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Nervos de aço

 

Rabino chefe da Inglaterra, Professor Jonathan Sacks – 17 de fevereiro de 2006

 

A força de um povo é testada em tempos difíceis. Estes são tempos difíceis. Os eventos se sucedem a passos largos: a ameaça iraniana de varrer Israel do mapa; a eleição pelos palestinos do Hamas, um grupo empenhado na destruição de Israel; a violência que se seguiu à publicação das caricaturas dinamarquesas; e o julgamento de Abu Hamza.


Esses políticos sabem que as investidas contra Israel são um ataque mal disfarçado contra o Ocidente e sua liberdade.

Em nível local, houve a votação do Sínodo da Igreja da Inglaterra para considerar um pedido de destituir as empresas associadas a Israel; a pesquisa Populus dos muçulmanos britânicos; e os artigos do Guardian acusando Israel de ser um Estado apartheid. Estes de maneira geral têm menores conseqüências, mas aumentaram nosso senso de vulnerabilidade. Como devemos reagir?

Primeiro, vamos reconhecer nossa ira e sofrimento. Israel tem assumido grandes riscos pela paz, porém parece que a cada etapa é recompensado com mais hostilidade. A comunidade judaica na Grã-Bretanha tem contribuído imensamente para a vida nacional, porém após 350 anos ainda nos sentimos ameaçados. Nossos temores não são infundados. Temos lembranças longas e amargas. Reconhecemos o perigo quando o avistamos.

Sentir raiva e sofrimento é natural. Agir baseado nisso, porém, é algo bem diferente. É isso que nossos inimigos previram. Muitas vezes, é isso que eles pretendem. Agir no calor da emoção pode ser duro e sofrer um mau julgamento. Pode piorar as coisas. Pode levar as pessoas a se concentrarem no momento, em vez de pensarem a longo prazo. Principalmente se um grupo é pequeno, deve escolher com cuidado seus campos de batalha. Sempre que possível, não deveria lutar sozinho. Deve conquistar amigos, e basear seu caso em elevados padrões morais. Isso não é fraqueza, mas sabedoria. Seja deliberado no julgamento, dizem os Sábios. Eles poderiam ter acrescentado: especialmente quando há muito em jogo.

Carregamos conosco elementos decisivos para a coragem. O povo judeu tem sobrevivido por mais tempo que qualquer outra religião ou civilização conhecida pelo Ocidente. Foi ameaçado pelos egípcios, assírios, babilônios, Grécia e Roma antigas, impérios medievais do Cristianismo e Islã, e no Século Vinte pelo Terceiro Reich e União Soviética. Cada um deles certa vez passou por cima do mundo como um colosso, mas todos terminaram sendo relegados às páginas da História.

O povo judeu – aparentemente fraco, pequeno, indefeso – ainda vive. Estes embates não ocorreram sem custo humano, às vezes imenso. Porém após cada um deles, o povo judeu reconstruiu-se, nunca de maneira tão grande como depois do Holocausto. Se a força do povo é testada em tempos difíceis, o nosso é um povo com uma força que inspira respeito.

Devemos agora trabalhar como uma comunidade, desenvolvendo estratégias, reunindo nossa sabedoria, cultivando nossos aliados, partilhando nossos pontos fortes.


A crise que a humanidade enfrenta no Século Vinte e Um não é apenas política ou econômica, militar ou diplomática. É moral e espiritual.

Numerosos encontros com esta finalidade já ocorreram nos últimos dias, e o trabalho deverá continuar nos próximos meses. Devemos reagir com dignidade e calma, pensando a longo prazo, evitando reações previsíveis, jamais nos rebaixando ao nível de nossos oponentes. Em épocas tensas, a vantagem vai para o grupo que tem nervos mais fortes. Depois de tudo que tem se abatido sobre o nosso povo, nós temos nervos de aço. O fato mais importante sobre a situação atual é que nos assuntos importantes, nem Israel nem o povo judeu estão sozinhos. Um Irã com capacidade nuclear não é uma ameaça somente para Israel, mas para o mundo todo.

Condoleezza Rice e Tony Blair viram isso claramente. O mesmo ocorreu com Jacques Chirac e Angela Merkel. A declaração de Chirac em 19 de janeiro, de que a França estava preparada para lançar um ataque nuclear contra qualquer país que patrocinasse um ataque terrorista contra os interesses franceses, e a comparação de Ahmadinejad a Hitler feita por Angela Merkel foram sinais muito significativos. Esses políticos sabem que as investidas contra Israel são um ataque mal disfarçado contra o Ocidente e sua liberdade.

Quanto à eleição do Hamas, isso foi inevitável por causa da corrupção do regime anterior. Todo palestino sabia disso, o principal, porém, é que o mesmo ocorria com os principais políticos europeus, que mesmo assim continuaram a apoiar a administração de Arafat. A política de "jante com o diabo, desde que seja um diabo que você conhece" funciona a curto prazo, mas nunca a longo. Os Estados Unidos descobriram isso após terem patrocinado os radicais mujahedin – os primeiros associados de Osama bin Laden – em 1980 no Afeganistão. A Europa não deve cometer este erro novamente.

