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"Tudo
começou com a temida batida na porta…" Na verdade, em
1998, as coisas tendiam a começar com o temido e-mail. E assim
ocorreu conosco. No dia seguinte a Simchat Torá de 5759, dois meses
após chegarmos a Shangai, recebemos um e-mail do zelador do nosso
prédio de apartamentos. Dizia: "Vocês poderiam, por
favor, retirar aquela sinagoga do 29º andar?"
Aparentemente,
ele fora informado pelas autoridades chinesas que o Shangai Centre, onde
moramos, estava abrigando ilegalmente uma "igreja" clandestina,
e o emprego do zelador estava agora em perigo. A sinagoga em questão
era a nossa sucá, e não sabíamos se todos aqueles
quilos que perdemos se deviam ao fato de subirmos constantemente dezenove
lances de escadas ou à ansiedade de um confronto com as autoridades
chinesas.
Como um jovem casal idealista, nós tínhamos chegado dois
meses antes em shlichut a Shangai, na China. Na superfície, Shangai
se parece com qualquer cidade moderna com prédios altos, belos
shopping centers e milhões de pessoas. Parece um tanto estranho
ver riquixás puxados por homens dividindo as ruas com limusines,
e é desconcertante perceber que por trás da fachada sofisticada,
a maioria da população nem sequer tem água encanada
em casa. Mas afinal, antes mesmo de vir nós sabíamos que
as coisas seriam diferentes. Portanto, orgulhosamente imprimimos cartazes
sobre a Comunidade Judaica, sobre os Grandes Dias Festivos e sobre Rabi
Greenberg. Nós os colocamos nos principais hotéis e jornais,
e recebemos um grupo bem grande para Yom Tov.
Em Rosh Hashaná e Yom Kipur recebemos 120 convidados de Shangai
e cidades vizinhas; em Sucot tivemos uma festa na sucá e no dia
seguinte a Simchat Torá recebemos aquela batida na porta. É
claro que respondemos que desmontaríamos imediatamente a sinagoga,
embora o zelador nos tivesse dado permissão para construí-la.
Aparentemente durante todo o mês de Tishrei tínhamos tido
visitantes que passaram despercebidos, perguntando quem era este Rabino
que estava colocando seu nome em toda a cidade e fazendo propaganda de
uma comunidade judaica num país que não reconhece o Judaísmo
como uma religião!
O que não tínhamos levado em consideração
era o fato, e este é um fato, de que a China é um país
comunista. (Quando estávamos discutindo a idéia de irmos
para a China, meu sogro, que ficou preso sete anos na Sibéria,
não conseguia entender como estávamos dispostos a ir para
um país comunista!) Nós sabíamos que os estrangeiros
têm permissão para praticar sua própria religião
na China, desde que seja privadamente. O único tabu é o
proselitismo e os missionários, que vieram para cá em grande
número e estão sendo deportados pelo governo. Embora o Judaísmo
não seja uma religião proselitista, pois tentamos influenciar
apenas judeus, sob o ponto de vista deles nós éramos apenas
mais uma daquelas organizações religiosas ilegais.
Naquela semana meu marido foi "convidado" para uma reunião
com o BSP, Bureau de Segurança Pública (uma espécie
de KGB). Eles informaram, em termos que não deixavam dúvida,
que tinham acabado de deportar para os Estados Unidos alguns missionários
de outras religiões, e que estavam prontos a fazer o mesmo conosco,
bem como ao zelador de nosso prédio, que nos dava cobertura. Além
disso, ele tinha um bom relatório sobre tudo que acontecera em
nossa vida, desde que ali chegáramos. Sabiam onde morávamos
inicialmente, para qual apartamento tínhamos nos mudado, onde era
nosso escritório, quem freqüentava nossos serviços,
as pessoas com as quais mantínhamos contato, etc.
Posso lhe assegurar que nos dois meses seguintes nós falamos bastante
yidish e hebraico. Os funcionários tinham sugerido que parássemos
de fazer serviços em locais públicos (os Yomim Tovim ocorreram
no Ritz-Carlton) enquanto eles investigavam o assunto. Se fosse absolutamente
necessário se reunir, teríamos de apresentar um pedido ao
BSP e mostrar a lista de pessoas a comparecerem. A principal preocupação
deles era não permitirmos chineses em nossos serviços religiosos,
apenas estrangeiros.
Pouquíssimas pessoas sabiam o que estava acontecendo, pois não
queríamos assustar ninguém, mas aqueles que sabiam estavam
bastante nervosos e sugeriram que cessássemos as atividades de
uma vez. Mas eles não estavam familiarizados com Chabad! Portanto,
enquanto aguardávamos alguma comunicação, em vez
de parar, nós nos tornamos "clandestinos".
