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Por milhares de
anos, a informação viajou à velocidade de seu portador
humano. Além do alcance do ouvido e do olho humanos, o homem podia
comunicar-se com seu semelhante no máximo pelo meio mais rápido
que pudesse usar para transportar fisicamente uma pessoa (ou animal) através
da distância que os separava.
Mas há um século e meio, o próprio conceito de comunicação
passou por uma transformação radical: o homem aprendeu a
traduzir palavras em pulsos de energia passando através de um fio
de cobre. Então as ondas do rádio foram descobertas e exploradas,
liberando ainda mais o fluxo de informação das limitações
impostas pela distância física – ideias e dados podiam
agora ser transmitidos a vastas distâncias, praticamente ao mesmo
tempo.
As novas tecnologias da comunicação proporcionaram uma vasta
coleção de ferramentas que o ser humano – imbuído
pelo Criador com a capacidade de escolher livremente entre o bem e o mal
– podia utilizar para o melhoramento de si mesmo e do mundo, ou
em seu detrimento. Porém ainda mais significativa é a maneira
pelas quais estas descobertas mudaram nossa própria percepção
da realidade. Pela primeira vez na nossa história, experimentamos
a ausência de tempo.
Como seres físicos, vivemos num mundo definido por "espaço
e tempo" – uma grade virtual em cujo contexto todos os objetos
e eventos recebem um "local" que define seu relacionamento face
a face um com o outro, colocando uma determinada "distância"
entre eles. Percorrer esta distância "leva tempo": para
ir do evento A até o evento B, deve-se primeiro passar pelos segundos
ou séculos que os separam, um por vez; para que o objeto A exerça
uma influência sobre o objeto B, deve primeiro transpor os milímetros
ou milhas que os separam, um a cada vez. Em outras palavras, ir do ponto
A ao ponto B é um processo – uma sequência de ações
ocorrendo uma após a outra. Mas com a comunicação
instantânea que dispomos o tempo não é mais um fator
importante na conexão de dois pontos na terra, independentemente
da distância entre eles; isto muda não apenas a maneira de
vivermos como também de pensarmos.
Nós saberíamos que a "luz" existe e seríamos
capazes de estudar suas características se jamais tivéssemos
visto as trevas? Estaríamos conscientes do fenômeno da "vida"
se jamais nos confrontássemos com sua deterioração
e partida? Para conhecer uma coisa e apreciar suas qualidades e potenciais,
devemos primeiro ultrapassar seus limites, pelo menos no reino da mente.
Por que o tempo é necessário? E por que é importante
que entendamos o que o tempo é? Evidentemente, não podemos
nem imaginar o que seria uma realidade realmente intemporal (tudo aconteceria
de uma só vez? ou as coisas não "aconteceriam"
de modo algum, somente seriam?). Mas não importa: se D’us
tivesse criado um mundo sem tempo, esta seria a única forma de
existência compreensível, e não teríamos idéia
do que "tempo" seria. Portanto, o tempo é apenas uma
das muitas maneiras de fazer nosso mundo "funcionar"? Ou existe
uma razão mais profunda para esta específica formulação
da realidade?
De modo contrário, poderíamos perguntar: Tendo sido colocados
numa realidade limitada pelo tempo, por que recebemos a capacidade de
forçar seus limites e avançar até a soleira da intemporalidade?
É assim apenas para que possamos apreciar melhor o significado
do tempo? Ou existe alguma outra razão mais profunda para que nossas
vidas contextualizadas pelo tempo devam incluir também um vislumbre
de uma realidade além das fronteiras do tempo?
Tempo Espiritual
Mesmo a Criação do mundo feita por D’us levou "tempo".
A Torá relata como D’us criou o mundo em seis dias.
Num nível mais profundo, os mestres cabalistas referem-se ao mundo
físico como o último elo de uma ordem de evolução
– uma cadeia cósmica de "mundos" expandindo-se
do céu até a terra. A Cabalá descreve como D’us
começou Sua obra de criação ao criar todas as existências
em sua forma mais sublime e espiritual, e então prosseguiu fazendo-as
evoluir e se metamorfosear, em muitas etapas e estágios, até
formas sucessivamente mais concretas, por fim produzindo nosso mundo físico
– a incorporação mais "inferior" e mais
tangível dessas realidades.