A violência que se seguiu às caricaturas na Dinamarca excederam todos os limites. Justiça seja feita, os representantes da comunidade islâmica britânica se dissociaram disso. As caricaturas não deveriam ter sido publicadas. Mas se a liberdade de expressão tem limites para a impressa dinamarquesa, tem limites para aqueles que protestam contra a imprensa dinamarquesa. Como disse John Locke, o arquiteto da tolerância, há mais de três séculos: "É irracional que qualquer um que tenha liberdade de religião não reconheça como um princípio que ninguém deve ser perseguido ou molestado porque discorda dele na religião."

Em todos estes problemas apoiamos aqueles que estão preparados para lutar pela tolerância, pela resolução não violenta dos conflitos, pela moderação, respeito mútuo, auto-restrição e pelas civilidades de uma sociedade livre. Esta não é uma luta judaica mas humana, e trabalharemos com pessoas de boa vontade, qualquer que seja sua fé ou ausência dela.

O voto do Sínodo da Igreja da Inglaterra para "considerar" uma chamada para destituir determinadas empresas associadas com Israel foi equivocada até em seus próprios termos. O resultado imediato será a redução da habilidade da Igreja para agir como força de paz entre Israel e os palestinos pelo tempo em que a decisão permanecer válida. A essência da mediação é a disposição em ouvir ambos os lados.

A ocasião não poderia ter sido mais imprópria. Israel arriscou-se à guerra civil para cumprir a retirada de Gaza, a primeira vez na história do Oriente Médio que um país cedeu território conquistado numa guerra defensiva sem uma única concessão, nem sequer a mais nominal, por parte do outro lado. Israel enfrenta dois inimigos, Irã e Hamas, declarados em sua ameaça de eliminá-lo. Precisa de apoio, não de ser transformado em vilão.

Durante anos eu tenho conclamado grupos religiosos na Grã-Bretanha para enviarem uma mensagem de amizade e coexistência a zonas de conflito em todo o mundo, em vez de importarem os conflitos para a própria Grã-Bretanha. O efeito da eleição do Sínodo será o oposto. A Igreja preferiu apoiar a política do Oriente Médio sobre a qual não tem influência, sabendo que haverá as repercussões mais adversas numa situação sobre a qual ela tem enorme influência, ou seja, as relações cristãs-judaicas na Grã-Bretanha.

É por isso que não podemos deixar o problema de lado. Se havia uma vela de esperança acima de todas as outras após o Holocauto, era que judeus e cristãos pelo menos aprenderam a conversar entre si após dezessete séculos de hostilidades, que levaram a exílios, expulsões, guetos, conversões forçadas, disputas, libelos, inquisições, morte nas fogueiras, massacres e pogroms. Não podemos deixar que essa vela seja extinta.

A Igreja poderia ter escolhido, em vez de penalizar Israel, investir na economia palestina. Isso teria ajudado os palestinos. Teria tido o apoio da maioria dos israelenses e da maioria dos judeus. Na verdade é um judeu australiano, Sir James Wolfensohn, antigo líder do Banco Mundial, que está supervisionando a reconstrução da economia palestina em nome do Grupo dos Quatro, e que pessoalmente angariou fundos para adquirir para os palestinos as instalações agrícolas israelenses em Gaza. O gesto da Igreja incomodará israelenses e judeus sem ajudar os palestinos.

Como uma comunidade, devemos nos engajar mais ativamente na promoção das boas relações da comunidade, especialmente em nível local. Devemos ensinar a nós mesmos e aos outros a história do vínculo de quatro mil anos do nosso povo com a Terra de Israel; como fomos expulsos por um império após o outro, mas sempre retornamos; como Israel nos dias dos Profetas e hoje buscou incansavelmente a paz, somente para ser recompensado com a guerra. Devemos trabalhar com jornalistas que sabem que a verdade nunca é partidária. Devemos buscar o apoio de políticos que apelem aos instintos mais elevados, não aos mais baixos, do povo. Temos inimigos, mas temos muitos amigos.

Acima de tudo, devemos ficar firmes no sistema de valores que Avraham e o Judaísmo legaram ao mundo. A crise que a humanidade enfrenta no Século Vinte e Um não é apenas política ou econômica, militar ou diplomática. É moral e espiritual. Podemos ser verdadeiros com a nossa fé enquanto somos uma bênção a outros, independentemente de sua fé? Podemos considerar um chamado de D'us para consertar, não para destruir? A agressão é filha do medo, e o único antídoto duradouro é a fé que declara: "Embora eu caminhe pelo vale da sombra da morte não temerei mal algum, pois Tu estás comigo."

Jamais deixaremos de amar Israel, rezar pela paz, e trabalhar pelo bem da humanidade. Nossos nervos devem continuar fortes, nosso julgamento calmo e nossa linguagem pacífica. E venceremos. Pois se a História Judaica tem uma mensagem para o mundo, é que existe algo no espírito humano que não pode ser derrotado – algo que deu e ainda dá ao nosso povo pequeno aflito, lançado pela tempestade, a força de sobreviver a todos os seus inimigos, enquanto amplia a imaginação moral da humanidade.

       
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