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Há pouco tempo fui a uma sinagoga para as preces
noturnas. Em meio ao serviço, notei um congregante comportando-se
rudemente com outro. Eu estava a ponto de dizer alguma coisa, quando um
homem perto de mim sussurrou: :”Estes dois sujeitos estão
brigando desde que estou aqui. Não se envolva.”
“Não é uma grande coisa,” você poderia
pensar. “As pessoas em toda parte têm briguinhas tolas.”
Porém eu não podia simplesmente deixar isso passar.
Uma experiência de infância não me permitiria. Quando
eu tinha seis anos, lembro-me claramente – numa espécie de
imagem congelada, do tipo que resulta somente de uma experiência
de criança para sempre congelada na memória – de uma
luta a socos que ocorreu em nossa sinagoga. Jamais me esquecerei do meu
medo e horror ao assistir aqueles dois adultos se socando em meio dos
serviços de prece. Quando perguntei ao meu pai o que estava acontecendo,
ele simplesmente descartou o problema com a mão e disse “Tzvai
idioten” (dois idiotas)…
Anos depois, eu tinha ouvido pessoas demais contando-me como experiências
semelhantes as tinham afastado da religião e de instituições
religiosas: tendo testemunhado profundas inconsistências entre as
aparências externas das pessoas (como indivíduos devotos)
e seu comportamento real, tendo visto como uma pessoa pode ser obsessivamente
comprometida com certos rituais e simultaneamente ser profundamente grosseira
e mal educada; como determinados indivíduos religiosos fazem julgamentos
e são condescendentes, agindo como se fossem “mais sagrados
que você”, e em suas vidas pessoais, por baixo da superfície,
podem se apegar a bobagens, ganância e até… lutar a
socos; como divisões e pura acrimônia primitiva tem permeado
tantas comunidades de fé; como crianças em lares religiosos
estão sendo magoadas por adultos egoístas, não diferentes
de seus semelhantes em lares seculares. Todas essas discrepâncias
e contradições têm contribuído bastante para
o cinismo e rejeição atuais da vida religiosa.
Obviamente, isso deve ser qualificado por dois fatos importantes. O primeiro
é que isso de maneira alguma é um estereótipo de
indivíduos religiosos, muitos dos quais são almas gentis
e sensíveis, pessoas que estão continuamente se esforçando
para refinar-se exatamente por causa de suas crenças. Alguns dos
mais nobres, cultivados e espirituais seres humanos na terra são
pessoas de fé. O segundo ponto é que um sistema jamais deveria
ser julgado por qualquer pessoa ou por um grupo de indivíduos.
A religião estabelece um padrão específico para a
virtude humana e a justiça. Nenhuma pessoa neste planeta pode chegar
ao padrão mais elevado.
O compromisso da vida é alguém que sempre aspire a elevar-se,
enquanto conhece suas falhas e que sempre há horizontes maiores
a conquistar.O fato de que alguns poucos indivíduos possam ser
hipócritas e se comportar de maneiras constrangedoras não
se reflete no sistema como um todo, somente na realidade de que o sistema
não impede que pessoas tolas façam opções
erradas e se comportem de maneira imprópria ou imatura. Não
é diferente, dizem, que um cientista falsificar dados é
algo que se reflete em todos os cientistas e na ciência.
Porém aqueles poucos (ou alguns a mais) indivíduos que claramente
se comportam de maneira contrária ao padrão religioso certamente
são capazes de dar um soco que deixa o olho negro – um soco
que perdura.
Portanto, em tempos perturbadores como esse, quando religião corrupta
e a feiúra da natureza humana ergue sua cabeça, eu gostaria
de fazer uma viagem – uma jornada que nos leva três mil anos
atrás, ao nascimento da religião.
O que diria o homem que nos deu o monoteísmo e adotou uma vida
de virtude, justiça e bondade sobre a religião em nossos
tempos? Ele seria capaz de reconhecê-la? Como Avraham reagiria se
entrasse numa sinagoga moderna? Ele prontamente se juntaria à mesa
de diretores ou se tornaria parte de seu corpo docente? E como ele reagiria
a uma briga na sinagoga entre seus tetra-tetra-tetranetos?
Aqui está minha especulação sobre a atitude de Avraham
para com a vida religiosa atual.
Coemecemos com a briga. Se Avraham entrasse numa sinagoga e visse a luta
que eu presenciei, não tenho dúvidas de que ele choraria.
Teria a mesma reação a todas as outras inconsistências
acima mencionadas.
Porém a questão maior é se ele sequer entraria numa
sinagoga do Século 21? Ficaria à vontade ali? E qual sinagoga,
exatamente, ele escolheria?
Avraham ficaria bem perturbado por qualquer casa de D'us que tenha sido
transformada numa burocracia. Duvido que Avraham se sentisse confortável
em qualquer sinagoga que não desse as boas-vindas igualmente a
todo indivíduo, onde toda alma se sentisse em casa.
