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  A Velocidade da Luz
 
Por Yaakov Brawer
 

Por milhares de anos, a informação viajou à velocidade de seu portador humano. Além do alcance do ouvido e do olho humanos, o homem podia comunicar-se com seu semelhante no máximo pelo meio mais rápido que pudesse usar para transportar fisicamente uma pessoa (ou animal) através da distância que os separava.

Mas há um século e meio, o próprio conceito de comunicação passou por uma transformação radical: o homem aprendeu a traduzir palavras em pulsos de energia passando através de um fio de cobre. Então as ondas do rádio foram descobertas e exploradas, liberando ainda mais o fluxo de informação das limitações impostas pela distância física – ideias e dados podiam agora ser transmitidos a vastas distâncias, praticamente ao mesmo tempo.

As novas tecnologias da comunicação proporcionaram uma vasta coleção de ferramentas que o ser humano – imbuído pelo Criador com a capacidade de escolher livremente entre o bem e o mal – podia utilizar para o melhoramento de si mesmo e do mundo, ou em seu detrimento. Porém ainda mais significativa é a maneira pelas quais estas descobertas mudaram nossa própria percepção da realidade. Pela primeira vez na nossa história, experimentamos a ausência de tempo.

Como seres físicos, vivemos num mundo definido por "espaço e tempo" – uma grade virtual em cujo contexto todos os objetos e eventos recebem um "local" que define seu relacionamento face a face um com o outro, colocando uma determinada "distância" entre eles. Percorrer esta distância "leva tempo": para ir do evento A até o evento B, deve-se primeiro passar pelos segundos ou séculos que os separam, um por vez; para que o objeto A exerça uma influência sobre o objeto B, deve primeiro transpor os milímetros ou milhas que os separam, um a cada vez. Em outras palavras, ir do ponto A ao ponto B é um processo – uma sequência de ações ocorrendo uma após a outra. Mas com a comunicação instantânea que dispomos o tempo não é mais um fator importante na conexão de dois pontos na terra, independentemente da distância entre eles; isto muda não apenas a maneira de vivermos como também de pensarmos.

Nós saberíamos que a "luz" existe e seríamos capazes de estudar suas características se jamais tivéssemos visto as trevas? Estaríamos conscientes do fenômeno da "vida" se jamais nos confrontássemos com sua deterioração e partida? Para conhecer uma coisa e apreciar suas qualidades e potenciais, devemos primeiro ultrapassar seus limites, pelo menos no reino da mente.

Por que o tempo é necessário? E por que é importante que entendamos o que o tempo é? Evidentemente, não podemos nem imaginar o que seria uma realidade realmente intemporal (tudo aconteceria de uma só vez? ou as coisas não "aconteceriam" de modo algum, somente seriam?). Mas não importa: se D’us tivesse criado um mundo sem tempo, esta seria a única forma de existência compreensível, e não teríamos idéia do que "tempo" seria. Portanto, o tempo é apenas uma das muitas maneiras de fazer nosso mundo "funcionar"? Ou existe uma razão mais profunda para esta específica formulação da realidade?

De modo contrário, poderíamos perguntar: Tendo sido colocados numa realidade limitada pelo tempo, por que recebemos a capacidade de forçar seus limites e avançar até a soleira da intemporalidade? É assim apenas para que possamos apreciar melhor o significado do tempo? Ou existe alguma outra razão mais profunda para que nossas vidas contextualizadas pelo tempo devam incluir também um vislumbre de uma realidade além das fronteiras do tempo?

Tempo Espiritual
Mesmo a Criação do mundo feita por D’us levou "tempo".

A Torá relata como D’us criou o mundo em seis dias.

Num nível mais profundo, os mestres cabalistas referem-se ao mundo físico como o último elo de uma ordem de evolução – uma cadeia cósmica de "mundos" expandindo-se do céu até a terra. A Cabalá descreve como D’us começou Sua obra de criação ao criar todas as existências em sua forma mais sublime e espiritual, e então prosseguiu fazendo-as evoluir e se metamorfosear, em muitas etapas e estágios, até formas sucessivamente mais concretas, por fim produzindo nosso mundo físico – a incorporação mais "inferior" e mais tangível dessas realidades.

