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  Uma Terra Santa
 
 

E D'us revelou-se a Avraham, dizendo: "Darei esta terra a teus descendentes." (Bereshit 13:15)

"E [D'us] disse a ele: 'Eu sou D'us, que te tirou de Ur Casdim para te dar esta terra como herança.'" (Bereshit 15:7)

No ano 2488 da Criação (1272 AEC), Yehoshua liderou a marcha dos exércitos de Israel, 600.000 homens fortes, para cruzar o Rio Jordão e conquistar a terra que D'us tinha prometido a Avraham.

Numa série de batalhas que se prolongaram por sete anos, os israelitas derrotaram os exércitos dos trinta e um reis de Canaã. Yehoshua então dividiu a terra entre as doze tribos de Israel, e cada tribo iniciou a colonização do lote que lhe fora designado. Porém permaneceram alguns bolsões de resistência, e o processo de conquista e colonização da Terra Santa foi completado somente quatrocentos anos mais tarde pelo Rei David, que derrotou os filisteus e conquistou a cidade de Jerusalém dos jebusitas.

Com o filho de David, Salomão, tiveram início os quatro séculos da soberania judaica na Terra Santa - um período que se sobrepôs à Era do Primeiro Templo, quando o primeiro Templo Sagrado estava erguido em Jerusalém. Mas em 3205 (555 AEC), o reino setentrional de Israel [1]foi conquistado por Shalmaneser, rei da Assíria, e as dez tribos que lá viviam foram exiladas. Um século depois, o reino meridional da Judéia foi conquistado por Nabucodonosor, rei da Babilônia, e também ficou sob domínio estrangeiro. Em 3338 (422 AEC) Nabucodonosor destruiu o Templo Sagrado em Jerusalém, e praticamente todo o povo judeu foi exilado de sua terra.

O Retorno

O povo judeu voltou à Terra Santa após um exílio de 70 anos na Babilônia. Liderados por Ezra e Nechemya, reconstruíram o Templo Sagrado e iniciaram um segundo período de vida nacional em seu país. A Era do Segundo Templo durou 420 anos, até a sua destruição pelos romanos em 69 EC, e a subseqüente dispersão de Israel aos quatro cantos do globo.

Os períodos do Primeiro e Segundo Templo diferiram em muitas áreas - espiritual, haláchica (assuntos pertinentes à Lei da Torá), material, cultural e política. Uma destas diferenças foi que, sob o governo de Yehoshua, o povo de Israel conquistou a Terra, e por fim estabeleceu a total soberania judaica sobre seu território, ao passo que os judeus sob Ezra vieram como colonizadores com uma franquia dos imperadores persas, sob cujo domínio se encontrava a Terra Santa. Na verdade, durante grande parte da Era do Segundo Templo, a Terra Santa esteve sob a hegemonia política de reis estrangeiros - os persas, os gregos, e seguindo-se a um breve período de 70 anos de independência após a revolta hasmoneana, os romanos.

Isso sugere a superioridade da Era do Primeiro Templo. De fato, em muitos aspectos, a Era do Segundo Templo foi inferior àquela do Primeiro Templo. [2]Entretanto, uma das mais básicas leis a respeito do status haláchico da Terra Santa sugere exatamente o contrário: que a colonização da terra sob Ezra teve importância maior e mais duradoura para nossa conexão com a Terra Santa, que sua conquista sob Yehoshua.

A Torá refere-se à Terra de Israel (assim como em muitos idiomas) como uma terra "santa". Em essência, isso reflete seu lugar especial na criação de D'us, e em Sua providência sobre Seu mundo [3]; na prática, a santidade da Terra de Israel expressa-se no fato de que muitas das mitsvot (mandamentos Divinos) da Torá relacionam-se especificamente com seu território e não podem ser cumpridas em nenhum outro lugar. E embora a santidade essencial da Terra de Israel seja intrínseca e exista o tempo todo e sob todas as condições, sua santidade haláchica é um fator que depende de sua posse pelo povo judeu. Apenas aquelas partes da Terra Santa que estejam realmente sob a posse judaica estão obrigadas às mitsvot que têm relação com a Terra. Em outras palavras, ao tomar posse da Terra de Israel, o povo judeu também a "santificou", estabelecendo as fronteiras dentro das quais estas mitsvot especiais podem ser cumpridas.

Houve duas "santificações" deste tipo: a santificação conseguida pela conquista da terra por Yehoshua, e a santificação efetivada por sua colonização sob Ezra. A Lei da Torá faz distinção entre as duas: a santificação da Terra sob Yehoshua foi temporária, e quando o povo de Israel foi exilado para a Babilônia, a terra reverteu a seu status haláchico de "não-sagrada." Porém o efeito da santificação de Ezra foi permanente, continuando válido também após a destruição do Segundo Templo e do exílio de Israel. Até o dia de hoje, os limites haláchicos para as mitsvot da terra são as fronteiras do povoamento judaico na Era do Segundo Templo, e não aqueles da Era do Primeiro Templo.

