Tempo Futuro: como os Judeus Inventaram a Esperança
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  Rabino Chefe da Inglaterra, Prof. Jonathan Sacks – Publicado no The Jewish Chronicle, abril de 2008
  Por que estamos aqui? Por que somos judeus? Por que o mundo precisa – se de fato precisa – da presença judaica, de uma voz judaica?

Até agora nestes artigos, tenho abordado alguns dos problemas que os judeus enfrentam no século 21: a transformação da situação judaica desde o milênio, o novo anti-semitismo e a crescente des-legitimização de Israel. Tenho falado sobre o desafio da construção da sociedade em Israel, e sobre o engajamento do Judaísmo na “sabedoria” – ciências e humanidades – do mundo.

En nenhum desses, porém, seremos bem-sucedidos a menos que, transcendendo eles todos, tenhamos um claro senso de propósito judaico, forte o suficiente para motivar gerações sucessivas de jovens judeus a levarem vidas judaicas, formar famílias judias e terem filhos judeus. A identidade judaica não é mera etnicidade, hábito ou nostalgia. Essas coisas não perduram, certamente não numa era tão secular e anti-tradicional como a nossa. Confie nelas e veremos números cada vez maiores de judeus se afastando. Aqueles que permanecem se fecharão cada vez mais em enclaves altamente religiosos, com menos e menos envolvimento no mundo.

Minha opinião é que o Judaísmo é uma fé, totalmente distintiva, bem ao contrário da cultura secular da antiga Grécia ou do Ocidente contemporâneo, dos misticismos orientais que negam o mundo, até mesmo dos filhos monoteístas do Judaísmo, o Islam e o Cristianismo. O Judaísmo é realmente diferente, e neste último ensaio eu desejo dizer como. O que se segue é uma opinião pessoal, mas vem de uma longa escuta das vozes de nossa tradição. Explica também por que escolhi chamar essa série de “Tempo Futuro” – não apenas porque o futuro judaico será tenso.

Um dos momentos mais importantes na história do Judaísmo ocorreu no encontro entre Moshê e D’us na sarça ardente. Moshê pergunta a D’us qual nome deveria usar quando as pessoas lhe perguntassem quem Ele é. D’us responde enigmaticamente, numa expressão que não ocorre em nenhum outro lugar no Tanach: Ehyeh asher Ehyeh.

Traduções não judaicas dizem que isso significa “Eu sou aquele (ou quem, ou aquilo) que sou.” Alguns traduzem como “Eu sou: é isso quem Eu sou”, ou “Eu sou Aquele que é.”

Estas são traduções equivocadas profundamente significativas. A expressão significa, literalmente, “Eu serei aquilo que Eu serei,” ou mais fundamentalmente, o nome de D’us pertence ao tempo futuro. Seu chamado é para aquilo que ainda não é. Se não entendermos isto, perderemos o próprio ponto que torna o Judaísmo único.

Considere a estrutura da narrativa bíblica. Na literatura há muitos tipos de narrativa mas elas têm uma coisa em comum, que Frank Kermode chamou de “o senso de um final”. Elas chegam a um término. Algumas acabam com “e viveram felizes para sempre.” Chamamos isso de contos de fadas. Outros terminam em morte e derrota. Nós os chamamos de tragédias. Existem outros tipos, mas todos têm um começo e um fim. É isso que os torna histórias.

Agora considere o Gênesis. A história judaica começa com o chamado de D’us a Avraham para deixar sua terra, seu local de nascimento e a casa de seu pai para “viajar para a terra que Eu te mostrarei.” Sete vezes D’us promete a Avraham a terra, porém ele tem de regatear com os hititas para comprar um pequeno lote para enterrar Sara. Yaacov e sua família são forçados ao exílio no Egito. O Gênesis termina com a promessa não cumprida.

Então começa o Êxodo. D’us chama Moshê para liderar os israelitas de volta à liberdade e à terra prometida. Agora, sentimos, a história está para chegar a um término, Mas isso não ocorre. Em vez disso, uma jornada que deveria ter levado dias dura quarenta anos. Na cena final de Devarim, vemos Moshê ainda do outro lado do Jordão, tendo apenas uma visão distante da terra. Mais uma vez, o fim natural é deixado de lado.

O Tanach como um todo termina, em Crônicas II 36, com os israelitas novamente no exílio, dessa vez na Babilônia, e Ciro lhes dando permissão para retornar. Estamos quase de volta ao ponto de partida, na mesma região da qual Avraham e sua família saíram pela primeira vez.

Não conheço outras histórias que tenham a mesma forma, ou seja, um começo mas não um fim. Poderíamos não pensar nelas como histórias, se não soubéssemos o final. Ele esteve ali desde o início: as três promessas de D’us a Avraham, de filhos, uma terra, e uma influência tal sobre a humanidade que “através de você todas as famílias da terra serão abençoadas”. Portanto há um final, mas está sempre além do horizonte visível. A história judaica termina, como terminou a vida de Moshê, com um vislumbre da terra ainda não alcançada, um futuro ainda não concretizado.

O mesmo se aplica à crença judaica. O Judaísmo é a única civilização cuja época de ouro está no futuro: a Era Messiânica, um tempo de paz quando “nação não erguerá espada contra nação” e “o Eterno será Um e Seu nome Um.” Essa em última análise é a linha divisória entre o Judaísmo e o Cristianismo. Ser judeu é responder a pergunta “O Messias veio?” com as palavras “Ainda não.” Na bela frase de Harold Fisch, a narrativa judaica é a “inaplacável lembrança de um futuro ainda a ser cumprido.” Por quê? O que isso nos diz sobre o Judaísmo?

