A garota com o relógio de ouro

 

Por Chana Weisberg

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Lancei um olhar apressado ao meu relógio de pulso nesta atarefada tarde de sexta-feira e lembrei-me de uma história sobre um relógio de um outro país e uma outra geração.

Minha filha percebe minha expressão distante. Começo a descrever a ela uma época diferente quando minha mãe, Rebetsin Batsheva Sudak-Schochet – sua avó – era jovem, não muito mais velha que ela.

"Naquela terra estrangeira, guardar o Shabat não era tão simples como hoje, simplesmente uma questão de adicionar uma batata extra ao caldeirão fervente com o cholent" – expliquei enquanto descascava batatas. "Para Savta, observar o Shabat era uma prática perigosa – que podia custar muito caro."

Comecei a contar-lhe sobre um tempo em que os momentos que passavam no relógio de pulso poderiam ter assinalado o próprio presente da vida…

Samarkand, 1943

O som dos passos não era um bom presságio para a jovem família Sudak, reunida ao redor da mesa do Shabat. Adjacente à casa ficava a fábrica subterrânea de sabão de propriedade deles. A fábrica era ilegal na União Soviética e sua descoberta poderia provocar a prisão imediata, serem enviados para o fronte, ou apodrecer na Sibéria durante anos.

Porém, mesmo perigosa, a fábrica representava a salvação para os Sudak, provendo-lhes o sustento ao mesmo tempo que evitava que trabalhassem no Shabat. Naqueles dias do Partido Comunista totalmente sem religião, guardar o Shabat era não apenas um luxo que nenhum empregador poderia tolerar – era uma verdadeira sentença de morte.

Rabi Pinchas Sudak tinha tomado todas as precauções possíveis para assegurar que a entrada da fábrica ficasse bem oculta de quaisquer olhos curiosos ou perscrutadores, cobertas por largas pranchas de madeira. Porém os passos que se aproximavam soavam como se soubessem para onde se dirigiam.

Alguém tinha informado às autoridades.

Quando ouviram o som rascante de madeira sendo quebrada, Pinchas e Batya fizeram uma rápida deliberação.

"Pinchas, fuja" – ordenou Batya. "Se eles o prenderem, você certamente será enviado para o fronte. Eu ficarei com as crianças, negando que a fábrica pertence a mim. Na melhor das hipóteses, a penalidade não seria tão grande para mim e talvez tenham compaixão de uma mãe sozinha com crianças pequenas.

"Agora vá, Pinchas! Corra!"

Pinchas lançou um último olhar para sua querida esposa, antes de pular o muro alto que cercava sua casa. Com uma prece no coração pedindo para voltar a se reunir com a família algum dia, ele fugiu, correndo para evitar ser preso, o coração batendo como louco.

Batya foi prontamente conduzida à prisão, deixando sua filha mais velha, Batsheva, com apenas onze anos, para cuidar dos dois menores, Nachman e Bracha, além de lidar com seu próprio medo. Porém ela não podia se dar ao luxo de chorar ou ter medo. Era preciso agir.

Batsheva recebeu uma mensagem através de um amigo da família para tentar imediatamente encontrar o interrogador de sua mãe, uma promotora impiedosa que iria determinar o resultado deste caso e que detinha as chaves da liberdade.

"Diga a ela que sua mãe não é dona da fábrica. Seu pai está no exército lutando valentemente pela Mãe Rússia. O homem que fugiu era o amigo polonês de sua mãe que estava ajudando a família a sobreviver. Ele imiscuiu a família nesta confusão ilegal, mas a sua mãe é inocente" – Batsheva foi instruída.

Com a pesada doutrinação comunista no sistema escolar, os funcionários tendiam a acreditar nas crianças que, com freqüência, sucumbiam à lavagem cerebral pela qual passavam e entregavam os próprios pais pelos "crimes" cometidos contra o Estado. Embora fosse muito jovem, Batsheva era madura e entendeu sua grande responsabilidade, bem como as sérias implicações. Com imensa fé e uma prece sincera nos lábios, ela endireitou os ombros esbeltos e foi confiantemente encontrar a promotora.

