério para toda a minha família até hoje. O que
sabemos com certeza é que em algum ponto de sua vida, o livro caiu
nas mãos de Ben, meu Tio-Bisavô. Durante sua longa vida meu
tio-bisavô teve incontáveis empregos, inclusive granjeiro,
mecânico e vendedor. Infelizmente a vida foi difícil para
Tio Ben, e ele jamais buscou uma vida de estudo judaico e erudição,
e o livro que deve ter sido estudado por numerosos indivíduos no
decorrer de sua vida foi guardado num armário escuro e empoeirado
nos fundos da sua casa.
Durante mais de 75 anos este livro, que é a base de grande parte
dos sistemas legais no mundo secular, permaneceu escondido. Guerras foram
travadas. Presidentes americanos foram eleitos, o Estado de Israel foi
criado, crianças nasceram, meninos e meninas tiveram seus bar e
bat mitsvá, e este tempo todo o livro ficou pacientemente no escuro,
juntando poeira e vendo o presente se tornar passado.
Aos 89 anos, Tio Ben faleceu, deixando sua esposa com 69 anos e uma casa
simples. Meu tio Mel e meu pai prestaram assistência à Tia
nos assuntos mais urgentes e por fim a ajudaram a encontrar um belo local
para viver numa comunidade próxima. Quando eles foram ajudar na
arrumação, encontraram o majestoso livro no fundo do armário.
Literalmente soprando a poeira do livro, meu pai examinou cuidadosamente
as páginas do manuscrito antigo. Como estava impresso em hebraico,
foi um desafio decifrá-lo.
A saúde da Tia o impediu de questioná-la sobre o livro,
portanto ele o embrulhou e enviou para mim, pedindo-me para falar com
o rabino local de Chabad, Rabi Mendel Cunin. Quando a caixa que continha
o tesouro chegou à minha casa, minha mulher, Linda, cortou cuidadosamente
o pacote e tirou o livro da caixa. Percebendo como era frágil,
ela colocou-o num local seguro e esperou que eu voltasse para casa.
Quando vi o livro, a princípio pensei que fosse um Chumash. Porém
após um exame mais detalhado vi que se parecia muito com o texto
que usamos na sinagoga quando estudamos a Guemará. Devido a idade
e importância do livro, eu estava ansioso por levá-lo ao
Rabino para uma inspeção mais acurada.
Um dia depois recebi um e-mail do Rabino, informando nossa pequena mas
crescente congregação que a mãe de alguém
tinha falecido e ele precisava de dez homens para um minyan, assim ele
poderia recitar o Kadish. Decidi levar o livro à sinagoga e mostrá-lo
ao Rabino antes do início de Maariv. Quando o Rabino viu o livro,
obviamente soube que era um Livro de Mishná e disse que tinha pelo
menos 191 anos de idade. Mostrou-me como as páginas eram feitas
realmente de pano, não papel, e que estava em surpreendente bom
estado para um manuscrito tão velho.
Alguns minutos depois o serviço teve início e nos reunimos
para apoiar o amigo e vizinho em sua hora de necessidade. Chegando ao
final do serviço, o Rabino nos disse que era uma tradição
estudar a Mishná quando um membro do minyan tinha de recitar o
Kadish.
Olhando para mim, ele disse: "Em vez de usar um livro novo de Mishná,
vamos usar aquele que Steve trouxe esta noite, um livro que tem 191 anos
de idade." E com isso ele apanhou o livro, escrito apenas alguns
anos após a assinatura da Declaração Americana de
Independência, e discutiu uma passagem sobre a busca do chamêts
antes do início de Pêssach.
Quando terminou, ele fechou o livro lenta e carinhosamente, dando-o de
volta para mim e então concluímos o serviço. Na manhã
seguinte nos reunimos novamente para nosso amigo poder recitar o Kadish.
Antes de começarmos, falamos sobre o livro e como era maravilhoso,
após tantos anos guardado, ele ser novamente usado como fonte de
saber e inspiração. O Rabino disse que as letras que compunham
a palavra Mishná eram exatamente as mesmas que formavam a palavra
Neshamá, alma. Ele prosseguiu dizendo que tanto a Torá quanto
a Neshamá são eternas.
Suas palavras passaram através do meu corpo como uma descarga elétrica,
pois cada letra, palavra, sentença, parágrafo, e capítulo
da Torá são realmente eternos. As palavras que lemos hoje
são exatamente as palavras que nosso povo ouviu quando ficou perante
D’us no Monte Sinai e recebeu a Torá. Transmitidas de geração
em geração estas palavras, que trazem luz ao mundo, jamais
mudaram e jamais mudarão. É uma constante que tem unido
o povo judeu durante séculos. E agora, centenas de anos depois
de serem impressas pela primeira vez, e pelo menos três décadas
após terem sido guardadas num armário empoeirado, as palavras
de sabedoria e esclarecimento mais uma vez tiveram a chance de iluminar
as mentes e as almas de uma congregação.
Este maravilhoso livro, impresso originalmente em 1814, tem causado impacto
em muitas almas desde que um membro da família o adquiriu há
tanto tempo. Como aquela primeira impressão tem passado de mão
em mão, de parente para parente, transportada por centenas de quilômetros,
morado em tantas cidades diferentes desde Zurique até Reno, Nevada.
E mesmo assim, 191 anos após a tinta ter acariciado as páginas
desta obra especial, o livro chegou bem a tempo de consolar um filho enlutado
e seus amigos numa pequena sinagoga em Reno, quase como se tivesse uma
reserva de 191 anos predestinada a ser lido num minyan de avelut.
Coincidência? Creio que não.
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