Por exemplo, a água física é o produto final de uma
série de criações mais espirituais, tais como a emoção
do amor e o Divino atributo de chesed (benevolência); a terra física
é a encarnação material da sucessão de criações
que incluem conceitos como "feminilidade" e "receptividade,"
e se originam no Divino atributo de malchut ("realeza"). E assim
ocorre com todo objeto, força e fenômeno em nosso mundo:
cada um existe nos muitos níveis do Seder Hishtalshelut, indo desde
seu estado mais etéreo até sua forma mais corpórea.
Não apenas o conteúdo de nosso mundo físico, como
também seus parâmetros de definição –
espaço e tempo – são produtos "fim da linha"
do Seder Hishtalshelut.
Conhecemos espaço como as três dimensões em cujo contexto
os objetos físicos são posicionados em relação
espacial um com o outro (acima, ao lado, atrás, etc.).
Porém há também um espaço conceitual: falamos
de planos "superior" e "inferior" da realidade; nós
descrevemos idéias como "profundas" ou "superficiais."
Portanto, entidades espirituais também ocupam um "espaço"
que define sua posição na relação um com o
outro e com o mundo que ocupam. O raciocínio comum é que
estas caracterizações de "espaço conceitual"
são meramente projeções mentais dos fenômenos
físicos numa tentativa de nossa mente física de contemplar
e discutir abstrações metafísicas. A verdade, dizem
os cabalistas, é exatamente o oposto: o espaço origina-se
como um fenômeno totalmente espiritual, e então "desce"
por meio do Seder Hishtalshelut para evoluir até formas crescentemente
mais concretas. Assim o espaço físico deriva do "espaço
conceitual," que por sua vez evoluiu de uma forma ainda mais abstrata
de espaço, e assim por diante. Quanto mais alto subimos na cadeia
de Hishtalshelut, mais abstrato e etéreo é o espaço
daquele "mundo" específico.
O tempo, também, existe em muitos níveis, ao evoluir de
sua forma mais espiritual até "nosso" tempo físico.
Aquilo que sentimos como uma flecha só de ida por meio dos tempos
do passado, presente e futuro é apenas a última e mais concreta
encarnação do elemento ou fenômeno do tempo. Conforme
ele desce através de Seder Hishtalshelut, o tempo é expresso
de muitas formas: é a essência do movimento, causa, e mudança;
ele fundamenta o pulso da vida, a natureza processional da razão
e o pêndulo do sentimento.
Embora o tempo físico seja cronológico – seu "passado"
ocorre antes de seu "futuro" – o tempo espiritual não
é tão limitado. Por exemplo, os conceitos A (1+1=2) e B
(2-1=1) ocupam posições diferentes na linha do tempo ou
lógica: A precede B na seqüência lógica (i.e.,
porque um mais um é igual a dois, portanto dois menos um é
igual a um). Mas o fato de que B "segue" A não significa
que exista um ponto no tempo físico no qual A existe e B não.
Ambos existem sempre, mesmo quando o "primeiro" causa o "segundo".
Ou, para tirar um exemplo do "mundo" da emoção:
o sentimento A pode causar o sentimento B (ex., um sentimento de reverência
e respeito para com um ser notável e magnífico produz uma
ânsia de se aproximar deste ser, e de ser tocado por sua grandeza),
mas o possuidor destes dois sentimentos sempre tem ambos – eles
se desenvolvem simultaneamente em seu coração, embora o
"primeiro" (a reverência) seja a raiz e a causa do "segundo"
(a ânsia de se aproximar).
Em outras palavras, realidades espirituais como ideias e sentimentos também
existem dentro do "tempo," porém o deles é uma
forma mais espiritual e abstrata de tempo, transcendendo as limitações
"uma a cada vez" e "viagem só de ida" do tempo
físico. O próprio Seder Hishtalshelut é uma função
do tempo espiritual: o próprio conceito de uma "ordem"
e uma "evolução" presume uma realidade governada
por causa e efeito. Evidentemente, a evolução da criação
do espírito à matéria não "levou tempo"
no sentido comum de que a palavra de D’us não tece de "esperar"
pelas fases e estágios sucessivos do Seder Hishtalshelut para liberar
seu produto final. Em termos de tempo físico, a criação
do mundo físico – o resultado desejado por D’us com
o processo da criação – foi instantâneo. Porém
no nível conceitual, "tempo" é a estrutura dentro
da qual os muitos níveis da realidade criada se desdobram. Assim,
o tempo pode ser considerado como a "primeira" criação.
Como a criação é um processo no qual uma série
de mundos evolui a partir (e portanto "depois) de outro, é
um evento que "leva tempo" – pelo menos no sentido mais
abstrato do termo.
