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Há alguns anos, em um Seder de Pêssach, eu
estava sentado perto de um judeu francês que, no decorrer de sua
busca espiritual de toda uma vida, tinha descoberto o Zen.
Incrivelmente vigoroso e bem-humorado aos 70 anos, Julian se autoproclamava
um ateu cuja crença fundamental era na natureza, uma crença
apoiada por muitos anos seguindo os caminhos da vida americana nativa
em reservas indígenas no Canadá.
Senti que Julian estava resistindo a todas as tentativas de ser engajado
nas discussões à mesa sobre Judaísmo. Quando começamos
a conversar, ele partilhou comigo – quase que para demonstrar sua
antipatia a tudo que fosse judaico – que estava sempre absorvido
pela filosofia Zen, especialmente seus Koans (exercícios teóricos
mentais). Havia, no entanto, dois Koans que fugiam à sua compreensão:
Koan nš 1: “Uma mão entra na água, mas a manga da
roupa não se molha. Como?”
Koan nš 2: “Um touro colide com uma janela. Sua cabeça, corpo
e pernas continuam entrando vidro adentro, mas não sua cauda. Por
quê?”
À medida que a noite avançava, e nós dois tomamos
vinho de Pêssach (ele mais do que eu), senti uma oportunidade de
responder ao dilema de Julian. Perguntei a ele se estava familiarizado
com o mais original e importante de todos os Koans. A palavra hebraica
“Kohen” significa sacerdote, referindo-se aos sacerdotes que
serviam no Templo de Jerusalém.
No Templo Sagrado, havia dois tipos de serviço: o dos cohanim e
o dos levitas. Os levitas serviam a D'us com cânticos, cada dia
compondo uma nova melodia para louvá-Lo. Os cohanim serviam em
silêncio. Por maior que fosse o poder da canção, não
pode ser comparada ao poder do silêncio. A quietude do serviço
dos cohanim acessava a dimensão mais íntima do Divino, cuja
intensidade não pode ser contida nem mesmo na mais bela melodia.
Sob a nossa limitada perspectiva, o som é mais alto que o silêncio.
Sob o ponto de vista da verdadeira realidade, o silêncio é
mais poderoso que o som. Não porque D'us está mais próximo
do silêncio do que está do som, mas porque o silêncio
nos proporciona a capacidade de nos elevar acima de nossa limitada percepção
e sentidos para vivenciar o sublime.
Agora, disse eu a Julian, vamos voltar ao seu primeiro Koan. “Uma
mão entra na água, mas a manga da roupa não se molha.
Como?” A água pode ficar molhada? Não, porque a água
já é molhada. Sob a nossa limitada perspectiva, uma mão
e uma manga secas que entram na água ficam molhadas, porque seco
e molhado são dois estados diferentes. A realidade, no entanto,
não é seca nem molhada e portanto inclui e integra ambas.
Quando nos sublimamos (“tevilá”, submersão num
micvê, tem as mesmas letras que “bitul”, “auto-anulação”
nas “águas puras do conhecimento,” quando sentimos
o silêncio, então nossa manga e nosso braço e todo
o ser não podem se molhar, pois somos a própria umidade.
Ao seu segundo Koan: “O touro inteiro colide com a janela e a cauda
não. Por quê?” Deixe-me perguntar a você: “Por
que não? Por que a cauda deveria seguir?”
Um professor de Filosofia pediu aos seus alunos para escreverem uma dissertação
respondendo a uma pergunta: “Por quê?” Todos os estudantes,
escrevendo longos ensaios, erraram, exceto dois. Um deles recebeu um ‘A’
por ter respondido “Porque sim!” O outro recebeu um ‘A+’
por ter respondido “Por que não?”
Todas as nossas questões “por que” originam-se do fato
de começarmos com princípios definidos que são “dados”
e portanto perguntamos “por quê?” No entanto, sob a
ótica de D'us, aquilo que está além de todas as definições
e paradoxos, qualquer questão “por quê”, e quanto
a isso qualquer pergunta é absurda. Perante D'us “por que
não?” é a pergunta mais apropriada.
O touro, nosso lado agressivo, colide contra uma janela. Nós, nossa
lógica, espera que tudo o mais siga batendo, incluindo a cauda.
Quando a cauda não o faz, perguntamos: “Por quê?”
Meu amigo, eu disse, suspenda sua lógica e fique em silêncio.
E agora, “por que não?”
O francês deu um salto na cadeira. “Claro! Após todos
esses anos – é claro, é claro…” Ele continuou
resmungando consigo mesmo, intercalado com breves ataques de riso…
“Por que não? Por que não? Por que… não?”
Ficou sentado imóvel durante algum tempo. Então olhou para
mim em silêncio. Um silêncio que era mais alto que quaisquer
palavras. E ele disse: “Então por que este D'us – o
seu D'us – permitiu o Holocausto?”
Ele não precisou explicar mais.
Fiquei quieto. Então olhei a verdade no olho – no meu e no
dele – e lhe disse: “Você acaba de acertar o maior de
todos os ‘koans’. Tendo passado a vida inteira intrigado,
procurando os mistérios do ‘koan’, você está
incomodado pelo supremo koan, o supremo paradoxo.”
Ele inclinou-se para mais perto de mim, olhando-me nos olhos, ouvindo
com a maior atenção. “Por que você está
preparado para aceitar as experiências transcendentais que resultam
dos paradoxos intrínsecos inerentes a todos os Koans, porém
não quer aceitar o paradoxo de um D'us bom que permite o mal? Se
D'us é realidade – a inteireza da realidade – não
é possível que D'us transcenda nossas limitadas definições
de bem e mal? Ou seja, que D'us não seja bem nem mal (na maneira
que definimos os termos), nem “seco” nem “molhado”
nem “sim” nem “não”, e portanto não
podemos perguntar “por quê” ou nem mesmo “por
que não”.
“O motivo pelo qual você – e eu, e todos, sem dúvida
– agonizamos sobre este Koan é que este atinge um ponto…
outros Koans são exercícios teóricos intrigantes
e podem até levar a alguma verdade mais importante. Porém,
ao final do dia, vivemos e dormimos pacificamente sabendo que nossa lógica
não compreende o som de uma mão batendo palmas, ou a mão
seca na água molhada. No entanto, não podemos dormir em
paz quando sabemos e sentimos a agonia de crianças inocentes sendo
impiedosamente gaseificadas, suas cinzas dispersas pelo vento, seu sangue
indefeso sendo absorvido pela grama do solo da Bavária.
“Este, meu amigo, é o supremo Koan. E não tenho resposta
para ele. Nenhum de nós jamais terá uma resposta. Na verdade,
o próprio D'us talvez não tenha uma resposta que possamos
entender, e D'us, também, não dorme em paz. Quando os romanos
torturaram os maiores sábios e santos de seu tempo, fazendo-o com
uma barbárie desenfreada, os anjos celestiais clamaram a D'us:
‘Esta é a Torá e esta é sua recompensa?!’
D'us não deu qualquer explicação teológica.
Ele disse simplesmente: “Fiquem quietos…”
Silêncio. A única resposta.
Julian inclinou levemente a cabeça. Olhou para mim durante uma
eternidade. E não pronunciou mais nenhuma palavra durante toda
a noite. Eu também não.
Porém, antes de ir para casa ele me disse à porta: “É
tão difícil. O sofrimento é tão profundo...”
Somente mais tarde eu soube que aquele judeu francês, além
de sobrevivente do Holocausto, é um Cohen, um sagrado Cohen.
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