Por Rabino Adin Even-Yisrael (Steinsaltz)  
  Ordens de marchar  
índice
   
 

Estamos celebrando 100 anos de nascimento do Rebe. Uma centena de anos é muito tempo. É um espaço de tempo que assinala mudanças em muitas maneiras. É um número muito significativo no judaísmo, porque 100 anos representam um ciclo completo de vida. Cem anos também definem uma unidade histórica de tempo - um século - e desejo dar a ele o reconhecimento que merece. Gostaria de falar um pouco sobre aquele século, o século do Rebe.

O século do Rebe foi um período no qual aconteceram coisas espantosas. O mundo mudou mais neste século que nos mil anos precedentes, talvez mais até que nos dois mil anos anteriores. No campo da geopolítica, este século testemunhou diversas revoluções abaladoras. Ditaduras totalitárias na Rússia, Alemanha, Itália e Espanha, surgiram e cresceram, conquistaram hegemonia - e todas elas caíram. Os mapas do mundo mudaram tremendamente neste século - Europa, África e Ásia mudaram sua face. Em quase todos os lugares, muito aconteceu neste espaço de tempo, incluindo duas guerras mundiais que estraçalharam o planeta.

Houve mudanças na área das idéias e do conhecimento. Duas novas disciplinas, psicologia e psicanálise, provocaram um impacto duradouro em nossa cultura geral. A arte abstrata, novas formas de literatura e a computação trouxeram imagens e idéias inteiramente novas à experiência humana. Nosso novo domínio da biologia provocou uma tremenda mudança pós-modernista em nosso entendimento sobre como mudamos e sobre as mudanças que geramos. A Teoria da Relatividade foi um notável discernimento, alterando a percepção do mundo e seu auto-entendimento, uma posição da qual não há retorno. Deu origem à bomba atómica, ao passo que nosso conhecimento sobre a biologia criou a engenharia genética. Estas realizações, bem como tantas outras, pairam sobre nós como ameaças e como oportunidades.

Olhando mais atentamente a vida judaica, observamos também grandes mudanças. Neste século, a vida judaica passou por três importantes transformações. A primeira desdobrou-se por um longo tempo, porém sua importância não ficou evidente de imediato, embora fosse dramática. Seguindo-se a um período no qual o povo judeu tinha sido mais ou menos religioso, começou então um claro afastamento da ortodoxia. Ao final da Primeira Guerra, a maioria dos judeus era não-religiosa. Esta é uma enorme mudança.

A segunda mudança foi provocada pela Shoá, o Holocausto. A Shoá matou o âmago da vida judaica: homens, mulheres e crianças que eram os elementos mais vibrantes e animados do povo judeu. Seis milhões deles - ou mais - foram mortos.

E então houve a criação do Estado de Israel: outro evento sem precedentes, outra tremenda mudança. Todas estas coisas representam alterações dramáticas na história e na vida do povo judeu; nada assim tinha acontecido nos mil anos anteriores.

Então mudou o mundo político, mudou o mundo intelectual, mudou o mundo judaico.

O Rebe não viveu simplesmente no século em que ocorreram estes eventos. O Rebe participou, em níveis diferentes e de maneiras diversas, em muitos deles. Quando criança, ele sobreviveu a pogroms na Rússia, foi um rapaz ao tempo da Revolução Russa, e escapou da Europa durante o Regime Nazista. Seu conhecimento e compreensão do que estava acontecendo no mundo foram singulares. Deve-se lembrar que o Rebe podia recorrer a vastos suprimentos de sabedoria, tanto espiritual quanto científica, pelo seu domínio da física, biologia, literatura e da natureza humana. O Rebe fez parte de todas estas mudanças, e foi também uma pessoa que criou e trabalhou dentro delas. Viveu durante o período mais fascinante, assustador e mutável que já houve.

O Rebe viveu na época mais difícil, mesmo assim foi capaz de ir em frente. O Rebe não somente estava cônscio de muitas dessas mudanças; ele predisse e advertiu contra algumas delas.

Mas devemos ir um pouco mais além. Evidentemente, o Rebe conhecia o passado - o seu próprio, o de seu povo, e o passado da humanidade. Porém com tudo isso, ele jamais foi um homem do passado; sempre do futuro. Se você ler seus muitos escritos, encontrará aqui e ali algumas referências sobre o passado, mas o foco e a direção estão no futuro. Ele às vezes falava sobre o que tinha acontecido, porém muito mais sobre o que deveria acontecer, sobre o que aconteceria. Algumas pessoas o viam como um símbolo e um retrato da glória do passado judaico, mas isso é um equívoco. Em tantas maneiras, ele era um homem do próximo século, um homem que fazia parte muito mais do futuro que do passado. E isso explicará o que era tão importante para o Rebe em seus últimos anos.

