"Você Conhece o Rebe?"

 

por Sara Esther Crispe

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Lembro-me de ficar sentado durante toda aquela noite de sexta-feira, olhando para o retrato do Rebe, e me perguntando se eu jamais poderia ter alguma conexão.

Eu morava em Israel há um ano e estudava na universidade quando conheci Chabad pela primeira vez. Durante aquele tempo comecei aos poucos a acrescentar aulas de Torá em minha agenda já lotada. Eu não tinha idéia sobre o que era Chabad ou chassidismo. Simplesmente continuava a achar que as aulas que mais me interessavam e as pessoas com quem sentia a melhor conexão todas se encaixavam naquela descrição.

Eu sentia uma total reverência por aqueles ‘Chabadniks" e seu relacionamento com o Rebe deles. Jamais vira um vínculo e um comprometimento tão forte em minha vida. A mera menção de seu nome fazia os olhos deles reluzirem. Eu jamais pensara que poderia admirar e respeitar tanto uma pessoa.

Porém aquela noite de sexta-feira específica tinha sido excepcionalmente poderosa. Eu estava na casa de uma família Chabad, rodeado por um incrível grupo de pessoas calorosas, hospitaleiras e sinceras. A comida interminável aqueceu meu corpo, enquanto as palavras de Torá desafiavam minha mente. Mas o que eu não conseguia apontar exatamente era o que atingia minha alma com uma compreensão que estava ali para ficar. Talvez fosse o canto, talvez as lindas crianças correndo por toda parte enquanto riam. Mas fosse o que fosse, eu sabia que minha vida estava mudada para sempre.

Quando todos tinham saído e a mesa tirada, sentei-me mais uma vez contemplando aqueles penetrantes olhos azuis que pareciam me seguir em qualquer parte da sala onde eu estivesse. Era o mesmo quadro que eu tinha visto praticamente todos os dias nos últimos meses, porém a cada vez que eu olhava, parecia diferente de alguma forma. Eu sempre gostara daquele retrato, embora fosse como se eu estivesse admirando o pai ou avô de alguém. Eu me sentia como uma forasteira olhando para dentro, e não sabia se alguma coisa poderia mudar aquilo.

Olhei por tanto tempo que adormeci no sofá, bem debaixo do quadro. E então tive um sonho. Breve, mas poderoso. Para outros pode não parecer muito, mas foi exatamente o que eu precisava. Neste sonho eu estava descendo as escadas para o mesmo apartamento onde estava passando aquele Shabat. Havia comigo outra estudante, e quando começamos a andar, vi o Rebe descendo. Movi-me para o lado para dar-lhe passagem, e ele parou, balançou a cabeça e disse: "Gut Shabes!" Respondi o mesmo, sorri, e continuei meu caminho. A aluna que estava comigo parecia em estado de choque. Perplexa, ela disse: "Você conhece o Rebe de Lubavitch?" Ao que eu respondi calmamente: "Na verdade, esta é a primeira vez que o vejo pessoalmente, mas ele me conhece. Conhece todo e cada judeu. Ele está conectado a todo judeu."

A próxima coisa que me lembro, eu estava sentada no sofá acordada, com o retrato do Rebe mais uma vez olhando para mim. A princípio eu não tinha certeza se estivera sonhando ou não. E então isso simplesmente não importava, pois para mim tinha acontecido, no sonho ou em realidade. A partir daquele momento, eu tinha a conexão que desejara tanto.

De Jerusalém a Crown Heights

Desnecessário dizer que fiquei empolgada quando, alguns meses depois, tive realmente a oportunidade de ver o Rebe no "770" (como é conhecida a sede de Chabad em Crown Heights, no Brooklyn).

Eu nunca estivera em Nova York antes, muito menos em Crown Heights. Fui com uma família de sheluchim (emissários de Chabad) que ia assistir um casamento. Quando começamos a tirar nossas malas do carro, uma forte sirene cortou o ar. Todas as pessoas à minha volta estavam correndo. Eu não sabia o que estava acontecendo. Alguém agarrou meu braço e me disse para ir mais depressa. Corri feito uma louca, sem saber para onde ia, ou por quê.

De repente entramos no 770. Uma massa de mulheres e moças enchia cada centímetro do espaço. A jovem que me tinha puxado gritou: "Ela nunca viu o Rebe, ela nunca viu o Rebe!" Antes que eu percebesse, a multidão se separava, permitindo-me chegar mais perto e olhar para o Rebe, que estava sentado num balcão acima da sinagoga. Assim que meus olhos se focalizaram nele, ele voltou-se e olhou na minha direção. Senti como se ele estivesse olhando diretamente para mim, o que parecia impossível com centenas de pessoas e uma grossa janela de vidro entre nós.

