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  Um Furo na Orelha  
 
Por Rabino Jonathan Sacks
 

Como então você impede as pessoas de fazerem coisas prejudiciais sem tirar a liberdade delas?

Primeiro, em Yitrô, houve asseret hadibrot, os “Dez Pronunciamentos”, ou princípios gerais. Agora em Mishpatim vêm os detalhes. Eis aqui como eles começam:

Se você comprar um servo hebreu, ele deve servi-lo por seis anos, porém no sétimo ano, ele deve ser libertado, sem pagar nada… Porém se o servo declarar: “Gosto do meu amo e minha esposa e filhos não desejam ser libertados,’ então o amo deve aceitá-lo perante os juízes. Deve levá-lo até a porta ou batente e furar sua orelha com um furador. Então ele será seu servo por toda a vida...

(Shemot 21:2-6)

Há uma questão óbvia. Por que começar aqui? Há 613 mandamentos na Torá. Por que Mishpatim, o primeiro código de lei, começa neste ponto?

A resposta é igualmente óbvia. Os israelitas tinham acabado de passar pela escravidão no Egito. Deve haver uma razão para isso ter acontecido. Séculos antes Ele já tinha dito a Avraham que isso iria acontecer: Quando o sol estava se pondo, Avraham mergulhou num sono profundo, e uma escuridão densa e assustadora caiu sobre ele. Então o Eterno lhe disse: “Saiba com certeza que durante quatrocentos anos seus descendentes serão estranhos num país que não lhes pertence e que eles serão escravizados e maltratados ali. (Bereshit 15:12-13)

Parece que esta era a necessária primeira experiência dos israelitas como nação. Desde o início da história humana, o D'us da liberdade forneceu o livre arbítrio para os seres humanos livres, mas uma após a outra as pessoas abusaram dessa liberdade: primeiro Adam e Eva, depois Caim, depois a geração do Dilúvio, então os construtores de Babel.

D'us começou novamente, dessa vez não com toda a humanidade, mas com um homem, uma mulher, uma família, que se tornariam pioneiros da liberdade. Mas a liberdade é difícil. Nós a buscamos para nós mesmos, mas a negamos a outros quando a liberdade deles conflitua com a nossa. Tão profunda é essa verdade que dentro de três gerações dos filhos de Avraham, os irmãos de Yossef quiseram vendê-lo como escravo: uma tragédia que não terminou até que Yehuda estivesse preparado para perder a própria liberdade a fim de que seu irmão Benyamin pudesse ficar livre.

Foi preciso a experiência coletiva dos israelitas, sua experiência amarga, profunda, íntima, pessoal, da escravidão – uma lembrança que foram ordenados a jamais esquecer – para transformá-los num povo que não mais entregaria seus irmãos e irmãs como escravos, um povo capaz de construir uma sociedade livre, a mais difícil de todas as conquistas no âmbito humano.

Portanto não admira que as primeiras leis ordenadas após o Sinai estivessem relacionadas à escravidão.

Teria sido uma surpresa se fossem sobre qualquer outra coisa.Mas agora vem a verdadeira questão. Se D'us não deseja a escravidão, se Ele a considera uma afronta à condição humana, por que Ele não a aboliu imediatamente? Por que permitiu que continuasse, embora de maneira restrita e regulada? É concebível que D'us, que pode produzir água de uma pedra, maná do céu, e transformar o mar em terra seca, não possa mudar o comportamento humano? Existem áreas nas quais o Todo Poderoso é, por assim dizer, impotente?

Em 2008 o economista Richard Thaler e o professor de lei Cass Sunstein publicaram um livro fascinante chamado Nudge. Nele eles abordam um problema fundamental na lógica da liberdade. Por um lado a liberdade depende em não legislar demais. Isso significa criar espaço dentro do qual as pessoas têm o direito de escolher por si mesmas.

Por outro lado, sabemos que as pessoas nem sempre farão as escolhas certas. O modelo antigo no qual a economia clássica era baseada, de que deixadas por si mesmas as pessoas farão escolhas racionais, acabou não sendo verdadeiro. Somos profundamente irracionais, uma descoberta para a qual diversos acadêmicos judeus fizeram importantes contribuições. Os psicólogos Solomon Asch e Stanley Milgram mostraram o quanto somos influenciados pelo desejo de nos conformar, mesmo quando sabemos que outras pessoas erraram. Os economistas israelenses, Daniel Kahneman e Amos Tversky, mostraram como até quando tomamos decisões econômicas com frequência calculamos mal seus efeitos e deixamos de reconhecer nossas motivações, descoberta pela qual Kahneman ganhou o Prêmio Nobel.

Como então você impede as pessoas de fazerem coisas prejudiciais sem tirar a liberdade delas?

A resposta de Thaler e Sunstein é que há maneiras disfarçadas pelas quais você pode influenciar as pessoas. Numa lanchonete, por exemplo, você pode colocar comida saudável ao nível da visão, e junk food num local menos acessível e menos perceptível. Você pode ajustar sutilmente aquilo que eles chamam de “arquitetura da opção” das pessoas.

Isso é exatamente o que D'us faz no caso da escravidão. Ele não a aboliu, mas a limita tanto que coloca em ação um processo que, de maneira previsível, mesmo que somente depois de muitos séculos, levará as pessoas a abandoná-la por vontade própria.

Um escravo hebreu deve ficar livre após seis anos. Se o escravo se acostumou tanto à sua situação que não deseja ser libertado, então ele é forçado a passar por uma cerimônia que o estigmatiza, na qual tem a orelha furada, o que permanece como um sinal visível de vergonha. Todo Shabat,escravos não podem ser forçados a trabalhar. Todas essas estipulações têm o efeito de transformar a escravidão de destino vitalício em condição temporária, algo que é sentido como humilhação em vez de ser algo escrito indelevelmente na história humana.

Por que escolher esta maneira de fazer as coisas? Porque as pessoas devem escolher livremente abolir a escravidão, se é que desejam ser livres. Foi preciso o reinado do terror após a Revolução Francesa para mostrar o quanto Rousseau estava errado quando escreveu no Contrato Social que se necessário as pessoas têm de ser forçadas a serem livres. Essa é uma contradição em termos, e levou, no título do notável livro de J. L. Talmon sobre o raciocínio por trás da Revolução Francesa, à democracia totalitária.

D'us pode mudar a natureza, disse Maimônides, mas Ele não pode, ou prefere não fazê-lo, mudar a natureza humana, exatamente porque o Judaísmo é construído sobre o princípio da liberdade humana. Então Ele não poderia abolir a escravidão da noite para o dia, mas poderia mudar nossa arquitetura de opções, ou em palavras simples, nos dar um cutucão, mostrando que a escravidão é errada mas que nós devemos aboli-la, em nosso próprio tempo, através do nosso entendimento. Foi preciso muito tempo de fato, e na América, não sem uma guerra civil, mas aconteceu.

Há alguns assuntos nos quais D'us nos dá um cutucão. O resto cabe a nós.

 

 

 
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