Por exemplo, a água física é o produto final de uma série de criações mais espirituais, tais como a emoção do amor e o Divino atributo de chesed (benevolência); a terra física é a encarnação material da sucessão de criações que incluem conceitos como "feminilidade" e "receptividade," e se originam no Divino atributo de malchut ("realeza"). E assim ocorre com todo objeto, força e fenômeno em nosso mundo: cada um existe nos muitos níveis do Seder Hishtalshelut, indo desde seu estado mais etéreo até sua forma mais corpórea.

Não apenas o conteúdo de nosso mundo físico, como também seus parâmetros de definição – espaço e tempo – são produtos "fim da linha" do Seder Hishtalshelut.

Conhecemos espaço como as três dimensões em cujo contexto os objetos físicos são posicionados em relação espacial um com o outro (acima, ao lado, atrás, etc.).

Porém há também um espaço conceitual: falamos de planos "superior" e "inferior" da realidade; nós descrevemos idéias como "profundas" ou "superficiais." Portanto, entidades espirituais também ocupam um "espaço" que define sua posição na relação um com o outro e com o mundo que ocupam. O raciocínio comum é que estas caracterizações de "espaço conceitual" são meramente projeções mentais dos fenômenos físicos numa tentativa de nossa mente física de contemplar e discutir abstrações metafísicas. A verdade, dizem os cabalistas, é exatamente o oposto: o espaço origina-se como um fenômeno totalmente espiritual, e então "desce" por meio do Seder Hishtalshelut para evoluir até formas crescentemente mais concretas. Assim o espaço físico deriva do "espaço conceitual," que por sua vez evoluiu de uma forma ainda mais abstrata de espaço, e assim por diante. Quanto mais alto subimos na cadeia de Hishtalshelut, mais abstrato e etéreo é o espaço daquele "mundo" específico.

O tempo, também, existe em muitos níveis, ao evoluir de sua forma mais espiritual até "nosso" tempo físico. Aquilo que sentimos como uma flecha só de ida por meio dos tempos do passado, presente e futuro é apenas a última e mais concreta encarnação do elemento ou fenômeno do tempo. Conforme ele desce através de Seder Hishtalshelut, o tempo é expresso de muitas formas: é a essência do movimento, causa, e mudança; ele fundamenta o pulso da vida, a natureza processional da razão e o pêndulo do sentimento.

Embora o tempo físico seja cronológico – seu "passado" ocorre antes de seu "futuro" – o tempo espiritual não é tão limitado. Por exemplo, os conceitos A (1+1=2) e B (2-1=1) ocupam posições diferentes na linha do tempo ou lógica: A precede B na seqüência lógica (i.e., porque um mais um é igual a dois, portanto dois menos um é igual a um). Mas o fato de que B "segue" A não significa que exista um ponto no tempo físico no qual A existe e B não. Ambos existem sempre, mesmo quando o "primeiro" causa o "segundo". Ou, para tirar um exemplo do "mundo" da emoção: o sentimento A pode causar o sentimento B (ex., um sentimento de reverência e respeito para com um ser notável e magnífico produz uma ânsia de se aproximar deste ser, e de ser tocado por sua grandeza), mas o possuidor destes dois sentimentos sempre tem ambos – eles se desenvolvem simultaneamente em seu coração, embora o "primeiro" (a reverência) seja a raiz e a causa do "segundo" (a ânsia de se aproximar).

Em outras palavras, realidades espirituais como ideias e sentimentos também existem dentro do "tempo," porém o deles é uma forma mais espiritual e abstrata de tempo, transcendendo as limitações "uma a cada vez" e "viagem só de ida" do tempo físico. O próprio Seder Hishtalshelut é uma função do tempo espiritual: o próprio conceito de uma "ordem" e uma "evolução" presume uma realidade governada por causa e efeito. Evidentemente, a evolução da criação do espírito à matéria não "levou tempo" no sentido comum de que a palavra de D’us não tece de "esperar" pelas fases e estágios sucessivos do Seder Hishtalshelut para liberar seu produto final. Em termos de tempo físico, a criação do mundo físico – o resultado desejado por D’us com o processo da criação – foi instantâneo. Porém no nível conceitual, "tempo" é a estrutura dentro da qual os muitos níveis da realidade criada se desdobram. Assim, o tempo pode ser considerado como a "primeira" criação. Como a criação é um processo no qual uma série de mundos evolui a partir (e portanto "depois) de outro, é um evento que "leva tempo" – pelo menos no sentido mais abstrato do termo.

