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  Casamentos Mistos
  Por Eliezer Shemtov
 

Um dos temas mais preocupantes e menos entendidos da vida judaica é aquele dos casamentos mistos. Devido à falta de informação subjetiva sobre o assunto, este se torna muito complexo sob um ponto de vista emocional.

Por um lado, os pais sentem que quando seu filho se casa com alguém não-judeu, ele ou ela está rompendo a cadeia milenar de continuidade judaica e não querem deixar que isso aconteça. Por outro lado, eles se sentem pouco à vontade de se opor abertamente ao casamento misto por causa de suas conotações racistas.

Por que desqualificar alguém como potencial parceiro de casamento apenas porque ele ou ela não nasceu de um útero judaico? Esta parece ser uma atitude discriminatória.

A fim de analisar este assunto, devemos dividi-lo em partes:

1 - Qual é o fundamento para a oposição a casamentos mistos?
2 - Como um judeu pode se opor ao casamento misto sem contradizer o instinto natural que tem de lutar contra a discriminação, especialmente depois de tudo que sofremos no decorrer da história como resultado da discriminação racial?
3 - Que explicação alguém pode dar a um não-judeu para justificar a recusa em considerá-lo para o casamento?

A Base
A fonte primária sobre a qual se baseia a proibição de um judeu casar-se com não-judeu encontra-se na Torá (Devarim 7:3): "Não casarás com eles (os não-judeus, sobre quem a Torá fala nos versículos anteriores), não darás tua filha ao filho deles e não tomarás a filha deles para teu filho."

O motivo para essa proibição é claramente dita no versículo a seguir: "Porque ele afastará teu filho de Mim e eles servirão a deuses estranhos…" ("Deuses estranhos" também pode ser interpretado como significando aqueles ideais e "ismos" que não se adequam aos ditames da Torá, e perante os quais a pessoa inclina a cabeça e dedica seu coração e sua alma.)

O Talmud (Yevamot 23a) enfatiza – e Rashi cita em seu comentário sobre o versículo acima mencionado – que da expressão exata do versículo (ele – e não ela – afastará teu filho) podemos derivar duas coisas. No caso de sua filha casar-se com "o filho deles", ele terminará por afastar seus filhos (em outras palavras, seus netos, que ainda serão considerados seus filhos) do caminho da Torá. No caso de seu filho casar-se com a filha deles, os filhos não serão mais considerados seus filhos, mas filhos dela. Não são considerados judeus.

Fica claro, então, que não estamos tratando aqui de discriminação racial que nasce de uma atitude pessoal e subjetiva que o judeu tem face a face com o não-judeu. Estamos falando sobre uma ordem Divina objetiva, que é acompanhada por uma explicação. Se o seu filho desposar uma mulher não-judia, os filhos nascidos dessa união não serão mais considerados seus filhos. No caso de sua filha casar-se com um não-judeu, inevitavelmente seus netos se desviarão do caminho de Judaísmo, embora ainda sejam considerados judeus.

Levando em conta a responsabilidade que o judeu tem de cumprir os preceitos da Torá, fica evidente que é obrigatório para os judeus casar-se dentro da fé, porque caso contrário, será impossível continuar a cumprir a obrigação que tem de manifestar a Divindade neste mundo, algo que somente é possível cumprindo-se a vontade de D'us. O casamento misto é uma clara contradição à vontade declarada de D'us.

Para melhor entender esta questão, devemos esclarecer um outro aspecto. Não somente é proibido para um judeu casar-se com uma não-judia, é impossível para um judeu desposar uma não-judia. É possível para eles viverem juntos, é possível coabitarem, é até possível procriarem, mas não há possibilidade de ocorrer o casamento.

As leis da Torá são tão objetivas e inalteráveis (ou mais) que as leis da natureza. Assim como não se pode alterar a lei da gravidade, por exemplo, não se pode alterar as leis da Torá. O estudante de Torá ou sábio não procura criar leis, mas descobrir a estrutura Divina que é inerente no universo e na vida.

O que é casamento?
Numa tentativa de responder a essa pergunta, vemos que é um desafio explicar qual é exatamente a função do casamento em geral. Se duas pessoas se amam, por que não viverem juntas? O dia em que decidirem não mais partilhar suas vidas, cada um estará livre para seguir seu caminho! Mesmo se declararem seu compromisso por meio do casamento, quando não quiserem mais permanecer casados têm a opção do divórcio. Qual é, então, o propósito e função do casamento?