O Rebe contemplava o mundo e via e sentia tanto acontecendo, tanta trepidação e agitação por todo o mundo, mas não considerava estes desenvolvimentos como efeitos finais; ele os via como tremores preliminares precedendo um grande levante. O Rebe via toda a mudança e sofrimento no decorrer do século como as dores de parto que assinalam um nascimento iminente. E era isso que o Rebe tinha em mente quando falava sobre Mashiach.

O Rebe falou sobre Mashiach porque viu todo o passado, o século no qual viveu, como os preparativos ressoando antes da ocorrência de um enorme levante. Isso é o que tentava dizer às pessoas. Esta é a mensagem que ele tentava comunicar. Com o passar dos anos, ele tornou-se mais e mais intenso, mais e mais enfático, sobre a idéia de que Mashiach estava para chegar. Ele viu isso não apenas por meio de uma visão celestial; ele o percebeu ao observar como o mundo estava se movendo, nas mudanças que ele presenciou. Viu o movimento, o sofrimento e a dor como pressagiando um evento mais importante, uma grande mudança, e aquela mudança é a chegada de Mashiach.

Claramente, a vinda de Mashiach não é um mero acontecimento no mundo; é muito mais importante, muito mais profundo. Nas palavras dos profetas, Mashiach significa o fim dos dias - ou seja, o final da história. Assinala o fim dos dias comuns, e o início de uma era completamente nova, uma era tão nova que nada no passado pode se comparar a ela. Mashiach mudará a história permanentemente, alterará permanentemente a vida humana, e introduzirá um futuro que será muito diferente do passado.

O Rebe não estava simplesmente conversando sobre Mashiach, e não estava apenas falando sobre uma profecia que ele desejava preservar. O Rebe falava sobre Mashiach porque entendia que a vinda de Mashiach é um processo no qual devemos ser tanto participantes ativos quanto beneficiários passivos. É um processo dual, como o nascimento, onde não se pode especificar qual parte vem do Alto e qual parte vem do trabalho interno do corpo humano.

Esta síntese é aquilo a que o Rebe se referia quando falava sobre Mashiach. Portanto, o Rebe não via "Mashiach" como um mantra a ser dito seis ou dez vezes ao dia para superar tempos difíceis. Para o Rebe, Mashiach era algo a ser trabalhado, com o qual lidar, pelo qual lutar. Isso porque somos feitos, e nossa história é feita, desde o início, como o prelúdio rumo ao final dos dias. Não estamos nos preparando para o fim da vida humana ou o fim da existência terrena, mas para uma enorme mudança em tudo isso. Portanto, é algo sobre o qual não apenas devemos falar, mas algo para o qual devemos nos preparar.

Neste contexto, deixe-me abordar a noção do "legado" do Rebe. Não se deve usar esta palavra a respeito do Rebe. Ele não deixou um legado. O Rebe deixou ordens de marchar. Este é um conceito completamente diferente. O Rebe não deixou apenas uma coleção de livros, vídeos e discursos. Ele deixou uma tarefa a ser completada, e os livros e outros recursos fornecem o entendimento que possibilitará às pessoas cumprirem-na.

Tentarei delinear algumas das idéias que estão nessas ordens, adequada e corretamente, e transmitir suas palavras elevadas em linguagem simples e comum. Creio que esta não é apenas uma interpretação pessoal, mas é a opinião da liderança oficial de Chabad. Espero, também, que esta explicação seja valiosa para o Movimento Chabad, o qual, acredito, é maior que a organização. E espero que essas palavras cheguem além disso, para atingirem a comunidade muito maior de todos aqueles a quem o Rebe tocou de uma maneira ou de outra, e que elas causem uma espécie de mudança.

Quando falamos sobre a vinda de Mashiach, falamos sobre um mega-evento, um grande fenômeno que altera tudo. Talvez não estejamos completamente preparados e não saibamos como, o quê ou quando será este evento, mas estamos falando sobre mudanças significativas. Uma das conseqüências desta declaração é que, se estamos esperando que as coisas mudem grandemente, teremos de fazer grandes mudanças, também. E uma dessas mudanças é que temos de nos descartar de grande número de desentendimentos banais e assuntos fúteis; conflitos que não apenas são perversos e prejudiciais, como também ridículos.

