Vovô

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Um sorriso presunçoso paira em meu rosto, um sorriso totalmente deslocado na atmosfera sombria e no grupo de enlutados. É o primeiro aniversário da morte de meu avô, e seus descendentes reuniram-se, como manda a tradição, para festejar e falar carinhosamente sobre o homem que foi marido, pai, avô e bisavô. O clima na casa de minha tia é melancólico; uma tristeza semelhante reflete-se nos olhos dos convidados e ecoa em suas vozes.

Falamos do vazio que vovô deixou. Ninguém que está na sala hoje sentar-se-ia majestoso à cabeceira da mesa com um piscar decididamente malicioso nos olhos azuis. Ninguém ofereceria uma fornada fresca de pilhérias, lançadas numa voz calma e seguidas por um risinho de satisfação. Ninguém colocaria a mão sobre o ouvido para escutar atentamente ao menor dos interlocutores. Meu avô faria tudo isso. Como é estranho que uma ausência pudesse ser tão obviamente presente!

Mesmo assim, eu, de minha parte, permaneço imune à tristeza. Acalento minha complacência comigo mesmo. Não é como se eu não o amasse - ainda amo - mas não posso ser dominado por uma tristeza que não me afeta.

Lanço um olhar às faces consternadas que mais amo neste mundo. "Eles não sabem" - penso. "É por isso que sofrem." Se não fosse pelas aterrorizantes circunstâncias só minhas, eu estaria como eles.

Sempre que penso muito sobre o funeral, como agora, meus dentes começam a bater. Meus dentes estavam castanholando naquela manhã enquanto eu estava na calçada e assistia à procissão de carros que saíam rumo ao cemitério. Minha barriga grande e eu ficaríamos para trás. Meus dentes estavam batendo, mas não devido ao frio do inverno, e sim porque eu estava em estado de choque, que havia começado durante o elogio fúnebre que meu pai fizera para vovô.

O zumbido constante do pranto, que começara antes mesmo que o primeiro orador se encaminhasse para a frente do salão do funeral, intensificou-se quando meu pai subiu ao pódio. O único filho do único avô que eu jamais conhecera falou com respeito e afeição - e com grande comedimento. Então, num rasgo súbito de sentimento, meu pai gritou entrecortadamente: "Papai, por favor, interceda perante o Trono Celestial para uma total recuperação para minha neta Blimi!"

A princípio fiquei aturdida. Já tinha comparecido a outros funerais e jamais escutara um pedido por uma total recuperação. A aparente inadequação daquilo preocupou-me. Então a prosaica realidade, que tinha estado martelando no fundo de minha mente, aflorou. Oh, não! Ela deve estar mesmo doente! Minha Blimi está realmente doente. E então meus dentes começaram a castanholar.

Depois do que o cortejo fúnebre pôs-se lentamente a caminho, andei as três quadras até o hospital, que tinha se tornado meu segundo lar apenas dois dias antes. Minha cunhada, Tiffany, havia chegado para sentar-se com o corpinho inerte na UTI, para que meu marido e eu pudéssemos assistir o funeral. "Nenhuma alteração" - informou-me ela.

Um olhar de relance para os monitores mais acima e os tubos de drenagem serpenteando para fora de seu peito confirmaram que minha filha de quatro anos não estava mais perto da morte do que tinha estado quando foi levada às pressas para o pronto-socorro com problemas respiratórios. As bactérias raras que atacaram seu sangue e pulmões lutavam com um arsenal diário de antibióticos. Radiografias computavam os dados do conflito seis vezes ao dia, e até então as bactérias estavam vencendo. Durante estas batalhas febris minha filha abençoadamente dormia em seu coma induzido.

Quando vi pela primeira vez seu corpinho de fraldas, parecendo um pássaro com as asas abertas na cama de hospital, vestida apenas com um ventilador, cateteres e tubos, ela parecia uma boneca - ou talvez pior, uma concha vazia.

Fiquei estupidificada e pouco à vontade com este súbito e estranho drama em minha vida. Antes que sua pneumonia a golpeasse, eu estava absorvida pela saúde fraca de meu avô, temendo o rumo fatal que ela certamente tomaria. Em momentos mais relaxados eu me preocupava, desnecessariamente, se meu filho ainda bebê ficaria contente pelo nascimento de um irmão ou irmã. Agora minha vida gravitava em volta de simples números vermelhos num monitor.

