Schreiber, o Judeu

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Em maio de 1934, um jovem médico completou seus estudos em Varsóvia e voltou a Byalestok. Com a ajuda do pai, um fazendeiro abastado que alguns anos antes mudara-se com a família para a cidade, abriu um pequeno consultório com vista para o relógio da cidade.

Com o passar dos meses, sua reputação cresceu e com ela o tamanho da multidão em sua sala de espera. Simpático e amável, ficava à vontade nos círculos sociais de Byalestok, tornando-se logo o preferido da comunidade judaica secular. Ricos industriais disputavam a oportunidade de apresentar as filhas a ele, e a elite intelectual o procurava constantemente para fazer parte de seus grupos e comparecer às suas reuniões sociais. Na maioria das vezes, recusava estes convites, sem se impressionar pelo brilho de suas festas e pelos assuntos sempre repetidos em suas conversas. Dedicava o tempo ao trabalho; suas horas de lazer eram passadas em passeios pelas ruas e parques da cidade.

Entre um e outro paciente, muitas vezes relanceava o olhar à foto da formatura de sua escola primária, datada de 1922. O tempo estava passando rápido. Era um médico, respeitado, quase famoso em Byalestok, mas não estava feliz com suas realizações - faltava alguma coisa. A vida ao seu redor não tinha consistência e objetivo. Mesmo seu trabalho o deprimia às vezes. A morte de um paciente jovem, enquanto ele assistia impotente, tocara-o profundamente. Por que isso teve de acontecer?

Uma "simples" questão de saúde

Certo dia, no final de outubro, o Assistente do Prefeito de Byalestok, um polonês alto e educado, foi ver o médico.

Um ano antes, a administração da cidade contratara um novo Promotor, Andrei Maritus, que imediatamente iniciou vários projetos. O ousado propósito de um deles era fechar todos os micvês (reservatório de água usado para banho ritual) de Byalestok. No segundo dia de Rosh Hashaná, depois que centenas de judeus tinham mergulhado no micvê da Sinagoga Principal, Andrei Maritus, acompanhado pelo Inspetor Sanitário Municipal e três policiais, coletaram duas amostras da água que tinha se tornado escura e turva. No dia seguinte, ordenou-se que todos os micvês na cidade fossem fechados, e uma audiência foi marcada para dali a duas semanas. Naquela mesma tarde, o Assistente do prefeito foi visitar Dr. Schreiber.

"É simplesmente uma questão de saúde" - disse o Assistente do Prefeito, um polonês alto, de ombros largos, com uma auréola de cabelo avermelhado rodeando a cabeça calva, sorrindo cordialmente. "A comunidade deve ser protegida de um surto de febre tifóide. Veja bem, somente no mês passado seis casos foram descobertos em Olsztyn, outros quatro em Siedlce." Dr. Schreiber olhava inexpressivamente por sobre a mesa. O polonês encarou-o e sorriu afetadamente. "Esta é uma amostra retirada do micvê" - disse ele - colocando o frasco sobre a mesa. "Queremos que a examine e nos envie um relatório em três dias."

"Entendo" - disse Dr. Schreiber. Agora o objetivo da visita estava claro para ele: ele, um membro respeitado da comunidade judaica, deveria fornecer a evidência conclusiva.

Percebendo um quê de indecisão nos olhos do médico, o Assistente do Prefeito disse: "É uma simples questão de saúde, Dr. Schreiber - a água evidentemente está poluída. Queremos sua confirmação. É desnecessário dizer que será bem recompensado pelo seu tempo."

Visita ao bairro judaico

Dr. Schreiber sentou-se à sua escrivaninha por um longo tempo. Da rua abaixo vinham os sons de meninos brincando. Foi até a janela e olhou para baixo. Espremida entre sombras, a luz rósea do sol da tarde iluminava as faces das crianças. Pela primeira vez desde que tinha tomado posse deste escritório, perguntou-se se eram judeus. Finalmente, voltou-se e apanhou a amostra. Colocou uma gota na lâmina, depois deslizou-a sob o visor do microscópio. Um olhar mostrou-lhe que estava repleta de bactérias - ele não se deu ao trabalho de analisá-la mais a fundo.