Perto das mudanças realmente significativas que estamos prevendo, todos nossos desentendimentos triviais se reduzem a uma ninharia; nossas disputas são cômicas, não somente dolorosas. Não estou falando apenas de desentendimentos pessoais, mas da completa noção de armadilhas políticas com que se tem de lidar neste país e em Israel, meu país. Muitas das coisas pelas quais as pessoas brigam são da mais pura e superficial insensatez, especialmente se compararmos estes desentendimentos ao estabelecimento de uma ordem completamente diferente. Neste sentido, discutir se o Partido A ou o Partido B tem um determinado direito ou uma autoridade especial parece ridículo. Quem se lembrará destas pessoas tolas que estavam lutando por tais coisas? Quando o tsunami (grande onda de choque) estiver para envolver o mundo, ninguém se lembrará se minha loja ficava no lado direito ou esquerdo da rua; tudo mudará.

Portanto, a vinda de Mashiach significa, entre outras coisas, o descartar das lutas internas. Devemos falar às pessoas sobre o significado de Mashiach. Devemos deixar de lado, por exemplo, as brigas sobre a interdenominação judaica, muitas das quais estão associadas com considerações e avaliações pequenas e de curta duração. O que será melhor para minha organização, para meu grupinho, nos próximos dois, três ou cinco anos? Como conseguirei um pouco mais de apoio deste homem rico ou daquele homem rico? Como posso manobrar de outra maneira pequena para ser notícia em algum jornal ou outro? Mais uma vez, comparado às coisas verdadeiramente grandes, todas essas parecem sem sentido.

É ainda mais importante falar sobre o futuro, o que as pessoas vão fazer, quando chegar a hora... e a hora está chegando, quer desejemos ou não. O status quo será alterado e todos esses assuntos triviais serão descartados. Isso significa, também, que há muitas coisas que devemos fazer. Então, o que fazemos?

Deixe-me começar dizendo alguma coisa sobre Israel. Estamos empacados em uma posição muito desafortunada. Tentamos nos mover para a direita, e o caminho está bloqueado. Tentamos nos mover para a esquerda, e o caminho está bloqueado. Tentamos seguir em frente, mas não podemos. Tentamos recuar, mas somos impedidos. Portanto, estamos cercados e bloqueados de todos os lados. Há uma direção, porém, que não está fechada: para cima. Aquela rota ainda está aberta, e devemos tentar nos mover naquela direção.

Devemos fazer isso não somente como uma declaração, ou um lema, mas como um sério movimento prático rumo a um novo modo de vida. Isso não significa "Vamos jogar fora tudo aquilo que estamos fazendo e lidar diretamente com o Alto." Isso não significa ser não-terreno e esquecer de tomar o café da manhã. (As pessoas não se esquecerão disso nem mesmo no Mundo Vindouro). Mas podemos colocar em perspectiva nossa vida e nossas crises racionais, e quando as colocarmos em perspectiva, elas se tornarão muito diferentes, porque nossas verdadeiras noções estarão com o Alto.

De maneira mais concreta, isso significa ser mais genuinamente preocupado, e trabalhar mais, por todo segmento da sociedade, não apenas nos detalhes, mas nas áreas mais importantes da sociedade: preocupando-nos com as lacunas entre os grupos étnicos e a crescente brecha entre os ricos e os pobres; tornar a educação (não apenas o conhecimento) uma ambição básica e universal, e levar o país inteiro - não somente um segmento dele - à conscientização do Divino. Isso significa também ser cuidadoso para não usar o Todo Poderoso para conseguir benefícios egocêntricos (mesmo que sejam louváveis), mas lembrar-se que todos nós, sejamos direita ou esquerda, somos o povo de D'us.

De uma forma mais enfática, esta é a direção e a ordem para o Movimento Lubavitch, um movimento que precisa continuar a progredir. Tanto já foi feito; tanto foi conseguido. Em alguns locais, as conquistas são maravilhosas, inimagináveis. Em alguns lugares, é como assistir à floração no deserto, onde a vida judaica parecia estar morta, e foi revivida.

Mas tudo isso não é suficiente, de forma alguma é suficiente, porque agora estamos falando de um processo muito maior. Não podemos ficar parados e nos vangloriar. É verdade que quando um judeu coloca um par de tefilin uma vez durante sua vida, há uma nova luz no mundo. É verdade que quando um judeu elimina um alimento não-casher de sua dieta, embora não se abstenha de outros alimentos não-casher, este é um ganho, um avanço. Mas agora temos de falar às pessoas não apenas sobre pequenas mudanças, mas sobre as grandes, sobre uma completa transformação. Temos de enfrentá-las; elas têm de se ver como judeus. Não é fácil fazer tais mudanças; às vezes é muito difícil sugeri-las, mas a hora de fazê-lo é agora. Não sabemos quando, se em dois ou em dez anos, mas algo de grandioso está acontecendo. E se devemos estar preparados, então precisamos dizer às pessoas para jogarem fora tudo que é insensato, para deixarem de condescender em coisas que não são importantes, para começarem a viver de maneira diferente. Isso significa tanto aqueles que dedicam a vida a esta obra quanto aqueles que são voluntários. Isso significa falar com aqueles que estão aqui e aos muitos mais que não estão.