Por outro lado, o ato de D’us da criação não ocupou lugar "no" tempo, o que implicaria que havia algo (i.e., o fenômeno do tempo) que não foi criado por D’us!

Então, se o tempo não pré-existiu à criação, mas mesmo assim é um componente necessário dela, isso significa que o tempo passou a existir como uma parte integral do próprio conceito "criação" (que é em si mesma uma entidade criada).

Em outras palavras, o tempo existe porque D’us desejou que a criação constituísse um processo – uma cadeia de mundos estendendo-se do céu para a terra, cada qual produto de seu "predecessor." Sem tempo (no nível mais abstrato) não poderia haver um Seder Hishtalshelut; e sem tempo (no nível físico) nós, que podemos apenas entender conceitos espirituais como abstrações de seus opostos em nossa realidade física, não podemos conceber, muito menos contemplar, a "ordem de evolução" conectando as obras mais sublimes do Criador a nosso próprio mundo.

A Parábola

Evidentemente, D’us não "precisa" disso tudo. Ele poderia ter criado o mundo físico de modo realmente instantâneo em termos de tempo físico como também no sentido conceitual, sem passar pelos estágios do Seder Hishtalshelut. Então, por que criar uma cadeia inteira de universos povoados por versões espirituais de nossa realidade, somente para que nosso mundo pudesse solidificar-se em um ser como seu elo mais inferior? Por que não simplesmente prosseguir e criar a realidade física como é, pois este era o objetivo da criação?

Em qualquer ato de criação ou desenvolvimento, o método que proporciona resultados instantâneos representa a atitude mais direta e conveniente – no que tange ao criador ou aquele que desenvolveu. Mas e quanto àqueles que estão no fim que recebe? Como é uma abordagem assim – em oposição ao processo evolucionário de fase – refletido na natureza do produto final? Como isso afeta sua utilidade para aqueles para quem ele se destina?

Consideremos o exemplo de um professor que deseja transmitir uma ideia a seu aluno, e cria então uma nova visão mental dentro da mente do pupilo. Nosso professor tem duas abordagens possíveis abertas a ele. Pode tomar a "abordagem direta" e simplesmente declamar a idéia como se ele, o professor, a entende. Ou pode "simplificar" a idéia por meio de uma parábola ou metáfora, trazê-la ao nível do aluno, revestindo-a de termos e conceitos do mundo do estudante.

Em determinados casos, rebaixá-la apenas um nível poderia não ser suficiente – mesmo a parábola poderia ser muito sutil para a mente não-refinada do aluno. Neste caso, o paciente professor revestirá a parábola com ainda outra camada – ou até mesmo numerosas camadas de alegoria, até que sua idéia mais abstrata tenha sido suficientemente facilitada para a compreensão da mente do pupilo.

Quando isso é conseguido, e o conceito foi "disfarçado" com sucesso para a mente do aluno dentro de seus invólucros alegóricos, o aluno pode então prosseguir e ponderar a parábola, para buscar seu significado mais profundo. Por fim, o pupilo pode ter sucesso em seus esforços de desnudar o conceito de sua camada mais externa de concretização e revelar a próxima camada. Sabendo que esta, também, é apenas uma alegoria, o aluno repetirá o processo. Em última instância, talvez somente depois de muitos anos de esforço mental e maturação intelectual, o aluno descobrirá o âmago da sabedoria.

Mas por que se dar ao trabalho? Por que não usar a "abordagem direta" e simplesmente articular o conceito em toda sua profundidade? Porque se o professor assim fizesse, suas palavras seriam totalmente incompreensíveis para o aluno. Este precisa registrar as palavras do mestre; ele pode revisá-las e aprender a repeti-las ao pé da letra; ele pode até, se insistir bastante, convencer-se de que as compreende; porém, na verdade, ele não ganhou um milímetro de discernimento do seu significado.

Certamente, D’us poderia ter criado nossa realidade física de maneira "instantânea," sem "se preocupar" com um Seder Hishtalshelut. Mas aonde isso nos levaria? Nós e nosso mundo existiríamos, mas seríamos capazes de qualquer compreensão quanto ao significado de nossa existência? Poderíamos aprender sobre nossa missão na vida e nosso relacionamento com nosso Criador, mas será que conseguiríamos entendê-lo?