Desculpou-se com os pacientes que aguardavam na sala de espera e desceu apressadamente as escadas até a rua. Caminhou pela praça principal repleta de pedestres, e então passeou pensativamente pelos jardins até o centro comercial de Byalestok. Dali encaminhou-se na direção da Sinagoga Principal. A enorme estrutura em forma de domo dominava as cercanias por várias quadras. Aqui e ali, crianças judias brincavam nas ruas empoeiradas, vestidas de trapos, os cachos balançando com a brisa. O médico jamais tinha feito contato real com os judeus religiosos de Byalestok; em seu círculo social eles eram vistos com desdém, como alguém pensa sobre um parente distante que está desperdiçando sua vida, com um erguer de ombros em desaprovação impotente. Ele jamais entendera seus modos - e de fato, jamais tentara. Seus dias de universidade lhe voltaram à mente; tinha havido mais que um traço de anti-semitismo no ar, mas de alguma forma, absorvido como estava em seus estudos, pouca atenção dedicou a isso, atribuindo-o à ignorância de uns poucos indivíduos mal-orientados na faculdade.

De repente, um garoto de uns seis anos saiu de uma viela, carregando um balde de água, e parou bem em frente ao Dr. Schreiber. Um boné marrom com um visor estreito que chegava até as sobrancelhas lhe cobria a cabeça, e um casaco preto rasgado escondia o corpo do rapazinho do pescoço aos tornozelos.

"Onde está seu solidéu?" - perguntou ele com um traço de desafio, levantando o queixo.

"Não uso" - disse o médico, sorrindo.

"Todo judeu deve usar!" garantiu o menino, furioso.

"Nem todo judeu."

"Sim, todo judeu!" - insistiu teimosamente, enquanto cerrava os lábios e balançava a cabeça reprovadoramente, como um adulto. "Você usa óculos, não é, e óculos são mais pesados que um solidéu" - disse ele, com um golpe talmúdico do polegar.

Encontro com o rabino

Na semana seguinte, dois judeus idosos procuraram Dr. Schreiber em seu consultório. Um era o Rabino Chefe de Byalestok, o outro Leib Orenstein, Presidente da Sinagoga Principal. Tinham sido informados que o médico fora convocado para testemunhar na audiência que se aproximava.

"O micvê não é um lugar onde nos lavamos" - disse o idoso rabino através da fenda em sua longa barba branca. O castão de sua bengala, em formato de machado, encostava em seu peito; ele o agarrou tremulamente e prosseguiu, os olhos estreitos profundamente encravados sob as pálpebras inchadas: "O micvê é vida; é como as águas da placenta onde o feto vive e se desenvolve - quando o bebê irrompe das águas, está vivo. E assim ocorre com um judeu quando sai do micvê pela manhã; está rejuvenescido, ansioso para servir ao Criador."

As faces pálidas do rabino confundiam-se com sua barba, e tudo que se podia ver eram os olhos escuros e pacientes, e a linha denteada de sua barba contra o pano de fundo de seu casaco negro. Dr. Schreiber assentiu respeitosamente.

"Mesmo que você não entenda o que significa um micvê" - disse Leib Orenstein, um homem bem-barbeado de sessenta anos, a voz esforçando-se para parecer calma - "deve respeitar o fato de que isso tem grande importância para milhares de judeus em Byalestok. Quando uma mulher vai ao micvê, tem a certeza de que seu bebê será saudável. Este não é um detalhe em nossas vidas; é tudo!" Incapaz de conter sua emoção, ele continuou: "E não se engane achando que este é um fato isolado e que terminará por aqui. Caso eles, D'us não o permita, forçarem o fechamento dos micvês isso os encorajará a tentar mais; logo desejarão destruir nossos abatedouros, sob a alegação de crueldade com os animais! Depois nossas escolas serão atacadas, e então, Dr. Schreiber, eu pergunto - o que restará?"