Talvez seja por isso que Rabi Isaac Luria, o Arizal (um cabalista do Século
16) e o Baal Shem Tov (fundador da Chassidut) – como era costume
de outros sábios e místicos – recitasse certas preces
no campo na véspera do Shabat. Lemos na porção Chayei
Sarah da Torá (Bereshit 24:63): “Yitschac saiu para falar
(rezar) no campo.” Yitschac deve ter aprendido isso com alguém
antes dele – ninguém menos que seu pai, Avraham1 Algumas
preces talvez sejam mais condutivas no campo, em meio à natureza,
sem distrações das estruturas feitas pelo homem e instituições.
Até mesmo as estruturas onde as preces geralmente são feitas
exigem janelas que nos permitem ver e atingir além da estrutura,
até o céu. Avraham estaria procurando as janelas…
O Baal Shem Tov certa vez correu para fora de uma sinagoga relativamente
vazia, reclamando que o local estava muito lotado, não lhe deixando
espaço para rezar. Quando seus alunos perguntaram o que ele queria
dizer, o Baal Shem Tov explicou: “O Zohar diz que amor e reverência
são como as duas asas de uma ave que leva nossas preces voando
até o céu. Nessa sinagoga em particular as preces estavam
sendo recitadas sem qualquer sentimento, deixando-as presas ao chão,
como pássaros engaiolados, incapazes de voar. A sinagoga portanto
estava tão apinhada com aquelas preces “mortas”, que
não deixava espaço para o Baal Shem Tov rezar…
Avraham estaria procurando as janelas – pelas preces se elevando
e pelos espíritos alados.
Avraham foi um pioneiro do não-conformismo. Desafiou sua família
e toda a sua sociedade, rejeitando o paganismo e mapeando um novo curso
que mudaria a história para sempre. Não há dúvida
de que Avraham, o pai da individualidade e não-conformismo, ficaria
chocado ao ver como o caminho Divno que ele iniciou – deixando para
trás todas as suas zonas de conforto, e escolhendo para si mesmo
e seus filhos uma vida de virtude e serviço – como a religião
se tornou tão conformista hoje em dia, muitas vezes asfixiando
o espírito humano.
Avraham foi um pensador global com uma visão universal para liderar
as pessoas rumo à redenção pessoal e coletiva. Ele
claramente acharia estranho que alguns judeus de hoje se tornaram tão
paroquiais, e até divisivos, concentrando-se em suas vidas pessoais,
e com frequência esquecendo que D'us nos deu um projeto universal
para melhorar o mundo em geral. E como as notas musicais numa grande composição,
precisamos uns dos outros para realizar nossas aspirações
individuais.
Avraham não se isolou em estudo, prece e devoção
Divina. Ele abriu sua casa a todos, ele “criou” (inspirou)
almas em Charan, ele fez disso a obra de sua vida, não apenas ensinar
aos filhos o caminho da integridade e da justiça, como inspirar
todos com quem entrava em contato. Como, certamente Avraham se perguntaria,
sua atitude confiante e ativa – como uma força a impulsionar
o progresso humano – se torna tão defensiva e tentativa?
Avraham foi um apaixonado, uma alma revolucionária que mudou o
mundo ao seu redor, em vez de deixar que o mundo o mudasse. O que aconteceu,
perguntaria Avraham, que hoje tantas pessoas de fé carecem de paixão
e alma? Por que há tantas pessoas mecânicas, que cumprem
as mitsvot de cor? E por que as pessoas religiosas hoje em dia são
tão afetadas pela sociedade contemporânea (quer elas saibam
disso ou não) e pela busca ao dinheiro, que em vez de elas moldarem
o mundo, é o mundo que as está moldando? E onde estão
os revolucionários?
Porém acima de tudo, Avraham não se retiraria. Ele não
escolheria o caminho mais fácil de proteger “a própria
pele” e desistir da nossa geração. Se Avraham rezava
pelos infiéis de Sodoma, ele certamente faria todo o possível
para nos ajudar a libertarmo-nos da nossa letargia.
Avraham certamente encontraria profundo mérito em nós, seus
netos. Apesar de todas as perseguições e genocídios,
apesar de séculos de opressão, os descendentes de Avraham
ainda permanecem. Embora, talvez fracos algumas vezes, talvez inconsistentes,
talvez carentes de paixão – mas ainda tentando.
Porém Avraham não se contentaria em achar mérito
nas nossas vidas. Ele nos engajaria, desafiaria, tentaria nos habilitar
e despertar – ele nos acenderia para pararmos de agir como vítimas
e assumir controle de nossas vidas e nossos destinos.
Ele nos imbuiria com profunda confiança (ou melhor ainda, acenderia
a confiança que jaz adormecida em nossas almas) para sair e mudar
o ambiente em que vivemos.
Sim, de fato, imagine só como Avraham mudaria nosso mundo de cabeça
para baixo! Somente pensar nisso pode fazer você estremecer.
É interessante visualizar como um homem que viveu há mais
de 3.700 anos reagiria ao nosso mundo e o que ele faria para melhorar
a nossa condição.
Então mais uma vez, talvez haja um Avraham conosco hoje. Talvez
aquele Avraham esteja dentro de você e de mim…
Notas:
1 – Os comentaristas reconciliam isto com a lei que declara que deve-se
rezar numa estrutura – veja Tosafot Berachot 34 b. Zohar Beshalach
60 a. Mogen Avraham Orach Chaim 90:6. |