Por outro lado, o ato de D’us da criação não
ocupou lugar "no" tempo, o que implicaria que havia algo (i.e.,
o fenômeno do tempo) que não foi criado por D’us!
Então, se o tempo não pré-existiu à criação,
mas mesmo assim é um componente necessário dela, isso significa
que o tempo passou a existir como uma parte integral do próprio
conceito "criação" (que é em si mesma uma
entidade criada).
Em outras palavras, o tempo existe porque D’us desejou que a criação
constituísse um processo – uma cadeia de mundos estendendo-se
do céu para a terra, cada qual produto de seu "predecessor."
Sem tempo (no nível mais abstrato) não poderia haver um
Seder Hishtalshelut; e sem tempo (no nível físico) nós,
que podemos apenas entender conceitos espirituais como abstrações
de seus opostos em nossa realidade física, não podemos conceber,
muito menos contemplar, a "ordem de evolução"
conectando as obras mais sublimes do Criador a nosso próprio mundo.
A Parábola
Evidentemente, D’us não "precisa" disso tudo. Ele
poderia ter criado o mundo físico de modo realmente instantâneo
em termos de tempo físico como também no sentido conceitual,
sem passar pelos estágios do Seder Hishtalshelut. Então,
por que criar uma cadeia inteira de universos povoados por versões
espirituais de nossa realidade, somente para que nosso mundo pudesse solidificar-se
em um ser como seu elo mais inferior? Por que não simplesmente
prosseguir e criar a realidade física como é, pois este
era o objetivo da criação?
Em qualquer ato de criação ou desenvolvimento, o método
que proporciona resultados instantâneos representa a atitude mais
direta e conveniente – no que tange ao criador ou aquele que desenvolveu.
Mas e quanto àqueles que estão no fim que recebe? Como é
uma abordagem assim – em oposição ao processo evolucionário
de fase – refletido na natureza do produto final? Como isso afeta
sua utilidade para aqueles para quem ele se destina?
Consideremos o exemplo de um professor que deseja transmitir uma ideia
a seu aluno, e cria então uma nova visão mental dentro da
mente do pupilo. Nosso professor tem duas abordagens possíveis
abertas a ele. Pode tomar a "abordagem direta" e simplesmente
declamar a idéia como se ele, o professor, a entende. Ou pode "simplificar"
a idéia por meio de uma parábola ou metáfora, trazê-la
ao nível do aluno, revestindo-a de termos e conceitos do mundo
do estudante.
Em determinados casos, rebaixá-la apenas um nível poderia
não ser suficiente – mesmo a parábola poderia ser
muito sutil para a mente não-refinada do aluno. Neste caso, o paciente
professor revestirá a parábola com ainda outra camada –
ou até mesmo numerosas camadas de alegoria, até que sua
idéia mais abstrata tenha sido suficientemente facilitada para
a compreensão da mente do pupilo.
Quando isso é conseguido, e o conceito foi "disfarçado"
com sucesso para a mente do aluno dentro de seus invólucros alegóricos,
o aluno pode então prosseguir e ponderar a parábola, para
buscar seu significado mais profundo. Por fim, o pupilo pode ter sucesso
em seus esforços de desnudar o conceito de sua camada mais externa
de concretização e revelar a próxima camada. Sabendo
que esta, também, é apenas uma alegoria, o aluno repetirá
o processo. Em última instância, talvez somente depois de
muitos anos de esforço mental e maturação intelectual,
o aluno descobrirá o âmago da sabedoria.
Mas por que se dar ao trabalho? Por que não usar a "abordagem
direta" e simplesmente articular o conceito em toda sua profundidade?
Porque se o professor assim fizesse, suas palavras seriam totalmente incompreensíveis
para o aluno. Este precisa registrar as palavras do mestre; ele pode revisá-las
e aprender a repeti-las ao pé da letra; ele pode até, se
insistir bastante, convencer-se de que as compreende; porém, na
verdade, ele não ganhou um milímetro de discernimento do
seu significado.
Certamente, D’us poderia ter criado nossa realidade física
de maneira "instantânea," sem "se preocupar"
com um Seder Hishtalshelut. Mas aonde isso nos levaria? Nós e nosso
mundo existiríamos, mas seríamos capazes de qualquer compreensão
quanto ao significado de nossa existência? Poderíamos aprender
sobre nossa missão na vida e nosso relacionamento com nosso Criador,
mas será que conseguiríamos entendê-lo?