Muitos respondem que o casamento nada mais é que uma formalidade, uma norma social que dá "status legal" ao casal. Porém dizer que o casamento é simplesmente uma norma social implica que não há valor verdadeiro, intrínseco; que é arbitrário. O que acontece no caso de alguém que não se preocupa com a autoridade humana ou com o estigma social é que então, está tudo bem, se um casal vive junto e tem filhos sem ser casado.

Parece-me que a única base verdadeira e justificativa para o casamento é ser uma instituição Divina. Foi idéia de D'us. A idéia de casamento tem suas raízes na Torá. Embora haja muitos sistemas sociais que não se baseiam na Torá e mesmo assim reconhecem a instituição do casamento, isso não refuta o fato de que a origem e real valor do casamento sejam de origem Divina.

Vamos comparar este conceito com um fenômeno semelhante. De onde vem a semana de sete dias? Por que uma semana tem sete dias e não seis ou oito? O ciclo semanal de sete dias tem sua origem nos Sete Dias da Criação. Para alguém que acredita na Torá, o ciclo semanal de sete dias tem profundo significado espiritual. Para quem não acredita, o ciclo de sete dias é meramente arbitrário. Em outras palavras, para quem aceita a Torá como o "projeto" da Criação, a semana de sete dias tem uma razão de ser. Para quem não acredita, a semana de sete dias não faz sentido. O mesmo se aplica ao casamento. Para aquele que não acredita, o casamento não faz muito sentido. É simplesmente uma formalidade instituída, talvez para assegurar a herança dos filhos. Para quem acredita, o conceito e instituição do casamento assume um significado muito maior e mais profundo, como veremos adiante.

O Talmud e a Cabalá nos ensinam que o casamento não é meramente uma união entre dois indivíduos totalmente diferentes. É a reunião de duas metades da mesma unidade. Um casal compartilha a mesma alma que, no nascimento, se divide em duas metades incompletas. Com o casamento, elas se reúnem e se tornam, mais um vez, completas. Estamos tratando aqui não de uma união apenas no nível físico, emocional e/ou intelectual. Estamos falando de uma união no nível mais profundo, mais essencial do ser.

Há almas que são compatíveis para casamento e há almas que não são. Além do caso de casamentos mistos, a Torá enumera uma lista de "casamentos" inválidos. Por exemplo, o "casamento" entre irmão e irmã biológicos ou entre um homem e uma mulher que esteja casada com outro homem, em outras palavras, incesto ou adultério. A Tora aqui não está falando apenas sobre proibições, mas fatos. Nos exemplos acima mencionados, jamais pode haver qualquer casamento, embora seja fisicamente possível coabitar e procriar.

Baseados nisto, temos uma explicação muito simples para o não-judeu sobre porque não o consideramos como potencial parceiro de casamento. Não é devido a um defeito que ele tenha. Deve-se simplesmente ao conceito bíblico do casamento, ao qual todo judeu sente-se obrigado a aderir.

Um caso hipotético: O que aconteceria se um rapaz e uma moça judeus decidem se casar e estão muito apaixonados um pelo outro, e meia hora antes da cerimônia começar eles descobrem que compartilham os mesmos pais biológicos? Eles se casariam mesmo assim? Obviamente não, e o fato de não poderem se casar não implica que o amor declarado um pelo outro era falso… O amor é um fator muito importante num relacionamento, mas não é o único fator que determina a legitimidade de um casamento.

É possível que um rapaz judeu encontre compatibilidade com uma moça não-judia (e vice-versa) e gostaria de criar uma família com ela. Esta aparente compatibilidade somente é possível quando nenhum deles manifesta sua essência. Desde que o judeu não se preocupe com o fato de ele ou ela ser judeu e o não-judeu não se preocupe com sua origem pessoal e sua essência, tudo parece perfeito. O que acontecerá no dia em que qualquer um deles "acordar" e decidir preocupar-se com aquilo que realmente é? De repente, surge a incompatibilidade. Em outras palavras, enquanto nenhum dos dois se preocupa com sua essência, eles podem sentir-se compatíveis com alguém que é essencialmente oposto. No minuto em que um deles descobre sua verdadeira identidade, o relacionamento deixa de ter qualquer significado verdadeiro.

