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  O ódio que não vai morrer  
   
 

Rabino Chefe da Inglaterra, Professor Jonathan Sacks
The Guardian - 28 de fevereiro de 2002

Nunca pensei que teria de escrever sobre anti-semitismo. Jamais o sentira, até recentemente. Eu poderia ter passado por isso. Freqüentei escolas cristãs, Primária St. Mary, depois Christ's College Finchley. Os judeus eram diferentes e uma minoria. Mesmo assim, não fui insultado sequer uma vez devido à minha fé.

Como muitos outros nascidos depois do Holocausto, o anti-semitismo era algo que eu associava com o passado. Meu falecido pai falava sobre isso. Ele tinha chegado à Inglaterra quando criança, fugindo da perseguição, e sempre argumentou que o anti-semitismo polonês era mais profundo que o dos alemães. Somente após sua morte descobri que em Kielce, sua terra natal, um pogrom tinha ocorrido em julho de 1946. Os polacos da localidade atiraram, apedrejaram, esquartejaram e assassinaram quarenta e dois sobreviventes judeus do Holocausto. Porém apesar de tudo que sabia, meu pai jamais me prevenira a esperar o preconceito. Quando muito, fazia piada sobre isso. 'Faróis de tráfego anti-semitas,' costumava dizer sempre que as luzes ficavam vermelhas à nossa aproximação.

Até agora, tenho sido reticente para falar sobre o anti-semitismo. Há uma grande diferença no mundo entre o virulento anti-judaísmo que dominou a Europa Ocidental durante o século dezenove e seu requintado equivalente inglês (perfeitamente descrito no romance de Isabel Colegate, The Shooting Party, quando o anfitrião comenta, depois da chegada do convidado judeu, 'O semita está entre nós'). Comentários indiscretos feitos por embaixadores em jantares não constituem um novo caso Dreyfus. A reação exagerada é tão tola quanto a sub-reação. O anti-semitismo é perigoso somente quando penetra na correnteza do discurso político, algo que ainda não aconteceu na Grã-Bretanha.

Então, novamente, alguns judeus vêem o anti-semitismo como parte da identidade judaica. Assim fez Jean Paul Sartre quando alegou em sua Sobre a Questão Judaica que a única coisa que os judeus tinham em comum era serem as vítimas do ódio. Não foram os judeus que criaram o anti-semitismo, disse ele, mas o anti-semitismo que criou os judeus. Tenho lutado contra esta opinião durante toda minha vida adulta. Isso conduz à torturada psicologia de um Arthur Koestler, que escreveu: 'O auto-ódio é o patriotismo dos judeus' ou a Franz Kafka, que declarou: 'O que tenho em comum com os judeus? Não tenho algo em comum nem mesmo comigo.' Para mim, judaísmo tem a ver com responsabilidade moral, não vitimismo; com confiança, não medo. O anti-semitismo é algo que acontece com os judeus; não define como nós somos.

Da mesma forma, podemos facilmente repudiar toda a crítica do Estado ou governo de Israel como anti-semitismo. Não é. Nenhum estado democrático tem o direito de considerar-se além da reprovação, e Israel é um estado democrático. Na verdade foi o Israel antigo que, com os profetas bíblicos, inventou a arte da autocrítica. O Sionismo categoricamente não o é, como às vezes dizem algumas alegações: 'Meu povo certo ou errado.' Porém alguns ataques a Israel têm ido além da mera crítica. Têm penetrado em território mais obscuro. A questão é: onde desenhamos a linha de demarcação?

O anti-semitismo é um tópico tão emotivo que ajuda a desempenhar uma idéia experimental. Supomos que alguém passe a declarar que há uma forma de preconceito denominada anti-kiwismo, um ódio irracional aos neozelandeses. O que poderia nos convencer que esta pessoa está certa? Críticas ao governo neozelandês? Não. A negação ao direito de existir da Nova Zelândia. Talvez. 7732 ataques terroristas aos cidadãos da Nova Zelância no ano passado? Possivelmente. Uma série de alegações na Conferência das Nações Unidas contra o racismo em Durban, que a Nova Zelândia, pelo tratamento dispensado aos maoris, é singularmente culpada de apartheid, limpeza étnica e crimes contra a humanidade, acompanhadas por cartazes no grotesco estilo nazista? Talvez.

Uma conclamação a matar todos aqueles com lealdade para com a Nova Zelândia, embora tivessem nascido e vivido em outro lugar? Uma sugestão de que os neozelandeses controlam a economia do mundo? Que eles são responsáveis pela Aids e pelo envenenamento dos reservatórios de água? Que ele arranjaram os ataques de 11 de setembro ao World Trade Center? Que eles são uma força satânica do mal, contra quem uma guerra santa deve ser travada? A esta altura mudamos da crítica ao ódio para a fantasia do mal. Agora delete 'Nova Zelândia' e insira 'Israel' e 'Judeus' e todas estas coisas aconteceram no ano passado. O que mais precisa acontecer para que um observador imparcial conclua que o anti-semitismo está bem vivo, e é perigoso?

Há uma semana, um clérigo na parte leste de Londres foi acusado de 'solicitar para matar' após alegadamente ter distribuído vídeos conclamando seus seguidores a atacarem os judeus ('Como você luta contra os judeus? Você mata os judeus.') Alguns dias depois, surgiu outro vídeo, mostrando o revoltante assassinato no Paquistão do jornalista americano Daniel Pearl. Ele foi mostrado sendo forçado a se ajoelhar e confessar que ele e seus pais eram judeus. Sua garganta foi então cortada. Sobre seu corpo contorcido, uma voz adverte: 'Outros americanos e judeus deveriam estar prontos a enfrentar um destino como o de Daniel Pearl.' Estas são apenas as notícias mais dignas de nota sobre uma onda de incidentes anti-judaicos que têm ocorrido no mundo nos últimos meses, afetando até mesmo a vida estudantil na Inglaterra. Isso não é polido nem requintado. É real, algo supremamente assassino.

O anti-semitismo é inegavelmente a ideologia mais bem sucedida dos tempos modernos. O Fascismo chegou e desapareceu. O mesmo ocorreu com o Comunismo Soviético. O anti-semitismo veio e permaneceu. Seu sucesso deve-se ao fato de que, como um vírus, passa por mutações. Às vezes está dirigido contra os judeus como indivíduos. Atualmente é dirigido contra os judeus como um povo soberano. O fator comum é que aos judeus, exclusivamente, é negado o direito de existir, seja qual forma sua existência coletiva tome atualmente. Há uma linha direta que vai de 'Vocês, como judeus, não têm direito de viver entre nós' até 'Vocês não têm o direito de viver.'

O que me perturba é que, caso este ódio cumulativo fosse dirigido contra qualquer outra pessoa, a esquerda seria a primeira a protestar. Aprendemos alguma coisa com a História? Um ataque a judeus é um ataque contra a diferença, e um mundo que não tem lugar para diferença não tem lugar para a própria humanidade.

     
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