Temos de começar falando sobre mudar, não apenas mover, mas sobre retornar em grande escala. "Em grande escala" significa que não basta fazer gestos simbólicos, por exemplo, dizer a um homem idoso: "Faça-me um favor e envie seu neto para estudar no chêder por duas horas." Ao contrário, trata-se de contactar as pessoas de modo mais e mais significativo, ajudando-as a mudar a vida, a estabelecer prioridades onde devem ser estabelecidas, e a colocar seus esforços onde devem ser colocados, porque está chegando um tempo no qual estas são as coisas que irão contar, e a maior parte do resto não terá a mínima importância. Será uma realidade diferente; as coisas não serão as mesmas.. Precisamos dizer isso às pessoas. Temos de dizer de novo, da maneira mais enfática que pudermos. Isso não significa que devemos invalidar aquilo que estamos fazendo; devemos, porém, trabalhar em escala muito maior. Temos de agir de maneira muito mais urgente. Estas idéias precisam ser expressas não somente para indivíduos, como também para organizações, para grupos, para a comunidade judaica em geral. Temos de repetir o chamado do Sexto Rebe: "Teshuvá agora - Redenção agora." Tudo que foi feito não é suficiente. Nunca é o suficiente. Precisa ser feito dez vezes mais, se queremos estar prontos para o tempo.

Há algo mais que devemos dizer, algo que tem a ver com nossa atitude sobre o mundo. O Rebe começou, mas nós temos de continuar a dizer isso, não somente a nossos irmãos judeus, mas a toda a humanidade. Temos de falar sobre os chamados Sete Mandamentos de Nôach, as sete leis que o Todo Poderoso deu a Nôach após o Dilúvio. Estes mandamentos são para toda a humanidade, para todo ser humano. Devemos falar sobre estes mandamentos não apenas a um indivíduo, como se estivéssemos vendendo mercadorias, mas a todos os povos e nações do mundo, para que possamos mudar o mundo. Nossa meta não é fazer um cumprimento ao Rebe. Um mundo novo e diferente chegará em breve, e temos de nos dirigir a ele. Temos de dizer às pessoas que uma época diferente está chegando, um tempo no qual coisas diferentes serão importantes. Devemos fazer com que todos cumpram as sete leis básicas de Nôach, as leis da natureza e as Leis Divinas, e devemos aproximar as pessoas. Isso é o que precisamos dizer aos indivíduos e nações.

Como podemos fazê-lo? Porque o Rebe está atrás de nós, de certa forma fazendo e dizendo essas coisas. Isso significa reconhecer que agora é o tempo de ir aos outros e a nós mesmos, e prestar atenção nas coisas grandes e nas coisas importantes, e desprezar os pequenos detalhes.

Nossos Sábios nos dizem, lendo Bereshit 49:33, que: "Nosso Patriarca Yaacov não morreu." A idéia é que, como existem judeus no mundo, a semente de Yaacov está viva, vivendo dentro de nós. Em tudo aquilo que fazemos em nossa vida, uma minúscula parte dele sobrevive dentro de nós. Dizemos em nossas preces: "David, o Rei de Israel, está vivo e perdurando," o que significa que a soberania de David jamais morreu. Alguém pôde matar o último rei judeu, nas ninguém pode destruir a soberania do povo judeu. O reinado ainda está vivo, ainda aqui. Podemos ser oprimidos, podemos ser atacados, mas a soberania de Israel continua. Naquele sentido, eu diria que o Rebe implantou seu espírito em tantas pessoas, que seus sonhos, suas visões, seu discernimento e seu enorme desejo continuam. Se apoiarmos seu profundo desejo de provocar aquela grande mudança, podemos então dizer que o Rebe ainda está vivo. O Rebe está aqui, quando aqui estamos e fazemos todas as coisas que ele deixou em suas ordens de marcha. Ele disse que deveríamos avançar. Ele disse que não deveríamos caminhar, mas sim correr. Devemos atacar. Ele disse que devemos ir mais além.

Devemos fazer, e o faremos.

De um discurso pronunciado num encontro de American Friends of Lubavitch, assinalando o 100º aniversário do Rebe, feito na Biblioteca do Congresso em Washington, D.C., em 11 de março de 2002.

 

   
top