Dr. Schreiber contemplou sombriamente seus visitantes.

"A água está repleta de bactérias" disse francamente. "É um risco à saúde."

"Nenhum judeu jamais ficou doente por imergir em um micvê" - declarou o Sr. Orenstein, os lábios trêmulos devido à concepção errônea do médico.

"Pode ser, mas mesmo assim a água representa um perigo à saúde da comunidade" disse ele, pesando cuidadosamente as palavras.

"A ciência e a lógica não são tudo, Dr. Schreiber" - disse o rabino. "A história dos judeus é uma grande evidência disso."

Os visitantes levantaram-se para sair. O médico acompanhou-os até o corredor. Esperava que eles lhe implorassem, para provocar nele um sentimento de culpa. Mas não disseram mais nada, e ele os respeitou por isso. Estendeu-lhes a mão; o rabino segurou-a levemente entre suas duas mãos, como se para transmitir uma mensagem final através dela.

Dr. Schreiber saiu sozinho para vagar pelas ruas, a face profundamente preocupada. No bairro religioso, sorveu o murmúrio das palavras da Torá que vinha das janelas, e o cheiro de chalá (tradicional pão trançado) assando para o Shabat. Ficou comovido pela simplicidade e devoção da atividade deles, admirando com inveja a consistência de tudo aquilo. Mas nos bairros judaicos seculares voltou à sua preocupação com a verdade, seu desejo intelectual de defendê-la onde quer que fosse ameaçada.

A audiência

Na noite anterior à audiência. Dr. Schreiber foi até a sala escura do micvê deserto da Sinagoga Principal. Acendeu a pequena lâmpada elétrica. A severa nudez do vestiário fê-lo estremecer; as paredes sujas estavam rachadas em vários lugares; o banheiro, desconfortavelmente próximo dos bancos, deixava vazar um fluido de um marrom vívido, e nos cantos altos do aposento, aranhas teciam suas teias diáfanas. Caminhou lentamente pelo chão de madeira até as escadas que levavam à piscina. A lâmpada do vestiário derramava uma luz pálida sobre a água espessa. Abaixou-se para olhar melhor, desviando-se para o lado para deixar passar a luz. Aqui e ali, pequenos chumaços de fios entremeados com cabelos boiavam na superfície escura e imóvel da água, que não era trocada por semanas. Ele colheu uma mão cheia e deixou que a água passasse por entre seus dedos. Cheirou-a, depois limpou a mão cuidadosamente na manga do casaco. Sua face fechou-se numa carranca, e ele não conseguia removê-la.

A audiência, bastante divulgada, atraiu funcionários e jornalistas de toda a Polônia. O salão estava lotado. À esquerda da primeira fila, sentavam-se três rabinos, o Rabino Chefe no centro, os dedos trêmulos segurando o castão da bengala. O palco estava montado. O Promotor, um polonês alto de óculos com uma excrescência do tamanho de uva no lado esquerdo do rosto, explodindo de autoconfiança, pavoneava-se para lá e para cá entre seus colegas, dando os toques finais. O juiz, um homem enorme que se distinguia pelo flutuante cabelo grisalho e um sorriso involuntário, deu início à audiência.

Andrei Maritus não perdeu tempo. O primeiro no banco das testemunhas era o antigo zelador da Sinagoga Principal, um bêbado de nome Babules. Qualquer pessoa que tivesse o mínimo de conhecimento sobre Babules sabia que, por uma talagada de whisky, ele juraria que a grama era azul. Hoje, entretanto, ele era um outro homem. Vestido num terno novo e gravata, o cabelo negro retinto bem penteado, ele de fato parecia um cidadão decente e cumpridor das leis. Apenas seus olhos traíam o verdadeiro Babules; injetados de sangue, eles se esforçavam em vão para acompanharem o Promotor que andava para cá e para lá à sua frente, um tantinho depressa demais. Com uma coerência que surpreendeu a muitos dos que assistiam, Babules descreveu as condições no micvê, conforme ele dizia conhecer. Usando adjetivos e superlativos que lhe eram totalmente estranhos, sua descrição das esquálidas condições levaram a hostil audiência a gritos de indignação.