Porém, por incrível que pareça, vi que todos à minha volta compartilhavam a mesma impressão.

Passei os meses seguintes estudando em Crown Heights, absorvendo a atmosfera de estudos estimulante e intelectualmente desafiadora. Poderia ter ficado ali mais tempo, mas o problema era que ainda faltava um ano de faculdade para completar. Meu ano em Israel contava como crédito, mas meu tempo em Crown Heights não, e quanto mais eu permanecesse, mais demoraria para me formar. Não havia dúvida de que eu pretendia terminar, a questão era quando. E eu sabia que, caso permanecesse em Crown Heights, meu desejo de voltar à faculdade diminuiria.

A Resposta do Rebe

Fiz então quilo que qualquer pessoa em Crown Heights teria feito: escrevi ao Rebe. Porém, como era a primeira vez que eu escrevia, não entendia realmente o processo. Achei que como o Rebe já sabia quem eu era (creio que até o lembrei do nosso encontro na escada em meu sonho) não havia necessidade de colocar meu nome na carta.

Cerca de uma semana depois, voltei a Rabino Klein – um dos secretários do Rebe – para ver se tinha uma resposta. Quando eu disse a ele que minha carta estava sem nome, ele pareceu aliviado e disse-me que embora o Rebe soubesse quem eu era, ele, – Rabino Klein – não sabia, e que tinha tentado me localizar a semana toda.

Ele então falou-me que raramente tinha visto o Rebe responder em termos tão fortes. Embora àquela altura as questões fossem apresentadas ao Rebe como perguntas "sim" ou "não" às quais ele respondia com movimentos de cabeça (isso foi depois que o Rebe tinha sofrido um ataque debilitante em março de 1992), todas as respostas que o Rebe dava às minhas perguntas declaravam com ênfase que eu deveria voltar à minha cidade na Califórnia, e imediatamente! Ele disse que o Rebe encorajava as pessoas a terminarem aquilo que tinham começado, mas nesse caso, tinha sido inflexível; eu deveria voltar de imediato.

Marquei minha passagem para a semana seguinte. Eu estava pronta a partir, quando todas as circunstâncias mudaram de repente. Eu escrevera ao Rebe dizendo que moraria com uma família Chabad, assim seria mais fácil para mim ser observante de Torá. Porém aquele arranjo terminara por não dar certo, e eu temia que a minha única outra opção – morar no campus – seria prejudicial para mim, tanto espiritual quanto emocionalmente. Voltei ao Rabi Klein e pedi a ele que apresentasse minha nova situação, para ver se a resposta poderia ser diferente. Para minha surpresa, ele reiterou que o Rebe era categórico: eu deveria ir para a Califórnia. Ele não achava que aquela mudança de detalhes alteraria a intensidade da resposta do Rebe, que eu deveria retornar.

Mergulhando a Louça


Tomei o vôo na semana seguinte e voltei à Califórnia. Desnecessário dizer, após um ano em Israel e alguns meses em Crown Heights, a adaptação a um ambiente e estilo de vida totalmente diversos foi bastante difícil.

Em pouco tempo estava na hora de voltar à faculdade, e felizmente encontrei um local de onde era possível ir a pé até a Chabad House. Como eu estava mantendo uma dieta estritamente casher, precisaria de novas louças e panelas para a faculdade. Achei que teria de fazer duas viagens, pois de maneira alguma tudo caberia no carro de uma vez. Então, primeiro mudei meus pertences pessoais numa semana, e na outra voltei para casa para comprar meus utensílios de cozinha.
Felizmente o fim de semana seguinte era de três dias, portanto achei que teria algum tempo para relaxar e dirigir de volta na segunda-feira de manhã. Passaria o domingo comprando vasilhas e panelas, e ainda teria tempo suficiente para imergir tudo no micvê local – como ordena a Lei Judaica – na segunda pela manhã.

Porém meu plano cuidadosamente arranjado foi por água abaixo. No Shabat, descobri que o micvê local não estava mais disponível para imersão de utensílios. E agora? Não havia outro micvê que eu pudesse usar. Finalmente decidi que, como minha universidade estava literalmente na praia, eu poderia usar o micvê no estilo antigo – o próprio oceano.