Maimônides explica: como a primeira santificação foi alcançada pela conquista, perdurou apenas pelo tempo de duração da conquista. A segunda santificação, porém, não foi conseguida pelo estabelecimento de soberania política, portanto não depende dela; assim, o fato de que a terra nos foi tirada não diminui sua santidade. [4]

Presente ou herança

O Rogatchover (famoso erudito e analista da Lei da Torá, Rabi Yosef Rosen, 1858-1936) relaciona estas duas "santificações" aos dois versículos citados no início deste ensaio. No capítulo 13 de Bereshit, lemos pela primeira vez a promessa de D'us a Avraham: "A teus descendentes darei esta terra." Mais tarde, no capítulo 15, lemos sobre a aliança que D'us fez com Avraham, no qual Ele reiterou esta promessa; aqui, a palavra "herança" aparece pela primeira vez como uma descrição do relacionamento de Israel com a terra.

Segundo a Lei da Torá, um presente pode ser temporário, porém jamais uma herança, que, por definição, é interminável. (Assim, a lei declara que uma pessoa pode instruir que seu campo pode ser dado a alguém por vinte anos, no término dos quais deverá ser transferido a outra pessoa; mas se ele disser: "Meu filho deve herdar o campo por vinte anos," esta declaração não tem validade legal, pois "um presente pode terminar, ao passo que uma herança não pode terminar." [5]) O versículo no capítulo 13, no qual D'us promete dar a terra aos descendentes de Avraham, refere-se à conquista feita por Yehoshua, cujo efeito era reversível. No capítulo 15, D'us está Se referindo à aquisição da terra por Ezra, e que, como uma herança, é perene. [6]

Os termos "presente" e "herança" refletem também a natureza destas duas aquisições da Terra. Num presente, a conexão de quem recebe com o objeto doado é imposta sobre ele pela vontade e direitos do doador; assim, o doador também determina o alcance e duração do presente. Por outro lado, o direito sobre uma herança é algo intrínseco à natureza do herdeiro; o objeto herdado lhe pertence não porque lhe foi dado, mas em virtude de quem e o quê ele é. Assim, nenhum fator externo pode limitar a herança.

A santificação da Terra por Yehoshua foi conseguida por uma dinâmica externa - a conquista; portanto - como o presente - dependia da extensão e duração do conquistador que a impôs. Quando a conquista cessou, cessaram também seus efeitos no status haláchico da Terra.

Na época de Ezra, o povo judeu santificou a Terra não por conquistá-la, mas por colonizá-la. Dessa maneira eles afirmaram seu vínculo intrínseco com a Terra - um vínculo que não depende de poderio militar ou governo político. Chegaram como herdeiros, cujo relacionamento com a terra vem de dentro deles - de quem e do quê são - em vez de vir daquilo que lhes foi imposto por uma força superior. Portanto, a santidade que efetivaram na Terra era - como a herança - imune à influência de forças externas, e não cessou quando os exércitos de Roma os expulsaram de seu país.

Terra como vida

O objetivo da criação, dizem nossos Sábios, é que "D'us desejava uma morada no mundo físico." [7] Isto é, o homem deveria santificar a existência material e desenvolvê-la em um "lar" para D'us - um local onde Seu ser quintessencial estivesse manifestamente presente e expresso. Assim, o esforço de conquistar e colonizar a Terra, e desse modo transformá-la em uma "Terra Santa," pode-se dizer que representa o objetivo geral da vida na terra.

Assim como houve dois modos básicos de santificação da Terra - o modo "conquista" da Era do Primeiro Templo e o modo "colonização" da Era do Segundo Templo - assim também há dois modos de santificação no esforço macrocósmico da vida, correspondendo aos dois estados básicos do homem: o de tsadic (pessoa completamente justa) e o báal teshuvá ("retornante" ou penitente).

No sentido estrito destes termos, o tsadic é uma pessoa que é profunda e perfeitamente boa, sem um único defeito em seu comportamento ou traço negativo em seu caráter, ao passo que o báal teshuvá é aquele que sucumbiu ao mal mas retornou a uma vida íntegra. No sentido mais geral, o tsadic é alguém cuja vida espiritual caracteriza-se pela harmonia e tranqüilidade, ao passo que o báal teshuvá é aquele que se engaja num perpétuo conflito com o negativo dentro de si e em seu mundo.

Tanto o tsadic quanto o báal teshuvá participam no desenvolvimento e santificação do mundo material. O tsadic, porém, afeta o mundo a partir do exterior. Alheio aos cuidados e armadilhas da vida material, o tsadic irradia sua bondade sobre ela, subjugando as forças das trevas com sua luz superlativa. Todavia, como esta é uma transformação que vem do alto, é sustentável apenas pelo tempo em que o tsadic mantém sua influência sobre ela. Pois o mundo em si não mudou: simplesmente foi dominado por uma força superior.