"Quantas vezes implorei aos rabinos para que me permitissem trocar diariamente a água!" - testemunhou amargamente.

"E eles o deixaram?" - instigou o Promotor, radiante com a antecipação da vitória.

"Nunca! Nunca!"

"Por quê?"

"Dinheiro! O que mais poderia ser?"

"Você deveria ter-se oferecido para fazê-lo de graça" - sugeriu Andrei Maritus magnanimamente.

"Eu o fiz! Pela bondade de meu coração, Babules se ofereceu! Eu não podia mais suportar o mau cheiro, Senhor! Veja bem - eu deveria ter mencionado isso mais cedo - mas os homens mais velhos não se incomodavam de espirrar dentro da água."

"É tudo por enquanto, Sr. Babules" - disse o Promotor, sorrindo abertamente ao acariciar a verruga em sua face. Olhou sugestivamente para o juiz, que abaixou os olhos para o bloco de anotações em sua mesa.

Seguiram-se seis testemunhas. A declaração de cada uma foi ainda mais devastadora. Entretanto, ficou claro que o caso do promotor se apoiava em testemunhas questionáveis. Não havia provas claras, nenhum fato científico. Para isso, foi chamado o Dr. Schreiber, que estava sentado na fileira do fundo da sala.

O desfecho

"Agora, Dr. Schreiber" - começou o Promotor, lenta e deliberadamente - "o senhor recebeu uma amostra de água do micvê e foi solicitado a analisá-la. Presumo que teve a chance de fazê-lo."

"Sim, senhor" - Dr. Schreiber respondeu educadamente, o olhar sério enrugando-lhe o canto dos olhos numa fina teia de sulcos.

"E o que descobriu, Doutor?" perguntou Andrei Maritus, apontando para o copo de água enegrecida que o meirinho tinha colocado sobre a prateleira do banco de testemunhas.

"A água é suja" - disse Dr. Schreiber sem um traço de hesitação, olhando duramente nos olhos do Promotor.

"Suja como, Doutor?" - ele continuou confiantemente, olhando com discrição para o juiz.

"Muito suja" - respondeu o Doutor no mesmo tom resoluto. Uma onda de silêncio correu o aposento.

Percebendo que pisava solo firme, Andrei Maritus contemplou a multidão com uma ligeira inclinação da cabeça. Mal conseguia se refrear para fazer a pergunta decisiva. Neste ínterim, os que assistiam tornaram-se barulhentos com a empolgação. O Promotor pediu à turba que fizesse silêncio. Então, voltou-se para Dr. Schreiber, esforçando-se para controlar cada músculo.

"O senhor diria, então, que a água é perigosa para a saúde? - perguntou em um tom que não admitia réplica.

"A saúde de quem, Senhor?" - o médico perguntou com polidez exagerada.

Um súbito murmúrio de vozes percorreu o aposento.

"Silêncio!" ordenou o juiz.

"Humana, é claro!" - o Promotor enunciou hesitantemente, um olhar chocado de ultraje no rosto. Então sorriu nervosamente aos jurados e beliscou a verruga.

Dr. Schreiber levantou o copo até os olhos como se ponderando a questão.

"Para humanos?" - perguntou pensativamente, fazendo uma pausa para um último olhar à água. Perante os olhos estupefatos da multidão, levou o copo até os lábios e bebeu a água de um só gole. Não mostrando qualquer sinal de desconforto, colocou o copo de volta sobre a mesa. "Mais alguma pergunta, Senhor?" indagou cortesmente.

Por professor Abraham Beyarsky; publicado originalmente na revista Di Yiddishe Heim.

         
       
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