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O
misticismo foi o que primeiro me atraiu para Chabad. Gosto de contemplar
as altas esferas, as realidades alteradas, os complexos mundos cósmicos
que tecem meandros em caminhos bem organizados para finalmente emergirem
naquilo que chamamos de existência material.
Que deleite! Daquelas paisagens, podemos enxergar o mundo e obter uma
perspectiva e amplidão de entendimento, e uma vantagem transcendental
sobre a existência mundana!
É por isso que em cada Yom Kipur, sempre fico desapontado pela
prece simples do Cohen Gadol (Sumo Sacerdote) na conclusão de sua
preparação mística e real para entrar, finalmente,
no Santo dos Santos. Após fazer a jornada que arrisca sua vida,
durante a qual o menor equívoco ou pensamento errado poderia resultar
em catástrofe, ele diz: "Manda chuva. Boas colheitas. E não
deixa as mulheres perderem os filhos, ou o rebanho perder suas crias."
Que desapontamento!
Onde estão as gloriosas alturas místicas? Os pronunciamentos
espirituais transcendentes esperados no mais sagrado dia do ano, no local
mais sagrado do mundo? Isso é o máximo pelo qual se pode
rezar? Isso é o melhor que ele pode produzir?
Sucot este ano cai numa sexta-feira. Chego em casa de mau humor e setas
afiadas saem voando de minha boca, até que consigo criar uma atmosfera
ameaçadora na cozinha. Afrontei minha mulher sem outra provocação
senão aquela que a ira venenosa que corre através do meu
corpo.
No dia seguinte, mencionei ao meu Rabino que eu tinha sido um rematado
idiota no dia anterior.
Ele me disse que a véspera de um dia tão sagrado como o
Shabat ou outro dia festivo é a hora favorita do yetser hará
(a má inclinação que reside dentro de cada um de
nós). "Nada agrada mais ao yetser hará do que arruinar
um dia sagrado" – disse ele. "Você precisa tomar
muito cuidado."
Porém eu sabia que tinha dado ao meu yetser grão para o
moinho. E não fora a primeira vez. O yetser apenas tinha sido meu
aliado na destruição, não a causa. A responsabilidade
e a culpa eram minhas.
Minha Tia Betty faleceu na semana passada. Fiquei triste por não
tê-la visto nem ter comparecido ao seu funeral, nem compartilhado
o evento com minhas irmãs e tios, especialmente seu marido, Tio
Irv. Quando recebi a notícia de seu falecimento num e-mail de minha
irmã, telefonei a Tio Irv. Falamos durante algum tempo e então
ele disse: "Eu não queria muito. Só mais uns cinco
anos com ela teriam sido suficientes. Só mais uns cinco anos."
Minha irmã contou-me que durante o panegírico, o orador
tinha mencionado como Tio Irv e Tia Betty eram famosos por estarem sempre
se bicando. Ele disse que como eles se espicaçavam diariamente,
nunca tinham tido uma briga séria. O casamento nunca chegara a
estar ameaçado.
"Eu tinha certeza de que ela não iria antes de mim" –
disse-me Tio Irv no telefone. "Eu estava certo de que iria primeiro
e ela teria cuidado de mim."
Eu podia ouvir a solidão e o medo na voz dele enquanto ele pensava
no futuro, sozinho. Eu podia ouvi-lo imaginar: Quem estaria na casa ao
seu lado, como ele tinha ficado naqueles meses ao lado dela?
"Ela tinha mania de guardar tudo" – disse ele. "Não
sei o que fazer com todos estes objetos que ela guardou. Mas acho que
não preciso pensar nisso neste momento, não é?"
ele me perguntou.
"Não" – eu disse. "Não agora"
– e prometi a mim mesmo telefonar sempre para o Tio Irv, assim ele
não se sentiria tão sozinho.
Quando você faz quimioterapia no Hospital Tel Hasomer em Israel,
senta-se numa sala grande cheia de pessoas que estão recebendo
o mesmo tratamento. Fica-se lá sentado por horas, enquanto o remédio
pinga lentamente em suas veias.