D’us desejou que nossas vidas fossem uma parábola (de uma
parábola de uma parábola de uma parábola) de uma
realidade mais elevada. Ele desejou que o mundo que habitamos fosse a
camada mais externa de realidades sucessivamente mais abstratas e espirituais,
cada qual um único salto de discernimento a partir daquela dentro
de si, de modo que ao iniciar com nossa compreensão de nossa própria
realidade pudéssemos ascender, passo a passo, em nosso entendimento
de onde viemos e o que e por que somos.
As limitações de Hishtalshelut
Daí vem a necessidade para o Seder Hishtalshelut. É por
isso que a essência do tempo – os próprios fenômenos
da "evolução," "causa e efeito," e "processo"
– foi criada: para que nossa existência física não
fosse uma ilha no vácuo do elo incompreensível mas conectado
numa cadeia de mundos levando a suas sublimes origens na energia criativa
de D’us. E como vivenciamos o tempo em nosso nível físico,
podemos nos relacionar com o conceito de um Seder Hishtalshelut em "tempo
espiritual" e traçar novamente o processo de criação,
galgando os elos desta cadeia cósmica. Mas este é apenas
um lado da história. O Seder Hishtalshelut é crucial para
nossa missão na vida, que dita que nós não apenas
servimos a D’us, como também nos esforçamos para entender
a natureza de Seu relacionamento com nossa existência. Mas a "cadeia
de evolução" é não somente um elo –
é também uma tela, como a parábola que transmite
a ideia mas também simplifica sua profundidade e facilita sua sutileza.
Se nosso relacionamento com o Todo Poderoso fosse confinado ao canal oferecido
pelo Seder Hishtalshelut, isso significaria que não temos conexão
direta com a infinita e totalmente indefinível realidade de nosso
Criador e com a Divina essência da criação. Isso significaria
que podemos entender estas verdades somente através das diversas
vestes nas quais D’us se ocultou a fim de tornar-Se, e à
Sua criação, compreensíveis para nós.
Voltemos ao nosso professor e aluno.
Se você se recorda, o professor está em meio da explicação
de uma parábola (a última e mais "externa" de
uma sucessão de parábolas) que incorporarão o conceito,
mas também o obscurecerão e transmitirão somente
a versão simplificada e mais grosseira dela, que o aluno é
capaz de compreender. Mas o professor deseja também, de certa forma,
permitir que seu aluno vislumbre "a coisa real," para passar
a ele uma visão verdadeira, embora fugidia, do conceito em toda
sua sublime pureza. Ele deseja que o aluno saiba que esse não é
o ponto principal; ele quer que o aluno avalie a extensão daquilo
que está subjacente. Como a abordagem da "parábola
múltipla" fornece ao aluno as ferramentas com as quais terminará
por atingir um entendimento completo e abrangente do conceito, ela não
está livre de suas próprias ciladas. Há um perigo
envolvido, bem como o perigo de que o aluno fique atolado na própria
parábola (ou em sua segunda, terceira ou quarta abstração)
e deixe de levá-la até seu significado definitivo; que ele
venha a confundir uma versão superficial e externa do ensinamento
de seu mestre como o fim de sua busca intelectual.
Então, no decorrer de sua explicação, o professor
permitirá que uma palavra, um gesto, uma inflexão de voz,
escape das rígidas restrições da parábola.
Ele permitirá que um relance de sabedoria irrestrita passe através
das diversas camadas de alegoria que encerram o conceito puro. Este "relance"
será, evidentemente, profundamente incompreensível para
o aluno; porém imprimirá sobre ele uma apreciação
da profundidade do conceito dentro da parábola – uma avaliação
de como ele ainda está longe de uma verdadeira compreensão
dos ensinamentos de seu mestre.
Como prova disso, D’us fez mais que fazer de nós criaturas
no tempo: Ele também nos possibilitou contemplar seus limites e
mesmo vivenciar uma semelhança de "intemporalidade" em
nossa vida cotidiana. E nosso complexo relacionamento com o tempo físico
espelha o relacionamento de nossa alma com a parte oposta e predecessor
espiritual. Mesmo quando D’us Se relaciona conosco através
de Seder Hishtalshelut. que ordena que nossa experiência d'Ele seja
filtrada por meio de uma cadeia de processos intelectuais, emocionais
e espirituais. Ele também concedeu-nos momentos de contato direto
e sem barreiras com Ele próprio – momentos de conexão
"instantânea" que transcendem a ordem da criação.
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