O Shabat
ocorria em nosso apartamento de um dormitório. Toda sexta-feira
a mobília era retirada da sala e espremida no nosso quarto, enquanto
recebíamos as pessoas para as preces e refeições,
o tempo todo nos perguntando se os convidados presentes seriam de alguma
forma colocados na lista negra. Um dos nossos amigos que sabia da situação
ficou tão paranóico que para chegar ele foi de elevador
até o 12º andar, desceu as escadas para o 11º, depois pegou outro
elevador para o 10º, onde fica o nosso apartamento! Foi uma época
bastante assustadora, porque sabíamos que "eles" estavam
decidindo o nosso destino, e o que quer que nos acontecesse afetaria também
a comunidade judaica. Toda vez que o telefone tocava, toda vez que a campainha
da porta tocava, eu me preocupava, pensando… e se…? Meu marido
definitivamente tinha mais fé que eu, porque não parecia
nem um pouco preocupado! Achávamos que o pior que nos poderia acontecer
seria um vôo de volta para os Estados Unidos, mas e quanto a nossa
missão?
Em Kislêv nós viajamos ao Kinus Hashluchim, não sabendo
se nos seria permitido reentrar na China. Mas D'us governa o mundo, e
eles nos deixaram voltar, portanto achamos que a partir de então
as coisas dariam certo. Dentro de alguns dias meu marido teve outro encontro
com o BSP.
Nosso guia e mentor durante aquela época foi (e ainda é)
o Sr. David Buxbaum, um chassid de
Lubavitch e advogado de renome na China há mais de 26 anos. Ele
conhece os meandros da burocracia governamental e acompanhava meu marido
naquelas visitas ao BSP. O Sr. Buxbaum explicou mais uma vez aos funcionários
que nossa religião não faz proselitismo, e que não
estávamos ali para converter dois bilhões de chineses. Estávamos
ali somente para os judeus expatriados, todos estrangeiros, e talvez eles
considerariam o fato de que uma comunidade judaica atrai mais empresários
a Shangai.
Após
muitos panim ao Ôhel do Rebe, Rabi Menachem Mendel Schneerson, de
sagrada memória, [pedidos de bênçãos enviados
ao ôhel, (lit. tenda) estrutura construída sobre o local
de descanso de uma pessoa justa] e muita deliberação e muitos
contatos através do Sr. Buxbaum, D'us ajudou o governo chinês
a tomar um decisão. Poderíamos ficar em Shangai, sob a condição
de que nenhum cidadão chinês, absolutamente, compareceria
aos nossos serviços, um compromisso que iria assegurar proselitismo
zero. E, como se diz na China, seria uma situação com um
olho aberto e um olho fechado. O Judaísmo ainda não é
uma religião reconhecida na China, mas agora estamos oficialmente
registrados com o governo para pedir o reconhecimento, e isso confere
mais credenciais à nossa estadia.
Bem, seis vistos mais tarde (eles não nos negaram a reentrada),
ainda estamos aqui, e os funcionários do BSP recebem convites para
todas as nossas funções, e nos nossos cartazes pode-se ler
a declaração: "Devido aos regulamentos do Governo Chinês,
nossos eventos são restritos aos portadores de passaportes estrangeiros
e suas famílias…"
A Antiga Shangai Judaica
Shangai, na China, é reconhecida como o principal asilo para os
refugiados judeus durante a segunda Guerra Mundial. Fugindo da Áustria,
Polônia, Rússia e Alemanha, esses imigrantes tiveram de deixar
para trás todas as suas posses e chegaram a Shangai praticamente
sem tostão. Naquela época Shangai era uma cidade de zona
franca, e não era preciso visto de entrada. Após a ocupação
japonesa, todos os refugiados apátridas e cidadãos dos países
aliados foram forçados a viver na área do gueto de Hong
kou, onde as condições eram descritas como apinhadas, mas
alegres.
Dentre os refugiados estavam 40 estudantes da yeshivá Lubavitch
vindos da Polônia que escaparam via Sibéria e Japão,
e que permaneceram em Shangai por cerca de cinco anos. Durante sua estada,
eles restabeleceram a Yeshivá Tomchei Temimim e realizaram muitas
coisas. A correspondência entre eles, o Rebe e o Frierdiker Rebe
está impressa no Igros Kodesh. Foi graças a eles que muitos
livros chassídicos foram impressos em Shangai.
Rabino Meir Ashkenazi, um chassid proeminente, naquele época já
estava em Shangai. Ele fugiu da Rússia comunista via Harbin e permaneceu
em Shangai por vinte e um anos. Durante este tempo ele cuidou com altruísmo
das necessidades físicas e espirituais de milhares de refugiados
que escaparam e era tão respeitado que todas as comunidades se
uniram para elegê-lo como seu representante chefe. Rabino Ashkenazi
foi para Nova York em 1949. (Aparentemente seus filhos partiram antes
dele.)