No coração do Judaísmo está uma crença tão fundamental para a civilização ocidental que a aceitamos como garantia, porém nada mais é que auto-evidente. Tem sido desafiada muitas vezes, raramente tanto quanto atualmente. É a crença na liberdade humana. Nós somos aquilo que escolhemos ser. A sociedade é aquilo que escolhemos fazer. O futuro está em aberto. Não há nada inevitável nos assuntos da humanidade.

Os antigos acreditavam que o destino humano estava nos astros, ou no destino cego, aquilo que os gregos chamavam de ananke. Spinoza argumentava que nossas vidas são governadas pela necessidade natural. Marx alegava que a historia era moldada por interesses econômicos. Freud dizia que o comportamento humano era moldado por desejos inconscientes. Os neo-darwinistas argumentam que somos governados por códigos genéticos inatos em nosso cérebro. Liberdade, em todas essas teorias, é uma ilusão.

Essa opinião é desafiada nos capítulos iniciais da Torá. Pela primeira vez, D’us é visto como além da natureza, criando a natureza por um ato de vontade livre, não coagido. Ao criar os seres humanos à Sua imagem, Ele imbuiu um pouco dessa liberdade em nós. Somente nós entre as formas de vida criada, somos capazes também de sermos criativos. A narrativa bíblica é o eterno drama da liberdade humana.

As primeiras quatro narrativas são trágicas. Primeiro Adam e Eva, depois Caim, abusam da liberdade. Isso é então repetido em escala global pela geração do Dilúvio e pelos construtores de Babel. As pessoas usam sua liberdade para transgredir os limites ou privar outros de sua liberdade. Portanto um novo começo se faz necessário.

Avraham é instruído a deixar todas as coisas que limitam a liberdade – nossa terra, local de nascimento e a casa do pai – e começar um novo tipo de vida num pacto com D’us. Bereshit, Gênesis, é sobre aquele pacto na medida em que afeta indivíduos e famílias. O restante do Tanach é sobre o pacto como este se aplica à vida de uma nação. A história judaica, ainda inacabada, é sobre a jornada a partir das múltiplas formas de escravidão a que os levitas chamam de “liberdade difícil”. A Torá é o modelo da liberdade responsável, nossa constituição de liberdade.

A liberdade, implica o Gênesis, está intimamente relacionada ao idioma. D’us criou o mundo com palavras, e Seu primeiro presente à humanidade é o dom da palavra. Sabemos que outras formas de vida – primatas, golfinhos, até abelhas – têm formas rudimentares de linguagem. Porém há uma forma única para os seres humanos. A Torá afirma isto fazendo dela a primeira palavra que D’us diz: “Que seja”.

Os seres humanos são a única forma capaz de usar o tempo futuro. Somente seres que conseguem imaginar o mundo diferente do que é são capazes de liberdade. E se somos livres, o futuro está em aberto, dependendo de nós. Podemos saber o início da nossa história, mas não o final. É por isso que, quando Ele está para tirar os israelitas da escravidão para a liberdade, que D’us diz a Moshê que Seu nome é “Eu serei o que serei.” Judaísmo, a religião da liberdade, é fé no tempo futuro.

A civilização ocidental é produto de duas culturas: a antiga Grécia e o antigo Israel. Os gregos acreditavam no destino: o futuro é determinado pelo passado. Os judeus acreditavam na liberdade: não há “decreto perverso” que não possa ser mudado. Os gregos deram ao mundo o conceito de tragédia. Os judeus deram a ideia de esperança. O todo do Judaísmo – embora fosse preciso um livro para mostrar isso – é um conjunto de leis e narrativas designadas para criar nos povos, famílias, comunidades e nação, hábitos que derrotem o desespero. O Judaísmo é a voz da esperança na conversa da humanidade.

Não é por acaso que tantos judeus são economistas lutando contra a pobreza, ou médicos lutando contra a doença, ou advogados lutando contra a injustiça, em todos os casos recusando-se a ver as coisas como inevitáveis. Não é por acaso que depois do Holocausto os judeus não o chamaram de Al-Naqba, nutrindo ressentimento e vingança, mas se voltaram para o futuro, construindo uma nação cujo hino nacional é “a esperança”. Não é por acaso que o Judaísmo tem sofrido oposição de todo império que procurou negar às pessoas a liberdade de serem iguais mas diferentes. Não é por acaso que Israel é ainda hoje a única sociedade livre no Oriente Médio.

O Judaísmo é uma religião de detalhes, mas estaríamos errados se de vez em quando não déssemos um passo atrás para ver o quadro geral. Ser judeu é ser um agente da esperança num mundo seriamente ameaçado pelo desespero. Todo ritual, toda mitsvá, toda sílaba da história judaica, todo elemento da lei judaica, é um protesto contra o escapismo, resignação ou aceitação cega do destino. O Judaísmo é um conflito sustentado, o maior que já se conheceu, contra o mundo que é, em nome do mundo que poderia ser, deveria ser, mas ainda não é. Não há vocação mais desafiadora. No decorrer da história, os seres humanos buscaram esperança e a encontraram na história judaica. O Judaísmo é a religião, mas Israel é o lar, da esperança.
 
   
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