Por algumas semanas, eu estivera pensando sobre a semana que inevitavelmente chegaria, quando meu pai sentaria shivá (sete dias de luto). Eu iria todos os dias, oferecendo-me para cozinhar e retornar os telefonemas. Porém, três dias de shivá e eu ainda não tinha aparecido na casa de minha avó, onde a família estava sentando luto. Pensar sobre as perguntas que teria de enfrentar me intimidava. Eu não tinha nenhuma notícia boa para dar, portanto fiquei afastada.

No terceiro dia de shivá, a condição inalterada de minha filha mudou. Seu pulmãozinho sofreu um colapso, e ela precisava de cirurgia imediata.

Ela foi acordada pouco antes da operação. Ainda sob o efeito de drogas paralisantes, ela permanecia imóvel, mas seus suaves olhos redondos buscaram tristemente os meus. Em desamparo, segurei sua mão fraca na minha e enxuguei as lágrimas que deslizavam dos cantos de seus olhos e corriam para os ouvidos.

"Ela será anestesiada outra vez assim que for levada para a sala de operações," fui informada. O comentário foi feito para acalmar-me, mas não relaxei minha mão que apertava a dela. Eles não me deixariam entrar na sala de cirurgia. Minha filhinha estaria consciente e assustada, sozinha, e eu não estaria lá.

Caminhei ao lado da maca, sua mão na minha. Seus olhos castanhos prenderam-se nos meus, em terror mútuo. A cada passo eu ficava mais agitada ao pensar em deixá-la sozinha. As portas sólidas da sala de operações chegaram depressa demais. "É aqui," fui informada animadamente, e Blimi foi levada.

Senti o pânico crescer conforme as portas de vaivém fecharam-se atrás dela, mas então, curiosamente, uma calma envolvente abateu-se sobre mim. Pela primeira vez nos cinco dias em que ela estava hospitalizada, fiquei em paz.

Embora as portas da sala de cirurgia estivessem fechadas e não tivessem janelas, eu podia ver claramente através delas. E lá, ao lado do leito de minha filha, sua mão onde a minha tinha estado há pouco, estava vovô. Seu chapéu Hamburgo preto e seu terno pareciam deslocados em meio à equipe de cirurgiões apressados e enfermeiras de avental. Sua postura calma reassegurou-me, como sei que fez com Blimi. Pelo pulso relaxado da intuição de uma mãe, eu sabia que não o estava vendo por causa de minha ansiedade. Neste momento, o mais vulnerável, minha filha não estava sozinha. Nem eu.

É impossível concentrar-me. No silêncio da casa de minha tia, alguém mais que foi chegado a meu avô está dizendo algo de bom sobre ele, mas minha atenção está focalizada em outro lugar. Fixo a travessa decorada à minha frente. Será que nos lembramos de dizer ao fornecedor que queríamos travessas? O jantar é amanhã à noite, e quero que tudo saia perfeito. Afinal, não são muitas as pessoas que têm a oportunidade de agradecer pessoalmente a D'us com um banquete de ação de graças.

Uma cirurgia no coração, traqueostomia e cirurgia reconstrutiva da garganta seguiram-se à cirurgia de pulmão de Blimi no ano anterior. Ela foi uma em um milhão a contrair a doença, fomos informados, e uma em um milhão a sobreviver. Pergunto-me tortuosamente se a alegria em seu casamento poderá igualar o júbilo que será sentido na refeição de amanhã.

À minha esquerda, um parente me dá uma cotovelada, sussurrando: "Simplesmente não é o mesmo sem..." Ela inclina a cabeça. "Sinto mesmo a falta dele."

Inclino a cabeça, concordando, mas por dentro estou cantando. Quero sentir a falta dele. Tento sentir s falta dele. Mas como se pode sentir a falta de alguém que está sempre aqui?

Por Chani Hadad, que ensina inglês na Universidade da Cidade de Nova York e na Faculdade Touro.

         
       
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