Batsheva foi convincente ao contar sua história e chorosamente, concluiu: "Por favor, sinto tanta falta dela, quero minha mãe de volta!"

A promotora ficou comovida por esta menina atraente e bem apessoada. "Verei o que posso fazer" – respondeu ela friamente.

No dia seguinte, Batsheva recebeu uma nova mensagem de seu ansioso pai. "Suba até o quarto de sua mãe e abra a gaveta. Ali encontrará um relógio caro de ouro. Desta vez, vá à casa da promotora. Diga a ela que deseja presenteá-la com o relógio. Não peça nada em troca, explique apenas que deseja ver sua mãe."

Batsheva cumpriu as instruções. Durante os dias que se seguiram, ela manteve uma vigilância cerrada em frente à prisão. Dali conseguia ver a mãe sentada no pátio sobre o chão gelado, numa área cercada da prisão. Levou um casaco para aquecê-la e diariamente entregava comida casher para que a mãe pudesse se alimentar.

Embora fosse reconfortante ver sua mãe, era doloroso vê-la por trás das grades, numa situação tão desonrosa. Aqueles foram dias difíceis para uma menina tão nova, cheia de ansiedade sobre o futuro dos pais e da família.

Depois de duas semanas, para surpresa e felicidade de Batsheva, a mãe deixou a prisão, livre das acusações. A promotora tinha encerrado o caso, registrando que o proprietário da fábrica ilegal era um homem polonês que tinha escapado quando a fábrica foi descoberta.

Pinchas permaneceu escondido. O plano era que Batya e seus filhos deixassem Samarkand em breve e a família poderia ser reunida na distante Tashkent.

Diversas semanas depois de sua partida, numa tarde de sexta-feira, Batsheva, que se dirigia para casa, encontrou a promotora. A mulher, que tinha se afeiçoado a Batsheva, contou-lhe amigavelmente que tinha "um outro caso nesta rua".

Tendo crescido na União Soviética, Batsheva entendeu o significado velado das palavras da mulher. "Um caso" podia apenas representar perigo para seu povo. Ela informou aquilo imediatamente ao tio. Ele correu até a casa de Rabi Binyamin Gorodetsky, que morava naquela rua, e avisou-o do perigo iminente. Rabi Binyamin saiu pela porta dos fundos e correu para informar seu irmão, R. Simchah, do perigo.

R. Binyamin escapou, e por fim deixou a Rússia para se instalar em Paris. Infelizmente, seu irmão não deu atenção ao aviso, e foi aprisionado durante dez longos anos.

Duas semanas depois, numa sexta-feira pela manhã antes de os Sudak deixarem Samarkand, Batsheva estava passando pela rua e encontrou novamente a promotora.

"Vou fazer uma prisão" – ela informou, distraidamente, a Batsheva.

Batsheva correu para a casa do tio, R. Yisroel Leibov, mas ele não deu atenção ao aviso, pensando que uma garotinha não poderia ter conseguido este tipo de informação.

Mais tarde naquela noite, a tia de Batsheva foi presa e seu passaporte confiscado.

Cedinho na manhã seguinte, um R. Yisroel pálido e tenso entrou na casa dos Sudak, pedindo a Batsheva que entregasse algumas jóias à promotora. Para alívio da família, Batsheva pôde, mais uma vez, assegurar a libertação da tia.

Na escuridão da noite, no encerramento do Shabat, os Sudak deixaram Samarkand para fazerem a longa viagem até Tashkent. A mais de cem quilômetros de distância, eles esperavam que o longo braço da polícia secreta soviética não os seguisse.

Mas isso é uma outra história. Não é algo para se contar numa atarefada tarde de sexta-feira…

Consciente da aproximação do Shabat, fiz uma pausa para consultar meu relógio de pulso. Uma menina… um relógio de ouro… o sagrado dia de repouso… E o indomável espírito e a fé invencível do nosso povo.


Chama Weisberg é autora de dois livros sobre a vida de mulheres bíblicas e sobre a alma feminina. Ela é deã do JRCC Instituto de Estudos de Torá em Toronto, e faz palestras em todo o mundo sobre temas relacionados a mulheres, relacionamentos e misticismo.
       
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