Antes da guerra, já havia uma próspera comunidade comercial
sefaradita desde o início dos anos 1800, e uma comunidade russa
desde o início dos 1900. Estavam bem estabelecidos em Shangai e
ajudaram os refugiados quando estes chegavam. Em conjunto, a comunidade
tinha muitas sinagogas, escolas, um hospital, clubes, cemitérios,
etc.
Infelizmente, deste rico passado judaico em Shangai tudo, exceto duas
das sinagogas, foi destruído. Cemitérios foram profanados
e jardins construídos em cima deles. Uma das sinagogas, Ohel Moshe,
tem apenas umas poucas salas restantes, que funcionam como um mini-museu.
O único edifício hoje remanescente da "Antiga Shangai
Judaica" é a linda Sinagoga Ohel Rachel, construída
pelos judeus sefardim em 1920.
Da mesma forma, hoje não há mais pessoas da antiga Comunidade
Judaica. Praticamente todos partiram antes da guerra, ou nos anos 1950,
com o surgimento do Comunismo.
Embora Ohel Rachel esteja sob o controle do governo chinês e desde
1947 não tenha funcionado realmente como sinagoga, o governo reformou
seu interior em homenagem à visita de Bill Clinton em junho de
1998. A entrada é muito limitada, porém agradecemos ao governo
por ter nos permitido o uso do Ohel Rachel três vezes durante este
ano, em Rosh Hashaná, Chanucá e Pêssach, devido aos
esforços feitos pelos governos americano, canadense e israelense.
O esforço para recuperar os direitos sobre a sinagoga é
uma longa história em si mesma, mas estamos esperançosos
de que conseguiremos usá-la com mais freqüência no futuro.
Mitos
Comuns
Não somos uma comunidade de judeus chineses. Nossa comunidade abrange
250 homens de negócios, professores e empresários que vieram
morar em Shangai por cinco ou sete anos.
Não somos uma comunidade temporária. Outros países
do Sudeste Asiático possuem este tipo de comunidade, mas nós
não.
Infelizmente hoje não há membros sefardim e da comunidade
judaica anterior à guerra em Shangai. A maior parte dos judeus
partir na década de 1950, quando o regime comunista tomou o poder.
Não há restaurante casher em Shangai. (O único restaurante
casher está em minha cozinha de 2x2!)
Temos, na verdade, programas comunitários tais como Almoço
e Aulas das Senhoras, Grupo Infantil, Clube dos Jovens, Bar e Bat Mitsvá,
Aulas de Torá, etc. Às vezes temos a sensação
de que as pessoas comparam a China com Marte, porque a reação
geralmente é: "Vocês têm mesmo programas e atividades?
Para quem?"
A Parte Difícil
"O quê? Vocês não têm um micvê?"
Esta é a segunda pergunta mais freqüente a nos fazerem, e
só perde para "Vocês são uma comunidade de judeus
chineses?"
A resposta a ambas é não, mas quanto à dúvida
sobre o micvê gostamos de dizer: "Ainda não." Atualmente,
o micvê mais próximo é um vôo de duas horas
para Hong Kong. As águas poluídas, repletas de doenças
da China descartam rapidamente a opção de um micvê
natural.
Há alguns anos, quando Shangai possuía milhares de judeus,
havia muitos micvaot. Depois que todos partiram, os micvaot foram destruídos
ou usados para outros fins. Uma pessoa que viveu aqui quando criança
voltou no ano passado para uma visita, e contou-nos que havia um micvê
em sua casa. Quando foi visitar sua antiga residência, agora ocupada
por outras pessoas, ele perguntou sobre a piscina que ali havia. O chinês
que agora vive lá comentou: "Sim, eu achei que era um lugar
estranho para criar peixes!"
Nosso primeiro projeto duradouro é, certamente, angariar fundos
para um terreno no qual será construído um micvê.
Com a realidade atual, em que quase toda a terra pertence ao governo,
temos um trabalho difícil pela frente, mas com a ajuda de D'us
e as forças do Rebe, chegaremos lá.
Sobre a Internet
Estou pessoalmente convencida de que a Internet e o e-mail foram inventados
para os shluchim! Deve haver um motivo espiritual para tudo, e além
do maravilhoso material de Chabad.org (Nos Estados Unidos, fundado pelo
meu querido tio Y. Y. Kazen A"H), a Internet também fornece
uma ferramenta absolutamente necessária para os shluchim…
telefonemas grátis para os Estados Unidos!