Conheço alguns casais mistos que estavam muito apaixonados até o momento em que nasceram os filhos. De repente, começaram a ter discussões acaloradas sobre a educação dos filhos, embora tivessem muito tempo antes resolvido o assunto teoricamente. A mãe judia deseja circuncidar seu filho, por exemplo, ao passo que o pai não-judeu não quer que o filho seja diferente dele. Num instante surge a incompatibilidade, mas já é tarde demais – eles agora produziram uma criança que ambos os pais e todos os avós consideram sua…

Obviamente, podem citar muitos exemplos de casais judeus que têm conflitos. Devemos, no entanto, explorar os fatos e ver se eles levam a vida segundo as normas delineadas na Torá. Pelo menos, o casal judeu sempre tem o potencial de viver segundo a vontade de D'us.

Surge uma questão: o que acontece no caso de um judeu não religioso ou ateu? Esta incompatibilidade com um não-judeu ainda existe? Afinal, se a pessoa não se importa com a religião, por que se preocupar quando se trata de escolher um parceiro para casar?

O que é um judeu?
Para resolver essa pergunta, devemos explicar outro conceito básico: o que é um judeu? O que distingue um judeu de seu vizinho não-judeu? Veja, por favor, que não estou perguntando aqui: "Quem é judeu?", mas sim "O que é um judeu?" porque a resposta à pergunta 'Quem é judeu?' é muito clara: alguém que nasceu de uma mãe judia ou converteu-se ao Judaísmo de acordo com as leis estipuladas na Torá. Isso, no entanto, não responde a pergunta 'O que é um judeu?'

As pessoas com freqüência respondem esta pergunta dizendo que ser judeu significa "ter um senso de pertencer ao povo judeu". Esta resposta não é satisfatória, simplesmente transfere a questão da identidade para longe do indivíduo. O que, então, é o povo judeu? Uma Nação composta de indivíduos que não têm outra identidade exceto a de pertencer a um Povo que não tem definição? É como dizer que a definição de "árvore" é "parte de uma floresta". O raciocínio é o contrário. Uma vez que eu saiba o que é uma árvore, posso então definir floresta dizendo "um grupo de árvores". Não posso definir uma árvore simplesmente dizendo "parte de uma floresta"!

É óbvio também que não posso definir o que é um judeu baseado em seu cumprimento das mitsvot, porque aqui, também, o raciocínio é o oposto: o indivíduo tem a obrigação de cumprir mitsvot porque é um judeu. Não posso dizer que alguém é judeu porque ele ou ela cumpre as mitsvot. Considere: um bebê recém-nascido é judeu embora não tenha ainda cumprido uma única mitsvá, e não tenha consciência de sua fé! Um bebê judeu do sexo masculino é circuncidado porque é judeu; ele não é judeu porque é circuncidado.
O que, então, é um judeu?

Após estudar o assunto por muitos anos e ter incontáveis conversas com judeus de todos os níveis de observância e crença, creio que a resposta mais coerente e convincente é que o elemento distintivo do judeu é a neshamá (alma) que todo judeu possui. A alma de um judeu é diferente da alma de um não-judeu. Elas têm diferentes características, potenciais e necessidades. Todo judeu tem essencialmente o mesmo tipo de alma que qualquer outro judeu. Esta alma judaica é herdada da mãe. É o denominador comum que conecta o judeu russo com o sírio, iemenita, canadense ou uruguaio, embora eles não falem o mesmo idioma e talvez tenham costumes e hábitos diferentes. A única diferença significativa entre um judeu e outro é o nível e intensidade de expressão dessa essência comum. Em alguns, esta essência se manifesta constantemente, ao passo que em outros, expressa-se uma vez por ano e em outros apenas uma vez na vida.

Esta definição de "O que é um judeu?" não contradiz a aspiração que alguém possa ter de ser um "cidadão do universo", porque para ser realmente um "cidadão do universo", a pessoa deve realizar seu papel específico dentro da comunidade universal. Ser um "cidadão do universo" não implica negar o papel específico que cada um tem, mas sim inserir-se na sociedade com uma identidade e propósito definidos.

Quais são as características especiais da alma?
Rabi Shneur Zalman de Liadi, fundador do Movimento Chabad, define da seguinte maneira: um judeu não deseja, nem pode separar-se de D'us.

É possível que um judeu não esteja consciente do fato de que por determinadas ações ele está afetando seu relacionamento com D'us. Se soubesse as conseqüências de suas ações, não prejudicaria espontaneamente seu relacionamento com D'us. Todo judeu tem sua "linha vermelha", que não cruzará mesmo que por isso tenha de pagar com a própria vida.

