Vegetarianismo: Uma Perspectiva Judaica
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  Por Rebetsin Feige Twerski e Rabi Shraga Simmons
 

A dieta vegetariana desfruta um certo grau de popularidade no Ocidente. Alguns escolhem ser vegetarianos por razões estéticas: não apreciam o sabor da carne, ou consideram uma dieta à base de carne como menos saudável. Outros são vegetarianos porque consideram moralmente errado matar um animal para comer.

O que diz o Judaísmo a sobre isso?

Primeiro, vejamos a opinião do Judaísmo sobre o mundo: idealmente, não deveria haver barreiras entre a existência física e espiritual da pessoa. A vida deveria ser uma contínua conexão ao Mestre do Universo, o Autor de nosso ser. Sob a perspectiva judaica, atividades que se apresentam como mundanas – comer, dormir, conduzir os negócios, relacionamentos, etc. – são parte do serviço a D'us, não menos que a observação ritual de prece, estudo e caridade.

Atividades mundanas são a ponte através da qual acessamos âmbitos mais elevados. Portanto, o ato de comer não é uma indulgência sensual desprovida de sentido, nem um meio necessário de manter nosso bem-estar físico. Pode e deve ser a proverbial escada para o céu – um meio de trazer santidade a nossas vidas.

O Talmud diz que ao final da vida da pessoa, a primeira pergunta feita por D'us é: "Você saboreou todo fruto que Eu coloquei na terra?" Somos conclamados a apreciar toda as benesses da vida. De fato, Maimônides considera uma mitsvá partilhar a carne nos feriados, para intensificar o prazer e o júbilo da pessoa. (Na prática, isso não se aplica àqueles que não apreciam estas comidas.)

Em geral, o Judaísmo permite que se coma carne, desde que o animal seja: de uma espécie permitida pela Torá (Vayicrá cap. 11); ritualmente abatida (shechitá – Devarim 12:21), tenha removidos os elementos não-casher (sangue e determinadas gorduras e nervos - Vayicrá 3:17; Bereshit 32:33); seja preparado sem misturar carne e leite (Shemot 34:26); e as bênçãos apropriadas sejam recitadas (Devarim 8:10).

Ao alimentar-se na maneira prescrita pela Torá, e com a intenção apropriada, diz o Talmud, a mesa da pessoa se torna um altar virtual a serviço de D'us.

Compaixão pelos animais
Ao mesmo tempo, a Torá enfatiza a compaixão pelos animais. De fato, os Patriarcas são carinhosamente conhecidos como os "Sete Pastores", e o Talmud descreve como D'us escolheu Moshê para liderar os judeus baseado em seu carinhoso cuidado pelos rebanhos de ovelhas.

Aqui estão alguns exemplos de legislação judaica sobre o tratamento ético aos animais:

É proibido causar sofrimento aos animais – tzaar ba'alei chaim. (Talmud – Baba Metzia 32b, baseado em Shemot 23:5).

A pessoa é obrigada a aliviar o sofrimento de um animal (i.e., torná-lo mais leve), mesmo se o animal pertencer ao seu inimigo. (Shemot 23:5)

Se um animal depende de você para o sustento, é proibido comer antes de alimentar o animal. (Talmud Berachot 40a, baseado em Devarim 11:15)

Somos obrigados a conceder aos nossos animais um dia de descanso no Shabat. (Shemot 20:10)

É proibido usar duas espécies diferentes para puxar o mesmo arado, pois é injusto para com o animal mais fraco. (Devarim 22:10)

É uma mitsvá espantar a ave mãe antes de tirar seus filhotes. (Devarim 22:7)

É proibido matar uma vaca e seu bezerro no mesmo dia. (Vayicrá 22:28)

É proibido cortar e comer o membro de um animal vivo. (Bereshit 9:4; esta é uma das leis Noachidas que se aplicam tanto a judeus como a não-judeus).

Shechitá (abate ritual) deve ser feito com o mínimo de sofrimento para o animal. A lâmina deve ser meticulosamente examinada para assegurar a forma de morte mais indolor possível. (Chinuch 451; Pri Megadim – Introdução às Leis de Shechitá).

Caçar animais por esporte é visto com séria desaprovação pelos nossos Sábios (Talmud - Avodá Zara 18b; Noda BeYehuda 2-YD 10).

Lidar casualmente ou por esporte com a vida de um animal é antiético aos valores judaicos. Esta sensibilidade é ilustrada pela seguinte história:

Numa pequena aldeia na Europa, um shochet (abatedor ritual) procurava água para aplicar à sua lâmina no processo de preparação. A distância, observou um senhor idoso, olhando para ele e balançando a cabeça como que em desaprovação. Finalmente, o jovem shochet pediu uma explicação ao homem.