A sala está sempre apinhada. Seria melhor se ali houvesse menos
gente.
Embora não haja nada para fazer enquanto se passa pelo tratamento,
muitas pessoas, eu inclusive, nada fazem para passar o tempo. Existe alguma
coisa na atmosfera e na experiência que anulam a capacidade de concentração.
O maior desejo da pessoa é simplesmente não estar ali, não
estar fazendo aquilo, e terminar tudo o mais rapidamente possível.
Incapazes de escolher qualquer uma das alternativas, nós simplesmente
ficamos alheios àquilo tudo.
Há dois tipos de pessoas na sala. Aquelas que, como eu, têm
o marido ou a esposa sentada ao seu lado. E aquelas que estão sozinhas.
Assim como a maioria das pessoas não lê, a maioria também
não conversa. Os pacientes recebem seus remédios. Os cônjuges
– para aqueles que estão neste grupo da sorte – senta-se
lendo ou tricotando. De vez em quando os casais trocam alguma palavra
ou o acompanhante se levanta para pegar um copo de água ou um biscoito
para o cônjuge, ou então para informar à enfermeira
que algo precisa ser ajustado.
Eu raramente converso com minha mulher. Mal mantenho os olhos abertos.
Tento me retirar para um local silencioso, profundo, só meu. Mas
eu percebo no instante em que ela se levanta para pegar um jornal. E detesto
até mesmo aqueles poucos momentos enquanto fico ali sozinho, sem
ela. Minha solidão e meu medo, que consigo disfarçar enquanto
ela está ao meu lado, de repente afloram furiosamente à
superfície. E quando ela volta, sinto-me culpado por não
ser mais agradável, de nem sequer trocar algumas palavras com ela.
E então me recolho novamente, auto-concentrado, tentando lidar
com a minha náusea e o desconforto.
Quando consigo abrir os olhos e olhar em torno, sinto-me mal pelas pessoas
que estão ali sozinhas. Não consigo imaginar isso. Elas
me parecem tão tristes, tão sozinhas. Estão ali sentadas,
doentes, recebendo remédios que as fazem se sentir ainda pior,
sem ninguém para conseguir-lhes uma almofada ou arrumar as cobertas,
ou para se preocupar se têm sede ou não.
Desta última vez, especialmente após conversar com Tio Irv,
fico deitado na cama, a agulha na veia, e sinto grande amor e gratidão
pela minha companheira de toda a vida estar sentada ao meu lado. Minúsculas
lágrimas escapam pelo canto dos meus olhos quando meu coração
de repente se abre, escuta e acredita que alguém que gostava de
mim, que se preocupava comigo, estava sentada ao meu lado na hora de necessidade.
Aquele simples fato me parecia um milagre, uma bênção.
Como eu me conheço o suficiente para saber que ser amado não
é algo que eu tenha feito por merecer. Sou o mesmo idiota que fez
infeliz a vida da minha esposa na véspera de Sucot, com yetser
hará ou sem yetser hará. Eu o fiz naquela noite. Eu já
tinha feito aquilo antes. Talvez eu o faça novamente (D’us
não o permita). Eu sabia disso. E ela sabia, também.
Porém, ali estava eu com minha acompanhante, e não conseguia
imaginar nada melhor em todo o universo, nada mais importante, mais precioso.
E apesar do meu amor pelo misticismo e Chassidut, eu sabia que se naquele
instante me fosse dada a chance de entrar no Santo dos Santos, meus pedidos
seriam simples: Por favor, meu D’us, deixe-a estar sempre comigo
à medida que eu envelheço. Deixe-me ter minha companheira,
minha esposa, durante toda a minha vida. Por favor, D’us, afaste
o yetser hará da minha casa e a raiva do meu coração.
Que haja chuva. Que a colheita cresça. Que nenhuma mulher sofra
aborto.
E que todos os jovens casais saibam o significado do casamento e da vida;
da família e do compromisso; da profunda diferença entre
um e dois.
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