Muitos judeus passam a vida negando sua condição de judeus, mas numa situação inesperada, quando suas defesas estão baixas e ficam distraídos, seu Judaísmo aparece. Há muitos judeus que investem tempo, energia e recursos para negar que são judeus. Embora possam negar veementemente este fato, seu comportamento é apenas outra manifestação de seu inegável Judaísmo, pois se realmente não fossem judeus – como alegam – por que é tão importante para eles negarem isso?

Vemos, portanto, que o problema não começa quando um rapaz judeu deseja casar-se com uma moça não-judia. A raiz do problema está no fato de que ele foi privado de uma verdadeira educação judaica a ponto de nem perceber o que significa ser judeu e a inerente incompatibilidade entre ele e sua namorada não-judia.

Para muitos, a oposição aos casamentos mistos pode parecer elitista e até racista. Por que desaprovar um casamento somente porque um dos membros não é judeu? Um rapaz judeu que deseja desposar uma moça não-judia poderia pensar: "Que hipócritas! Quais são as diferenças práticas entre meu comportamento no dia-a-dia, ou dos meus pais, e o comportamento da mulher não-judia com quem desejo me casar?

Seria difícil defender essa resistência – aparentemente hipócrita – da parte dos pais, se não fosse pelo fato de que podemos atribuí-la à neshamá que eles tem. A neshamá não permite que eles aceitem que seu filho cruze esta "linha vermelha" que serve (para todos os propósitos práticos) quebrar irreversivelmente a cadeia, embora eles próprios talvez não consigam explicar por que isso os perturba tanto.

Em outras palavras, sua oposição ao casamento misto do filho não é incoerente. É a sua falha no cumprimento das mitsvot, numa base diária, que é incoerente e inconsistente com sua essência.

Opção de Conversão
Uma das soluções propostas para resolver o problema do casamento misto é converter o parceiro não-judeu ao Judaísmo. "Por que perder duas almas, se podemos ganhar uma?…"
A conversão é uma alternativa válida?

Vemos que o Judaísmo reconhece a possibilidade de um não-judeu converter-se ao Judaísmo. O processo adequado de conversão, conhecido como Giyur, é bastante simples. Consiste em três etapas:

1) Circuncisão (no caso de um homem);
2) Imersão no micvê (banho ritual);
3) Aceitação dos 613 preceitos em sua totalidade.

Estas três etapas devem ocorrer na presença de um tribunal rabínico válido. (Um tribunal rabínico válido consiste em três rabinos que aceitam a Torá como a palavra de D'us e aceitam cumprir os 613 preceitos na vida diária pessoal.)

O Judaísmo não acredita em proselitismo, porque nem todos precisam ser judeus para encontrar graça aos olhos de D'us e terem seu lugar no Mundo Vindouro. Para o não-judeu é suficiente respeitar o Código de leis conhecido como as Sete Leis Noahidas para merecer um lugar no Paraíso. No caso de um não-judeu que deseja sinceramente tornar-se judeu e viver de acordo com as normas delineadas na Torá para o judeu, nós o aceitamos de braços abertos, desde que tenha passado pela Giyur adequada. É óbvio, pois, que no caso de alguém desejar se converter ao Judaísmo como resultado do seu desejo de desposar um judeu ou judia, é altamente improvável que os motivos para essa conversão sejam sinceros.

Lembro-me de uma história na qual um rapaz judeu desejava casar-se com uma não-judia. Os pais do rapaz insistiam que ela estudar os fundamentos do Judaísmo antes de concordarem com o casamento. A moça aceitou a condição e foi estudar numa escola religiosa para moças. Embora seu motivo original fosse satisfazer a exigência dos pais do namorado, com o passar do tempo ela descobriu um mundo novo e ficou genuinamente interessada no Judaísmo. Depois de alguns meses, o rapaz falou com ela para fazerem os arranjos necessários para o casamento. "Fala sério?" perguntou ela. "Acha que pretendo me casar com um rapaz que estava disposto a desposar uma moça não-judia?"