Este respondeu que ao observá-lo preparando a lâmina, lembrou-se do ocorrido há muitos anos quando ele, então um jovem, observara o Rabi Israel Báal Shem Tov (fundador do Movimento Chassídico) fazendo a mesma coisa. Porém a diferença, explicou ele, foi que Rabi Israel não precisava procurar água para afiar a lâmina – mas sim usava as lágrimas que escorriam dos seus olhos.

Hierarquia da Criação
Embora a Lei Judaica defenda o tratamento ético aos animais, o Judaísmo também afirma que os animais são feitos para servir ao homem, como está escrito: "Que o homem domine os peixes, aves e animais" (Bereshit 1:26). Há uma clara hierarquia da criação, com o homem no pináculo.

Maimônides identifica quatro níveis na hierarquia da criação, e cada criatura deriva seu sustento do nível abaixo do ser:

Nível 1 : Domem - o reino silencioso, inanimado (terra e minerais) constitui a existência de nível mais baixo, e se auto-sustenta.

Nível 2: Tzomeach - a vegetação é nutrida pelo nível anterior, a terra.

Nível 3: Chai – o reino animal come a maior parte da vegetação.

Nível 4: Medaber - seres humanos (lit., o ser falante) extrai seu sustento comendo tanto vegetais quanto animais.

Quando o alimento é consumido, sua identidade se transforma naquela do ser que o comeu. Assim o Talmud (Pessachim 59b) considera como moralmente justificado comer animais somente quando estamos envolvidos em atividades sagradas e espirituais. É somente então que o ser humano concretiza seu potencial mais elevado, e o animal consumido é, por assim dizer, elevado ao nível do "humano".

Na percepção judaica, o nível mais alto que um animal pode atingir é ser consumido por um ser humano e usado para o serviço de D'us. Um frango na mesa do Shabat é um frango de sorte! (Veja Tanya, cap. 7)

Se, no entanto, a pessoa está agindo feito um animal, então que direito tem de consumir seu "igual"? Que aperfeiçoamento espiritual pode conferir sobre este animal ao comê-lo? Portanto, antes de comer carne, devemos fazer a nós mesmos a questão se, de fato, visto quem somos, estamos realmente beneficiando este animal?

Quando comer não é meramente um ato de "consumo impensado", mas sim um ato com a clara intenção de que a força e a energia que a pessoa extrairá da comida será utilizada para beneficiar o mundo, então o ato de comer foi sublimado em um ato mais elevado.

Extensão radicalizada
Os direitos dos animais pode ser uma faca de dois gumes. Embora o reino animal seja importante e deva ser tratado eticamente, devemos reconhecer que não há equivalência de espécies. Dentre todos os seres vivos, somente a raça humana foi criada "à imagem de D'us" (Bereshit 1:26).

Quando as linhas são pouco nítidas, quando tanto a vida humana como a animal são consideradas igualmente sagradas, isso pode desencadear uma perigosa filosofia que considera matar um ser humano como não mais hediondo que matar um animal.

Rabi Yossef Albo (séc. 14) declara que esta filosofia tem suas raízes na narrativa bíblica de Caim e Abel. Bereshit cap. 4 descreve como Caim levou um sacrifício de cereal, enquanto seu irmão Abel ofereceu animais. Rabi Albo explica que Caim considerava humanos e animais como iguais e, portanto, sentia não ter direito de matá-los. Caim então estendeu esta lógica mal orientada: se pessoas e animais são inerentemente iguais, então assim como se permite tirar a vida de um animal, também se poderia permitir tirar a vida do homem. Assim Caim conseguiu justificar o assassinato de seu irmão.

Nos tempos modernos, a extensão radical da filosofia de Caim veio à tona durante os 1930s, quando os nazistas passaram diversas leis protegendo animais, restringindo o uso de animais vivos em experimentos biomédicos (vivisecção). Enquanto isso, os nazistas estavam matando milhões de seres humanos. (Na verdade, os judeus foram legalmente relegados ao status de "sub-humanos".) As linhas separando humano e animal tinham sido totalmente obscurecidas.

O filósofo Peter Singer, da Universidade de Princeton, tem escrito e feito palestras sobre como o bem-estar de animais excede aquele de bebês doentes; ele também conclama a sociedade a aceitar parcerias entre seres humanos e animais domésticos.

O fato de o Judaísmo permitir que as pessoas se alimentem de animais serve como uma barreira pragmática contra tamanho extremismo, lembrando constantemente ao homem de seu status único entre a Criação de D'us.

O cabalista do Século Dezoito, Rabi Moshe Chaim Lutzatto, explica que todas as coisas vivas – humanos e animais – têm almas. No entanto, nem todas as almas são criadas iguais. Os animais têm uma alma que os anima e carrega dentro de si os instintos para a sobrevivência, procriação, medo, etc. Somente os seres humanos, com uma alma Divina, têm a capacidade de forjar um relacionamento com D'us, a dimensão transcendente. Somente os humanos têm a capacidade de escolher "prazeres da alma" mais elevados – como ajudar os pobres, mesmo às custas de menos "prazeres do corpo", como guardar mais comida para si mesmos.

