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A dieta vegetariana desfruta
um certo grau de popularidade no Ocidente. Alguns escolhem ser vegetarianos
por razões estéticas: não apreciam o sabor da carne,
ou consideram uma dieta à base de carne como menos saudável.
Outros são vegetarianos porque consideram moralmente errado matar
um animal para comer.
O que diz o Judaísmo a sobre isso?
Primeiro, vejamos a opinião do Judaísmo sobre o mundo: idealmente,
não deveria haver barreiras entre a existência física
e espiritual da pessoa. A vida deveria ser uma contínua conexão
ao Mestre do Universo, o Autor de nosso ser. Sob a perspectiva judaica,
atividades que se apresentam como mundanas – comer, dormir, conduzir
os negócios, relacionamentos, etc. – são parte do
serviço a D'us, não menos que a observação
ritual de prece, estudo e caridade.
Atividades mundanas são a ponte através da qual acessamos
âmbitos mais elevados. Portanto, o ato de comer não é
uma indulgência sensual desprovida de sentido, nem um meio necessário
de manter nosso bem-estar físico. Pode e deve ser a proverbial
escada para o céu – um meio de trazer santidade a nossas
vidas.
O Talmud diz que ao final da vida da pessoa, a primeira pergunta feita
por D'us é: "Você saboreou todo fruto que Eu coloquei
na terra?" Somos conclamados a apreciar toda as benesses da vida.
De fato, Maimônides considera uma mitsvá partilhar a carne
nos feriados, para intensificar o prazer e o júbilo da pessoa.
(Na prática, isso não se aplica àqueles que não
apreciam estas comidas.)
Em geral, o Judaísmo permite que se coma carne, desde que o animal
seja: de uma espécie permitida pela Torá (Vayicrá
cap. 11); ritualmente abatida (shechitá – Devarim 12:21),
tenha removidos os elementos não-casher (sangue e determinadas
gorduras e nervos - Vayicrá 3:17; Bereshit 32:33); seja preparado
sem misturar carne e leite (Shemot 34:26); e as bênçãos
apropriadas sejam recitadas (Devarim 8:10).
Ao alimentar-se na maneira prescrita pela Torá, e com a intenção
apropriada, diz o Talmud, a mesa da pessoa se torna um altar virtual a
serviço de D'us.
Compaixão pelos animais
Ao mesmo tempo, a Torá enfatiza a compaixão pelos animais.
De fato, os Patriarcas são carinhosamente conhecidos como os "Sete
Pastores", e o Talmud descreve como D'us escolheu Moshê para
liderar os judeus baseado em seu carinhoso cuidado pelos rebanhos de ovelhas.
Aqui estão alguns exemplos de legislação judaica
sobre o tratamento ético aos animais:
É proibido causar sofrimento aos animais – tzaar ba'alei
chaim. (Talmud – Baba Metzia 32b, baseado em Shemot 23:5).
A pessoa é obrigada a aliviar o sofrimento de um animal (i.e.,
torná-lo mais leve), mesmo se o animal pertencer ao seu inimigo.
(Shemot 23:5)
Se um animal depende de você para o sustento, é proibido
comer antes de alimentar o animal. (Talmud Berachot 40a, baseado em Devarim
11:15)
Somos obrigados a conceder aos nossos animais um dia de descanso no Shabat.
(Shemot 20:10)
É proibido usar duas espécies diferentes para puxar o mesmo
arado, pois é injusto para com o animal mais fraco. (Devarim 22:10)
É uma mitsvá espantar a ave mãe antes de tirar seus
filhotes. (Devarim 22:7)
É proibido matar uma vaca e seu bezerro no mesmo dia. (Vayicrá
22:28)
É proibido cortar e comer o membro de um animal vivo. (Bereshit
9:4; esta é uma das leis Noachidas que se aplicam tanto a judeus
como a não-judeus).
Shechitá (abate ritual) deve ser feito com o mínimo de sofrimento
para o animal. A lâmina deve ser meticulosamente examinada para
assegurar a forma de morte mais indolor possível. (Chinuch 451;
Pri Megadim – Introdução às Leis de Shechitá).
Caçar animais por esporte é visto com séria desaprovação
pelos nossos Sábios (Talmud - Avodá Zara 18b; Noda BeYehuda
2-YD 10).
Lidar casualmente ou por esporte com a vida de um animal é antiético
aos valores judaicos. Esta sensibilidade é ilustrada pela seguinte
história:
Numa pequena aldeia na Europa, um shochet (abatedor ritual) procurava
água para aplicar à sua lâmina no processo de preparação.
A distância, observou um senhor idoso, olhando para ele e balançando
a cabeça como que em desaprovação. Finalmente, o
jovem shochet pediu uma explicação ao homem.
Este respondeu que ao observá-lo preparando a lâmina, lembrou-se
do ocorrido há muitos anos quando ele, então um jovem, observara
o Rabi Israel Báal Shem Tov (fundador do Movimento Chassídico)
fazendo a mesma coisa. Porém a diferença, explicou ele,
foi que Rabi Israel não precisava procurar água para afiar
a lâmina – mas sim usava as lágrimas que escorriam
dos seus olhos.
