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  Votando de todo o coração
 
Por Gloria Goldreich
  Todo ano, quando as folhas das árvores começam a mudar de cor, o ar começa a fervilhar com as notícias das próximas eleições. Somos relembrados repetidas vezes do grande privilégio da democracia. Somos conclamados às urnas e a cumprirmos nossa obrigação como cidadãos dos Estados Unidos.

Inevitavelmente, quando escuto todas estas mensagens, penso no meu pai, para quem votar era mais que um privilégio e uma obrigação – para ele era algo sagrado. É então que me recordo da aventura de meu pai no Dia da Eleição em 1944, quando a Guerra ainda assolava o mundo e Franklyn Delano Roosevelt estava concorrendo ao seu 4º mandato como presidente.

Nos seus vinte anos, forçado pela vulnerabilidade de sua família numa época de autocracia polonesa que impunha leis rígidas sobre as oportunidades educacionais e econômicas dos judeus, limitava seus direitos civis e na verdade ameaçava sua própria vida, meu pai deixou seu lar em Partsevah, na Polônia, em busca de um novo destino na América.

Profundamente religioso, erudito talmúdico por treinamento, ele cumpria escrupulosamente o Shabat e as mitsvot (mandamentos) até nas circunstâncias mais árduas – em cidades estranhas, entre pessoas cujo idioma ele não conseguia entender, cujas maneiras eram diferentes e, além de tudo, assustadoras para ele.

Quando finalmente chegou aos Estados Unidos foi dominado pela alegria. Esta nova terra era um porto seguro a ser prezado, o conceito de um governo do povo, pelo povo e para o povo um ideal a ser reverenciado. Seus papéis de cidadania, emoldurados, ocupavam local de destaque no pequeno aposento onde ele estudava o Talmud a cada Shabat. Uma bandeira americana era exibida nos feriados e ele escutava as "Conversas ao Pé da Lareira" do Presidente Roosevelt com a mesma atenção que dispensava a um discurso erudito sobre Torá.

Um homem que se fez por si próprio, com uma conceituada loja de peles no East Broadway em Nova York, meu pai trabalhava longas horas. Havia apenas uma exceção. Todo ano, na primeira terça-feira de novembro, ele chegava em casa no começo da tarde. Votar era um ritual, exigindo cuidadosa preparação, não muito diferentes dos preparativos para a celebração do Shabat.

Ele vestia as roupas que minha mãe tinha separado para ele – roupa de baixo limpa, camisa branca como a neve com abotoaduras de ouro, o terno bom que geralmente usava para ir à sinagoga nos feriados e sua melhor gravata.

Morávamos numa casa com moradia para duas famílias numa rua ladeada de árvores. Meus avós maternos ocupavam o apartamento de baixo. Na manhã do Dia da Eleição, meu avô tomava um cuidado especial com os sapatos de meu pai, lustrando-os até brilharem como um espelho. Também escovava o melhor chapéu de Papai e o seu próprio chapéu Homburg.

Como meu pai, minha mãe e os pais dela também se vestiam com cuidado para a expedição às urnas, uma caminhada de duas quadras até a Escola Estadual 209. Eu corria à frente deles, para abrir a porta lateral da escola, cônscio da minha própria importância.

Um policial, seu escudo reluzindo com autoridade, postava-se ao pé da bandeira e observava enquanto os votantes preenchiam o formulário de registro. Era um homem de aspecto agradável, e cumprimentou respeitosamente minha professora de Inglês, a magérrima Sra Cunningham. Ela notou-me e sorriu.

"Esta é a garotinha que escreveu o poema sobre a bandeira, Pat", ela disse ao policial, apontando para meu poema sobre a parede. Ele sorriu para mim e creio que foi então que notou meu pai e meu avô, que se preparavam para assinar a folha de registro.

"Senhores", disse ele, "terão de retirar o chapéu."

Meu pai olhou confuso para ele.

"Por que eu deveria tirar o chapéu?" perguntou.

"É um sinal de respeito para com a bandeira."

O rosto de meu pai enrubesceu. Seus olhos ficaram perigosamente brilhantes por trás dos óculos espessos. Era um homem calmo mas quando falava sua voz era firme, com convicção.

"Uso meu chapéu porque sou judeu. Cubro a cabeça para mostrar respeito a D'us", disse ele, num inglês com sotaque.

Minha avó estremeceu. Uniformes a assustavam. Olhou suplicante para meu avô, mas ele a ignorou. Minha mãe, cujo inglês era impecável, dirigiu-se ao policial. "Meu marido é um homem religioso. Ele viajou durante mais de um ano da Europa para este país, e nunca quebrou as leis de nossa religião."

"Ei", disse o policial. "Não estou pedindo a ele que coma carne de porco. Estou apenas pedindo-lhe que tire o chapéu. Ele é americano."

Meu pai assentiu. Sorriu como fazia às vezes ao jogar xadrez com um adversário que tinha acabado de fazer um movimento crucial, mas errado.

"É porque sou americano que não tenho de tirar meu chapéu.", explicou ele. "Este é um país livre. A bandeira nos diz que somos livres", continuou. "Num país livre um judeu pode usar seu chapéu. Isso demonstra respeito à bandeira da liberdade. E agora vou assinar o livro. E votar."

O policial olhou para ele, como se considerando a validade de sua resposta, e então, encabulado, sorriu. O mesmo fez a Sra. Cunningham.

Minha mãe, minha avó e meu avô deram um passo à frente e também assinaram o registro, as faces brilhantes de orgulho. Um a um, eles desapareceram nas cabines de votação. Ouvi o clique das alavancas. Vi quando meu pai saiu e estendeu a mão ao policial, que a apertou vigorosamente.

Todo ano, quando espero na fila pela minha vez de votar, penso no meu pai e no policial chamado Pat, e na Sra. Cunningham. É então que me arrependo de não vestir-me com mais cuidado para esta ocasião solene e importante. Porém nunca perco uma eleição. O legado de meu pai continua intacto.
     
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