Não sou um gênio dos computadores, mas poder telefonar para
a família e amigos com freqüência tornou nossa vida
muito mais fácil, e eu gostaria de partilhar isso com outros na
mesma situação. Tenho ligado sempre para minhas irmãs,
cunhadas e amigas shlucha via Internet sobre idéias para programas,
cartazes, perguntas e simplesmente para ter aquelas conversas tão
necessárias, sem me preocupar com as contas telefônicas China-
EUA. Portanto, todos casais que se encontram em locais distantes como
nós, deveriam aproveitar esta facilidade.
O outro benefício importante que vemos na Internet são os
nossos visitantes semanais para o Shabat. Em média, a cada Shabat
recebemos cerca de trinta pessoas daqui, mais uns dez viajantes que nos
descobriram através da nossa home-page. Alguns visitantes aparecem
por curiosidade, outros por necessidade. Há somente dois lugares
na China onde se pode apreciar um Shabat religioso com comida casher –
em Hong Kong e Shangai. Podemos sempre detectar a surpresa e a alegria
na voz das pessoas quando elas nos descobrem por meio de uma pesquisa
na Net. Significa tanto para elas ter um porto judaico durante suas viagens
para longe da família.
Um destes visitantes foi um judeu que estava em Shangai e era sua primeira
experiência longe de uma comunidade. Como muitos outros visitantes
religiosos, sentiu um choque cultural. Na sexta-feira à noite sentou-se
ali olhando para nossa multidão, que é tão variada
como qualquer comunidade Chabad. Após escutar atentamente a conversa
à mesa do Shabat, ele finalmente relaxou um pouco no dia seguinte.
Em Motsaê Shabat, ele veio especialmente para nos dizer o quanto
ele admirava a obra de Chabad em todo o mundo. Disse-nos então
que tinha um amigo que fora para Hong Kong como rabino há alguns
anos para fazer um trabalho semelhante, e fora muito bem-sucedido em aproximar
as pessoas do Judaísmo. Depois de dois anos, este Rabino deixou
Hong Kong para estudar em Israel. Naturalmente, perguntamos ao nosso visitante:
"Se ele foi tão bem-sucedido e teve uma influência tão
positiva sobre tanta gente, por que precisou partir?" Sem hesitar,
ele respondeu: "Ora, vocês sabem que ninguém tem a Mesirat
Nefesh de Chabad. Vocês são os únicos que assumem
um compromisso para a vida toda."
Como tudo começou…
Antes de chegarmos a Shangai, não havia uma comunidade judaica
organizada. As famílias judias mal se conheciam, e somente se reuniam
nos principais Yomim Tovim, quando os bochurim Merkot Shlichu organizavam
serviços comunitários. Merkot tinha enviado bochurim durante
três anos antes de nós chegarmos, para Rosh Hashaná,
Yom Kipur, Pêssach e para o verão. Durante todos aqueles
anos, os bochurim compilaram nomes judaicos, até que havia uma
lista razoável de 150 pessoas. Naquela altura, Rabi Moshe Kotlarsky
percebeu que havia necessidade de um shliach permanente, e ele veio a
Shangai para avaliar a situação com Rabino Avtzon de Hong
Kong. (Rabino Mordechai e Goldie Avtzon, shluchim em Hong Kong, tinham
estado ajudando os bochurin então e continuaram a nos assistir
incansavelmente até hoje, numa base diária!)
Durante sua visita a Shangai, alguns membros da comunidade pediram a Rabino
Kotlarsky para enviar um rabino permanente. Com uma generosa ajuda do
Sr, George Rohr e da Fundação Família Rohr, nós
pudemos começar a trabalhar ali. Temos agora uma comunidade com
mais de 250 pessoas que conhecemos, e calculamos outras 150 que ainda
não conhecemos, devido ao nosso limitado acordo sobre publicidade
feito com o governo. As previsões são de que Shanagi continuará
a crescer rapidamente sob uma perspectiva comercial, até ser o
principal centro de comércio internacional na China Continental.
O povo judeu sempre conseguiu estar a bordo quando surgem novas oportunidades
de negócios, e no ano passado nossa comunidade cresceu 30%. Está
se tornando um ciclo – agora que há uma comunidade, mais
pessoas estão dispostas a vir com suas famílias. Portanto,
esperamos que a comunidade judaica em Shangai cresça e prospere
num futuro próximo, dando-nos bastante trabalho a ser realizado,
com a ajuda de D'us.
Não é preciso dizer que a motivação, inspiração
e forças sobrenaturais que todo chassid e shliach possui vêm
do Rebe. E quando ocorrem ações aparentemente insignificantes
que resultam em coisas maiores e mais importantes, isso nos lembra que
somos apenas os facilitadores – as berachot e a força vêm
direto do Rebe, diretamente para o benefício das almas dos judeus
em Shangai que precisam delas. Que possamos todos merecer a suprema de
todas as berachot, a vinda de Mashiach, que seja breve em nossos dias!
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