D’us desejou que nossas vidas fossem uma parábola (de uma parábola de uma parábola de uma parábola) de uma realidade mais elevada. Ele desejou que o mundo que habitamos fosse a camada mais externa de realidades sucessivamente mais abstratas e espirituais, cada qual um único salto de discernimento a partir daquela dentro de si, de modo que ao iniciar com nossa compreensão de nossa própria realidade pudéssemos ascender, passo a passo, em nosso entendimento de onde viemos e o que e por que somos.

As limitações de Hishtalshelut

Daí vem a necessidade para o Seder Hishtalshelut. É por isso que a essência do tempo – os próprios fenômenos da "evolução," "causa e efeito," e "processo" – foi criada: para que nossa existência física não fosse uma ilha no vácuo do elo incompreensível mas conectado numa cadeia de mundos levando a suas sublimes origens na energia criativa de D’us. E como vivenciamos o tempo em nosso nível físico, podemos nos relacionar com o conceito de um Seder Hishtalshelut em "tempo espiritual" e traçar novamente o processo de criação, galgando os elos desta cadeia cósmica. Mas este é apenas um lado da história. O Seder Hishtalshelut é crucial para nossa missão na vida, que dita que nós não apenas servimos a D’us, como também nos esforçamos para entender a natureza de Seu relacionamento com nossa existência. Mas a "cadeia de evolução" é não somente um elo – é também uma tela, como a parábola que transmite a ideia mas também simplifica sua profundidade e facilita sua sutileza. Se nosso relacionamento com o Todo Poderoso fosse confinado ao canal oferecido pelo Seder Hishtalshelut, isso significaria que não temos conexão direta com a infinita e totalmente indefinível realidade de nosso Criador e com a Divina essência da criação. Isso significaria que podemos entender estas verdades somente através das diversas vestes nas quais D’us se ocultou a fim de tornar-Se, e à Sua criação, compreensíveis para nós.

Voltemos ao nosso professor e aluno.

Se você se recorda, o professor está em meio da explicação de uma parábola (a última e mais "externa" de uma sucessão de parábolas) que incorporarão o conceito, mas também o obscurecerão e transmitirão somente a versão simplificada e mais grosseira dela, que o aluno é capaz de compreender. Mas o professor deseja também, de certa forma, permitir que seu aluno vislumbre "a coisa real," para passar a ele uma visão verdadeira, embora fugidia, do conceito em toda sua sublime pureza. Ele deseja que o aluno saiba que esse não é o ponto principal; ele quer que o aluno avalie a extensão daquilo que está subjacente. Como a abordagem da "parábola múltipla" fornece ao aluno as ferramentas com as quais terminará por atingir um entendimento completo e abrangente do conceito, ela não está livre de suas próprias ciladas. Há um perigo envolvido, bem como o perigo de que o aluno fique atolado na própria parábola (ou em sua segunda, terceira ou quarta abstração) e deixe de levá-la até seu significado definitivo; que ele venha a confundir uma versão superficial e externa do ensinamento de seu mestre como o fim de sua busca intelectual.

Então, no decorrer de sua explicação, o professor permitirá que uma palavra, um gesto, uma inflexão de voz, escape das rígidas restrições da parábola. Ele permitirá que um relance de sabedoria irrestrita passe através das diversas camadas de alegoria que encerram o conceito puro. Este "relance" será, evidentemente, profundamente incompreensível para o aluno; porém imprimirá sobre ele uma apreciação da profundidade do conceito dentro da parábola – uma avaliação de como ele ainda está longe de uma verdadeira compreensão dos ensinamentos de seu mestre.

Como prova disso, D’us fez mais que fazer de nós criaturas no tempo: Ele também nos possibilitou contemplar seus limites e mesmo vivenciar uma semelhança de "intemporalidade" em nossa vida cotidiana. E nosso complexo relacionamento com o tempo físico espelha o relacionamento de nossa alma com a parte oposta e predecessor espiritual. Mesmo quando D’us Se relaciona conosco através de Seder Hishtalshelut. que ordena que nossa experiência d'Ele seja filtrada por meio de uma cadeia de processos intelectuais, emocionais e espirituais. Ele também concedeu-nos momentos de contato direto e sem barreiras com Ele próprio – momentos de conexão "instantânea" que transcendem a ordem da criação.

     
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