Hierarquia da Criação
Embora a Lei Judaica defenda o tratamento ético aos animais, o
Judaísmo também afirma que os animais são feitos
para servir ao homem, como está escrito: "Que o homem domine
os peixes, aves e animais" (Bereshit 1:26). Há uma clara hierarquia
da criação, com o homem no pináculo.
Maimônides identifica quatro níveis na hierarquia da criação,
e cada criatura deriva seu sustento do nível abaixo do ser:
Nível 1 : Domem - o reino silencioso, inanimado (terra e minerais)
constitui a existência de nível mais baixo, e se auto-sustenta.
Nível 2: Tzomeach - a vegetação é nutrida
pelo nível anterior, a terra.
Nível 3: Chai – o reino animal come a maior parte da vegetação.
Nível 4: Medaber - seres humanos (lit., o ser falante) extrai seu
sustento comendo tanto vegetais quanto animais.
Quando o alimento é consumido, sua identidade se transforma naquela
do ser que o comeu. Assim o Talmud (Pessachim 59b) considera como moralmente
justificado comer animais somente quando estamos envolvidos em atividades
sagradas e espirituais. É somente então que o ser humano
concretiza seu potencial mais elevado, e o animal consumido é,
por assim dizer, elevado ao nível do "humano".
Na percepção judaica, o nível mais alto que um animal
pode atingir é ser consumido por um ser humano e usado para o serviço
de D'us. Um frango na mesa do Shabat é um frango de sorte! (Veja
Tanya, cap. 7)
Se, no entanto, a pessoa está agindo feito um animal, então
que direito tem de consumir seu "igual"? Que aperfeiçoamento
espiritual pode conferir sobre este animal ao comê-lo? Portanto,
antes de comer carne, devemos fazer a nós mesmos a questão
se, de fato, visto quem somos, estamos realmente beneficiando este animal?
Quando comer não é meramente um ato de "consumo impensado",
mas sim um ato com a clara intenção de que a força
e a energia que a pessoa extrairá da comida será utilizada
para beneficiar o mundo, então o ato de comer foi sublimado em
um ato mais elevado.
Extensão radicalizada
Os direitos dos animais pode ser uma faca de dois gumes. Embora o reino
animal seja importante e deva ser tratado eticamente, devemos reconhecer
que não há equivalência de espécies. Dentre
todos os seres vivos, somente a raça humana foi criada "à
imagem de D'us" (Bereshit 1:26).
Quando as linhas são pouco nítidas, quando tanto a vida
humana como a animal são consideradas igualmente sagradas, isso
pode desencadear uma perigosa filosofia que considera matar um ser humano
como não mais hediondo que matar um animal.
Rabi Yossef Albo (séc. 14) declara que esta filosofia tem suas
raízes na narrativa bíblica de Caim e Abel. Bereshit cap.
4 descreve como Caim levou um sacrifício de cereal, enquanto seu
irmão Abel ofereceu animais. Rabi Albo explica que Caim considerava
humanos e animais como iguais e, portanto, sentia não ter direito
de matá-los. Caim então estendeu esta lógica mal
orientada: se pessoas e animais são inerentemente iguais, então
assim como se permite tirar a vida de um animal, também se poderia
permitir tirar a vida do homem. Assim Caim conseguiu justificar o assassinato
de seu irmão.
Nos tempos modernos, a extensão radical da filosofia de Caim veio
à tona durante os 1930s, quando os nazistas passaram diversas leis
protegendo animais, restringindo o uso de animais vivos em experimentos
biomédicos (vivisecção). Enquanto isso, os nazistas
estavam matando milhões de seres humanos. (Na verdade, os judeus
foram legalmente relegados ao status de "sub-humanos".) As linhas
separando humano e animal tinham sido totalmente obscurecidas.
O filósofo Peter Singer, da Universidade de Princeton, tem escrito
e feito palestras sobre como o bem-estar de animais excede aquele de bebês
doentes; ele também conclama a sociedade a aceitar parcerias entre
seres humanos e animais domésticos.
O fato de o Judaísmo permitir que as pessoas se alimentem de animais
serve como uma barreira pragmática contra tamanho extremismo, lembrando
constantemente ao homem de seu status único entre a Criação
de D'us.
O cabalista do Século Dezoito, Rabi Moshe Chaim Lutzatto, explica
que todas as coisas vivas – humanos e animais – têm
almas. No entanto, nem todas as almas são criadas iguais. Os animais
têm uma alma que os anima e carrega dentro de si os instintos para
a sobrevivência, procriação, medo, etc. Somente os
seres humanos, com uma alma Divina, têm a capacidade de forjar um
relacionamento com D'us, a dimensão transcendente. Somente os humanos
têm a capacidade de escolher "prazeres da alma" mais elevados
– como ajudar os pobres, mesmo às custas de menos "prazeres
do corpo", como guardar mais comida para si mesmos.