Quanto ao argumento de que: “se não aceitarmos todos os tipos de conversão ou casamentos mistos terminaremos alienando os jovens judeus que se casam com parceiros não-judeus ou aqueles que passaram por conversões cosméticas, no entanto, se os aceitarmos como judeus, estaremos conquistando almas para o povo judeu”:

Em primeiro lugar, o Judaísmo não é um negócio, especialmente quando baseado em mentiras e desonestidade. O Judaísmo é baseado em tentar cumprir o máximo daquilo que D'us nos pede. Não temos de ficar mais preocupados com o futuro do povo judeu que o próprio D'us está. D'us está tão "consciente" quanto nós desse argumento e seus supostos benefícios para o futuro desses casais e o futuro do povo judeu. Apesar disso, a Torá declara (Devarim 7:7), que D'us não escolheu o povo judeu por causa de sua superioridade em números ou poder, mas por causa de sua humildade e devido ao pacto que Ele fez com nosso antepassado, Avraham. Os judeus sobreviveram a todos os seus opressores não por causa de sua inteligência, riqueza ou poder político, mas por causa da sua sinceridade, autenticidade e auto-sacrifício para preservar e defender seu pacto com D'us.

Além disso, por mais que gostássemos ou por mais que possa parecer que "compensa" aceitar este tipo de conversão, não temos a capacidade de negar nem alterar os fatos. Não está em nosso poder fazer a ninguém este "favor", da mesma maneira que não podemos ajudar um casal que deseja um filho homem e D'us os abençoa com uma menina. Temos o poder de fazer mudanças cosméticas, mas isso não muda o fato de que assim se consegue nada mais que uma cruel e desonesta mutilação e distorção.

O conceito judaico de conversão
É interessante notar que a expressão que o Talmud (Yevamot 48b) usa quando se refere a convertidos (autênticos): "Ger shenitgayer kekatan shenolad dami", que significa: um convertido é como um bebê recém-nascido.

Quando o Talmud fala sobre um escravo que foi libertado, não diz "um homem que foi libertado", mas sim: “um escravo que foi libertado". Por que, então, ao falar sobre um convertido, o Talmud usa a expressão 'um convertido que se converteu', em vez de usar a expressão 'um gentio que se converteu'?
Uma das explicações é a seguinte:

Um convertido autêntico é um que, embora nascido de mãe não-judia, nasce com uma neshamá, uma alma judaica. É essa neshamá que o impele a se tornar um judeu ou judia por completo. Em outras palavras, podemos dizer que este indivíduo nasceu (destinado ou com uma propensão a tornar-se) um convertido. É por isso que um convertido é comparado a um recém-nascido. A diferença entre o momento antes e após o nascimento é que antes o bebê não é um ser independente. Seguindo esta analogia, um convertido antes da conversão é comparável a um judeu num estágio "embrionário", e portanto ainda não tem as responsabilidades de um judeu total. Somente após ter passado por uma conversão correta, ele ou ela se torna um judeu completo. Porém, como dissemos antes, para que essa transformação ocorra, a pessoa deve passar por uma autêntica conversão e não pelas versões cosméticas e estéreis que abundam, mascaradas como opções mais liberais.

Alguns perguntam: Por que um convertido deve ser mais religioso que aqueles judeus que não cumprem as mitsvot e mesmo assim são considerados judeus? Em outras palavras: se um judeu não-praticante é considerado judeu, por que devemos não considerar como judeu um não-judeu que passou por uma conversão não-religiosa?

A resposta é simples. Um judeu por nascimento é judeu não importa o que pense, diga ou faça. A mesma Torá que estabelece esta regra sobre o judeu por nascimento também estabelece que aquele que deseja se converter ao Judaísmo deve aceitar cumprir a Torá inteiramente, para ser aceito como judeu ou judia. Se alguém dissesse que deseja aceitar 612 dos preceitos mas há um com o qual não concorda e não pretende cumprir, dizemos a ele: Quem o está forçando a se tornar judeu? É preferível que não se converta e continue a cumprir sua missão na vida como um perfeito não-judeu que "converter-se" e se achar violando a lei da Torá!

Quando você pensa a respeito, é um critério compreensível e aceito. Se alguém nasceu nos Estados Unidos, a constituição americana o considera americano, não importa o que ele faça para violar a constituição. Se, no entanto, um estrangeiro deseja adquirir a cidadania americana, mas diz que não aceita uma determinada cláusula na constituição, ele será aceito como cidadão americano? Claro que não. Se você não gosta da constituição dos Estados Unidos, então torne-se cidadão de algum outro país cuja constituição você aprove!