Por outro lado, o báal teshuvá transforma o mundo a partir do interior. Ele não é estranho à vida material, nenhum observador afastado de suas contorções e corrupções; quando ele santifica o mundano, é uma santidade vinda de dentro, do potencial interior do mundo para abrigar seu Criador. Carecendo de forças exteriores de santidade, o báal teshuvá mergulha na natureza do material para ali descobrir a luz implícita nas trevas, a santidade implícita dentro da mundanidade. E como isso representa uma transformação que vem de dentro, o lar Divino construído pelo báal teshuvá é auto-suficiente e imutável.

Na Era do Primeiro Templo, éramos uma nação de tsadikim. Nascidos no Sinai e formados no casulo espiritual de uma geração que vivia no deserto, não tínhamos experiência com a Terra, com a dimensão material da criação. Portanto nós a conquistamos, e a dominamos com nossa força superior, com a preeminência natural do espírito sobre o material. Mas como esta foi uma conquista imposta do alto, a santidade da Terra podia ser mantida somente enquanto o elemento conquistador permanecesse válido. Quando nos afastamos de D'us, quando perdemos nosso lado espiritual, perdemos também a Terra, e a Terra perdeu sua santidade.

Retornando da Babilônia, entramos na Terra como uma nação de baalei teshuvá (retornantes) - uma nação que tinha sucumbido ao mal apenas para sobrepujá-lo em sua própria arena, uma nação que agora já estava íntima com o mundo material e consciente de suas armadilhas. Desta vez, colonizamos a Terra. Nossa meta não era conquistá-la e afirmar nosso domínio sobre ela, mas desenvolvê-la a partir do interior, desencadear seu próprio potencial como uma morada Divina.

Desta vez, a santidade que evocamos nela era intrínseca e duradoura. Portanto, quando nossos pecados e falhas subseqüentemente nos baniram de nosso país, a Terra permaneceu santa, pois os mais poderosos exércitos e os males mais potentes não poderiam eclipsar a santidade quintessencial que tínhamos efetivado em nossa herança ancestral.

Baseado nas palestras do Rebe, 20 e 30 de Av de 5738 (23 de agosto e 3 de setembro de 1978), e Sucot de 5724 (1963) [8]


[1] Após a morte do rei Salomão, dez das doze tribos separaram-se para formar o reino de Israel ao norte, ao passo que os descendentes de Salomão continuaram a governar o reino meridional da Judéia.

[2] Mais significantemente no sentido em que a era da profecia encerrou-se nos primeiros anos da Era do Segundo Templo. Veja também Ezra 3:12; Talmud, Yoma 21b.

[3] Devarim 11:12; Midrash Tanchuma, Reê 8; Talmud, Ketubot 110b; e em outra parte.

[4] Mishnê Torá, Leis do Templo Sagrado, 6:16; Leis de Terumot e Maaserot, 1:1-9. Evidentemente, os judeus sob Yehoshua também colonizaram a terra, além de conquistá-la; mas como D'us tinha lhes ordenado que conquistassem a terra (cf. Bamidbar 33:52-55); Devarim 3:18; Yehoshua cap. 1; Talmud, Sotá 44b), isso determinou que o modo de sua aquisição da Terra, e a natureza de seu relacionamento com ela, fosse aquela de "conquista." Na época de Ezra, a ordem Divina era voltar para a terra e colonizá-la, não conquistá-la (cf. Yirmiyahu 29:10, 40:10), determinando que o modo de aquisição fosse "colonização."

É importante notar que as diferenças entre a "primeira aquisição" por Joshua e a "segunda aquisição" por Ezra relacionam-se apenas com a "santidade" da Terra quanto à sua pertinência ao cumprimento das mitsvot especiais associadas com ela, mas não quanto à posse judaica da Terra de Israel, que é constante e irreversível. Quanto à nossa posse da Terra, a Torá declara que "Naquele dia D'us estabeleceu um pacto com Avraham dizendo: 'Aos teus descendentes Eu dei esta terra, desde o Rio do Egito até o grande rio, o Eufrates" (Bereshit 15:18). Aqui a Torá usa o tempo passado, "Eu dei" (em oposição ao futuro "Eu darei" empregado pelos versículos que se relacionam com a "santidade" da terra), a fim de enfatizar que todo o território da Terra Prometida já fora dado a Avraham pelo Criador e Mestre do mundo. A terra que o povo judeu conquistou sob Yehoshua e colonizou sob Ezra já era sua propriedade (veja Talmud Yerushalmi Chalá 2:1; Rashi sobre Bereshit 1:1).

A posse da Terra, concedida por D'us a todas as gerações de Israel, não é negociável, e não se pode renunciar a ela por tratados ou acordos. Nenhum indivíduo ou governo tem o direito de entregar nosso legado eterno ou de renunciar ao controle sobre aquelas partes, que D'us colocou em nossas mãos em meio a grandes milagres.

[5] Talmud, Bava Batra 129b.

[6] Tsafnat Paaneach sobre Bereshit 15:7. Cf. Talmud Yerushalmi, Bava Batra 8:2.

[7] Midrash Tanchuma, Nassô 16; Tanya, cap. 36.

[8] Licutei Sichot, vol. XV, págs. 100-109.

   
       
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