Rabi Abraham Isaac Kook (presumivelmente vegetariano) escreve que ao homem
foi concedido o domínio sobre os animais para enfatizar nossa superioridade
espiritual e maiores obrigações espirituais. Se o homem
concedesse os mesmos direitos que os humanos aos animais, então
assim como não esperamos elevados padrões morais dos animais,
tragicamente, iríamos baixar também nossas expectativas
para os seres humanos.
Precedentes Históricos
Historicamente, Adam e Eva foram vegetarianos, pois está escrito:
"vegetais e frutas serão seu alimento" (Bereshit 1:29).
D'us somente permitiu carne a Nôach e seus descendentes após
o Dilúvio (Bereshit 9:3; Talmud Sanhedrin 59b).
Por que a mudança?
Alguns comentaristas explicam que antes do Dilúvio, o homem estava
acima da cadeia alimentar, com a responsabilidade de cuidar do mundo e
tudo dentro dele. Após o Dilúvio, o homem caiu de nível
e tornou-se ligado à cadeia alimentar, embora no topo dela. A humanidade
tinha descido em sua capacidade de influenciar o mundo animal através
de ações, e assim foi necessário influenciar o mundo
animal mais diretamente, ingerindo-os.
Rabi Yossef Albo, já mencionado, declara que a filosofia equivocada
de Caim foi adotada pelas gerações subsequentes, e a carne
foi permitida a Nôach para enfatizar a superioridade do ser humano
sobre o reino animal.
Outro comentarista, o Malbim, explica a mudança sob uma perspectiva
física. O pós-diluviano foi marcado por um enfraquecimento
geral da condição humana. À medida que a qualidade
da produção se tornava nutricionalmente inferior, e a humanidade
geograficamente dispersa e sujeita a climas variados, foi necessário
suplementar a dieta humana com produtos animais.
Alguns citam o precedente de Adam e Eva como uma indicação
de que num mundo perfeito, i.e., na época futura de Mashiach, os
seres humanos retornarão ao vegetarianismo universal. A grande
maioria de eruditos rabínicos, no entanto, afirma que as oferendas
de animais serão retomadas na Era Messiânica. Se fato, o
Talmud (Baba Batra 75a) declara que quando Mashiach chegar, D'us preparará
um banquete baseado em carne para os justos.
Resumo
Em conclusão, o Judaísmo aceita a ideia da dieta vegetariana,
embora dependendo da intenção da pessoa. O vegetarianismo
baseado na ideia de que não temos o direito moral de matar os animais
não é uma opinião aceita pelos judeus.
O vegetarianismo por motivos estéticos ou de saúde é
aceitável; na verdade, a ordem da Torá para "guardar
cuidadosamente" (Devarim 4:15) exige que prestemos atenção
aos assuntos de saúde relacionados a uma dieta baseada em carne.
Alguns pontos a considerar incluem o aumento na doença dos animais
criados em condições industriais, e a administração
de hormônios do crescimento, antibióticos e outras drogas
ministradas aos animais. Todos estes podem ser riscos em potencial à
saúde dos seres humanos.
Além disso, há a possível violação
de tzaar baalai chaim (causar sofrimento aos animais) resultante de métodos
de produção, transporte e abate em massa. O notável
sábio do Século Vinte, Rabi Moshe Feinstein, proibiu a criação
de vitelas em condições sem espaço, e proibiu alimentar
animais com produtos químicos em vez de comida, pois isso os privaria
do prazer de comer. (Igrot Moshê EH 4:92)
A consciência judaica exige constante atenção no sentido
de preservar e proteger nosso mundo natural.
Rabi Benzion de Bobov estava passeando com um discípulo, profundamente
envolvido numa conversa erudita. Quando passaram por uma árvore,
o aluno descuidadamente arrancou uma folha e a cortou em pedaços.
Rabi Benzion parou abruptamente. O aluno perguntou o que havia de errado.
Em resposta, o rabino perguntou-lhe por que havia arrancado a folha da
árvore.
O discípulo, chocado, não pôde formular uma resposta.
O rabino explicou que tudo que existe na natureza – aves, árvores,
cada folha de grama – tudo aquilo que D'us criou neste mundo, canta
sua própria forma de louvor ao seu Criador. Se eles forem necessários
como alimento, são ingeridos e se tornam parte da canção
das espécies mais elevadas. Porém arrancar a folha de uma
árvore sem qualquer motivo é desperdiçar silenciosamente
sua canção, impedindo-o de se juntar aos outros instrumentos
na sinfonia da natureza.
Sim, o Judaísmo permite a ingestão de carne, desde que a
intenção correta esteja presente: elevar a energia Divina
contida na carne ao nível humano mais elevado, utilizar a energia
derivada do alimento para cumprir responsabilidades morais e espirituais
e servir a D'us através dos prazeres do Seu mundo.
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