Alguém que não queira aceitar a constituição americana em sua totalidade pode ser aceito como residente legal, mas não como cidadão. Um cidadão naturalizado deve aceitar a autoridade da constituição para ser aceito como cidadão.

Alguém quer sugerir que é mais fácil tornar-se judeu que se tornar cidadão de outro país? As leis de D'us são mais negociáveis que as leis humanas?

O verdadeiro problema
O casamento misto é na verdade um sintoma de um problema muito maior: a falta de uma educação judaica adequada.

Que tipo de educação estamos dando aos nossos filhos? Estamos realmente dando a eles as experiências e ferramentas necessárias para poderem entender e avaliar o significado e a importância de serem judeus?

E quanto à nossa educação judaica? Quanto tempo nós, pais, dedicamos ao nosso desenvolvimento espiritual? Se eu faço apenas aquilo que gosto de fazer e não reconheço a necessidade de obedecer a uma autoridade superior, como posso esperar que meus filhos não façam o mesmo? Com certeza eles me dirão: Papai, você faz o que você quer, por que eu não deveria fazer aquilo que eu quero? Se o pai não se sujeita a nenhuma autoridade moral, por que deveria esperar que seus filhos respeitem a ele e aos seus valores? Só porque foram gerados por ele?

A prioridade máxima atualmente deve ser a melhoria da educação judaica, tanto num nível pessoal como institucional. Não devemos nos conformar com o mínimo que nossos filhos estão recebendo. Devemos exigir o máximo.

Enviaríamos nossos filhos a uma escola na qual eles se graduassem sem saber como calcular a área do círculo ou quem foi Napoleão Bonaparte? Por que, então, deveríamos aceitar um padrão de educação judaica que não possibilita aos alunos decifrar uma página de Chumash ou Talmud no texto original ou que não os ensine quem foram Rabi Akiva, Abaye, Rava, Rashi, Rambam e Rabi Yehuda Halevi, e quais foram suas contribuições ao pensamento e cultura judaicos?

Eu gostaria de concluir partilhando um episódio que vivemos, logo depois que minha mulher e eu chegamos ao Uruguai, e a lição que extraímos disso.
Nosso filho mais velho, Mendy, nasceu logo depois que chegamos e devido à nossa inexperiência como pais, e especialmente num país novo, não fizemos seu registro de nascimento em tempo. Como resultado, tivemos de passar por um processo de Registro Tardio, que demora vários meses.

Nesse ínterim minha mulher e eu queríamos viajar para o exterior com nosso filho recém-nascido. Como somos ambos americanos, pudemos conseguir um passaporte americano emitido para nosso filho.

Chegamos ao aeroporto, prontos para viajar. Quando chegamos ao controle de passaportes, o inspetor pediu para ver os documentos uruguaios do bebê. Explicamos que não os tínhamos, e ele disse que não nos daria permissão para tirar nosso filho do país sem os documentos uruguaios.

"O que quer dizer, não podemos viajar com nosso filho?" perguntamos. "Ele tem um passaporte americano!"
"No que nos diz respeito, ele é uruguaio e portanto precisa de documentos uruguaios", explicou ele.
"Mas ele é nosso filho!" insistimos.
"Ele é uruguaio", declarou o inspetor.

Não viajamos naquele dia.
Aprendemos uma lição importante com aquele incidente. Não importa o quanto nosso filho seja nosso filho, nossos direitos não superam aqueles do Estado.
O mesmo se aplica a nosso relacionamento com nossos filhos e sua conexão com o povo judeu. Antes de pensar sobre os nossos direitos pessoais como pai, devemos pensar sobre as reivindicações e direitos que o povo judeu tem com nossos filhos e os direitos que eles próprios têm como membros do povo judeu.
Nossa maior responsabilidade é lhes dar as ferramentas necessárias para que possam levar a vida plenamente como judeus.

Dezenove anos apos este episódio com o funcionário da imigração, tive a oportunidade de mais uma vez falar com um funcionário da imigração uruguaia enquanto encaminhava um visto de saída para um de nossos filhos. Contei a ele o que acontecera há quase duas décadas e a lição que eu tinha aprendido.

"Você está enganado em sua conclusão", disse ele. "Não se trata de que os direitos do Estado superam os direitos dos pais; o Estado está meramente protegendo e defendendo os direitos da criança."

A lição sobre educação judaica se tornou ainda mais clara.


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