Ora, aqui as coisas começaram a ficar um tanto curiosas. Eu precisava explicar à minha família que eu teria de viajar um dia antes, em vez de passar o tempo com eles. E obviamente eles queriam saber o por quê. Quando expliquei o conceito de imergir minhas louças recém compradas numa fonte de água, eles decidiram oficialmente que àquela altura eu tinha enlouquecido. Não que tivessem ficado exatamente encantados comigo usando saias compridas, guardando o Shabat, não comendo na louça deles, e todos os outros hábitos que eu tinha mudado desde a última vez que tinham me visto há dezoito meses. Mas isso agora era demais. "Você está me dizendo que precisa mergulhar suas vasilhas novinhas no oceano? Sua louça precisa ser purificada?" Bem, digamos que de todos os aspectos do Judaísmo com profundas e grandes explicações, imergir utensílios não é exatamente uma que faça sentido.

Após algumas horas lamentando o fato de que eles tinham despendido tanto dinheiro com minhas escolas particulares e a faculdade, finalmente decidiram que eles poderiam tirar algum proveito disso. Como eu tinha de viajar na tarde de domingo, eles simplesmente iriam comigo, passariam a noite, tirando umas pequenas férias. E lá fomos nós, com minha louça nova e uma mala com o básico e roupas para um ou dois dias.

Eu achava que poderia imergir tudo na segunda-feira pela manhã, esperando chegar bem cedo na praia, antes que a turma da faculdade chegasse para passar o dia de folga. Mas quando meu rádio-relógio tocou às 8 da manhã, continuei ouvindo o repórter mencionar "Northridge". Ora, a única Northridge que eu conhecia era a pequena área onde eu morava, e com certeza não era digna de noticiários, ou pelo menos não até aquela manhã de segunda-feira. Então ouvi as palavras "terremoto", "epicentro" e, mais uma vez, "Northridge".

Ora, cerca de 5 da manhã eu tinha sentido um terremoto. Durou bem um minuto, mas não fora tão forte, e logo depois adormeci de novo. Seria possível que minha cidade, Northridge, a umas quatro horas de carro de onde eu estava, fosse o epicentro do tremor? Liguei a TV e não pude acreditar nos meus olhos. Não somente era Northridge, como era minha própria rua, e ao fundo eu podia ver minha casa. Um dos maiores terremotos a atingirem a Califórnia, e minha quadra era o epicentro!

Uma tragédia e um milagre

Minha família não podia voltar durante alguns dias, pois as estradas estavam destruídas.
Felizmente, porém, meus pais já tinham um lugar para ficar, e suas carteiras e carro com eles.
Quando finalmente voltamos, o dano era pior do que tínhamos imaginado. Nossa casa inteira tinha sido movida alguns centímetros para fora do alicerce. Sua estrutura estava totalmente destruída. A polícia deu-nos permissão de entrar, sob nosso próprio risco, mas somente pelo tempo necessário para retirar objetos essenciais.

Subimos cuidadosamente as escadas para ver o que podia ser salvo. O telhado tinha caído, mas o piso não cedera… ainda. Fomos de quarto em quarto. O que vimos era assombroso. Havia pedaços grandes do teto cobrindo cada uma das camas em todos os quartos. Os livros estavam no chão, pedaços de vidro cobriam tudo; era a destruição total.


Minha mãe ficou histérica. Ela tinha perdido sua casa, e quase tudo que havia ali dentro. Para piorar as coisas, ela tinha cancelado o seguro contra terremoto um mês antes. Ela voltou-se para mim em meio à destruição e sussurrou: "Se você acredita tanto em D’us, diga-me porque isso aconteceu conosco!" Eu preferi não responder aquela pergunta de imediato.

Entrei no meu quarto. Olhei em torno, percebendo que se minha família estivesse ali, não teria vivido para contar a história. Ninguém poderia ter sobrevivido a tamanha destruição. Uma coisa permanecia no lugar, aparentemente sem ter sido movida. Era meu retrato do Rebe. O mesmo quadro com o qual eu tinha me conectado um ano antes em Jerusalém.

Minha mãe veio à porta quando eu estava a ponto de sair. Olhei para o retrato do Rebe e depois para ela. "Mamãe, não posso dizer-lhe por que isso aconteceu. Mas uma coisa eu posso dizer. Posso dizer-lhe por que não estávamos aqui."


Sara Esther Crispe é escritora, editora, conferencista inspirada e professora. Mora com seu marido e três filhos em Jerusalém, Israel.
       
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