Rabi Abraham Isaac Kook (presumivelmente vegetariano) escreve que ao homem foi concedido o domínio sobre os animais para enfatizar nossa superioridade espiritual e maiores obrigações espirituais. Se o homem concedesse os mesmos direitos que os humanos aos animais, então assim como não esperamos elevados padrões morais dos animais, tragicamente, iríamos baixar também nossas expectativas para os seres humanos.

Precedentes Históricos
Historicamente, Adam e Eva foram vegetarianos, pois está escrito: "vegetais e frutas serão seu alimento" (Bereshit 1:29). D'us somente permitiu carne a Nôach e seus descendentes após o Dilúvio (Bereshit 9:3; Talmud Sanhedrin 59b).

Por que a mudança?

Alguns comentaristas explicam que antes do Dilúvio, o homem estava acima da cadeia alimentar, com a responsabilidade de cuidar do mundo e tudo dentro dele. Após o Dilúvio, o homem caiu de nível e tornou-se ligado à cadeia alimentar, embora no topo dela. A humanidade tinha descido em sua capacidade de influenciar o mundo animal através de ações, e assim foi necessário influenciar o mundo animal mais diretamente, ingerindo-os.

Rabi Yossef Albo, já mencionado, declara que a filosofia equivocada de Caim foi adotada pelas gerações subsequentes, e a carne foi permitida a Nôach para enfatizar a superioridade do ser humano sobre o reino animal.

Outro comentarista, o Malbim, explica a mudança sob uma perspectiva física. O pós-diluviano foi marcado por um enfraquecimento geral da condição humana. À medida que a qualidade da produção se tornava nutricionalmente inferior, e a humanidade geograficamente dispersa e sujeita a climas variados, foi necessário suplementar a dieta humana com produtos animais.

Alguns citam o precedente de Adam e Eva como uma indicação de que num mundo perfeito, i.e., na época futura de Mashiach, os seres humanos retornarão ao vegetarianismo universal. A grande maioria de eruditos rabínicos, no entanto, afirma que as oferendas de animais serão retomadas na Era Messiânica. Se fato, o Talmud (Baba Batra 75a) declara que quando Mashiach chegar, D'us preparará um banquete baseado em carne para os justos.

Resumo
Em conclusão, o Judaísmo aceita a ideia da dieta vegetariana, embora dependendo da intenção da pessoa. O vegetarianismo baseado na ideia de que não temos o direito moral de matar os animais não é uma opinião aceita pelos judeus.

O vegetarianismo por motivos estéticos ou de saúde é aceitável; na verdade, a ordem da Torá para "guardar cuidadosamente" (Devarim 4:15) exige que prestemos atenção aos assuntos de saúde relacionados a uma dieta baseada em carne. Alguns pontos a considerar incluem o aumento na doença dos animais criados em condições industriais, e a administração de hormônios do crescimento, antibióticos e outras drogas ministradas aos animais. Todos estes podem ser riscos em potencial à saúde dos seres humanos.

Além disso, há a possível violação de tzaar baalai chaim (causar sofrimento aos animais) resultante de métodos de produção, transporte e abate em massa. O notável sábio do Século Vinte, Rabi Moshe Feinstein, proibiu a criação de vitelas em condições sem espaço, e proibiu alimentar animais com produtos químicos em vez de comida, pois isso os privaria do prazer de comer. (Igrot Moshê EH 4:92)

A consciência judaica exige constante atenção no sentido de preservar e proteger nosso mundo natural.

Rabi Benzion de Bobov estava passeando com um discípulo, profundamente envolvido numa conversa erudita. Quando passaram por uma árvore, o aluno descuidadamente arrancou uma folha e a cortou em pedaços.

Rabi Benzion parou abruptamente. O aluno perguntou o que havia de errado. Em resposta, o rabino perguntou-lhe por que havia arrancado a folha da árvore.

O discípulo, chocado, não pôde formular uma resposta.

O rabino explicou que tudo que existe na natureza – aves, árvores, cada folha de grama – tudo aquilo que D'us criou neste mundo, canta sua própria forma de louvor ao seu Criador. Se eles forem necessários como alimento, são ingeridos e se tornam parte da canção das espécies mais elevadas. Porém arrancar a folha de uma árvore sem qualquer motivo é desperdiçar silenciosamente sua canção, impedindo-o de se juntar aos outros instrumentos na sinfonia da natureza.

Sim, o Judaísmo permite a ingestão de carne, desde que a intenção correta esteja presente: elevar a energia Divina contida na carne ao nível humano mais elevado, utilizar a energia derivada do alimento para cumprir responsabilidades morais e espirituais e servir a D'us através dos prazeres do Seu mundo.

 

 

 
   
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