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  Abra o Seu Mar
  Por Yosef Y. Jacobson
 

"Formar casais é tão difícil quanto a abertura do mar," declara o Talmud.1

O que há por trás dessas palavras? Sim, o processo de encontrar e manter um parceiro para a vida pode ser desafiador e difícil, quase um milagre. Mas por que, de todos os milagres descritos na Bíblia, o Talmud escolheu especificamente a abertura do mar para exemplificar o processo de casamento?

Um mapa do subconsciente
Qual é a diferença entre a terra e o mar? Ambos são ambientes vibrantes e repletos de ação, povoados por uma miríade de criaturas e grande variedade de minerais e vegetação. Porém o universo da terra seca é exposto e aberto para todos verem e apreciarem, ao passo que o mundo do mar é oculto sob um cobertor de água.

No misticismo judaico (Cabalá e espiritualidade chassídica), estes dois planos físicos refletem as dimensões conscientes e inconscientes da psique humana.2 As duas partes do ser são extremamente vibrantes e dinâmicas. A diferença entre elas é que enquanto nosso ser consciente é exibido e mostrado para outros sentirem, nosso ser subconsciente permanece oculto, não apenas das outras pessoas, mas até de nós mesmos. A maioria de nós sabe muito pouco daquilo que está acontecendo nos porões de nossa psique.

Se você tivesse um vislumbre do seu próprio "mar" e descobrisse o universo da personalidade oculta por debaixo do seu cérebro consciente, o que acha que iria encontrar? Vergonha, medo, culpa, sofrimento, insegurança, uma ânsia de destruir, de sobreviver, de dominar, um grito por amor? Descobriria a libido de Freud, o inconsciente coletivo de Jung, a busca de Adler por controle e poder, a busca de Frankl por um significado?

Na Cabalá, no âmago da condição humana há um anseio por unidade. Rabi Shneur Zalman de Liadi (1745-1812), fundador da escola Chabad da Cabalá, foi um dos maiores especialistas em alma na história do Judaísmo, e escreveu sobre o tema mais que qualquer outro sábio judeu. Em 1796, cem anos antes de Freud, ele publicou um livro, o Tanya, no qual apresentou seu "mapa do subconsciente", baseado na tradição talmúdica e cabalista. Rabi Shneur Zalman oferece uma parábola fascinante para a vida interior da alma: citando o versículo bíblico, "A alma do homem é uma chama Divina" (Mishlê 20:27), ele explica que assim como a chama está sempre tremulando, dançando, lambendo o ar, procurando libertar-se do pavio e subir rumo ao céu, também a alma do homem está sempre aspirando deixar sua concha e experimentar a união com o Divino.

O segredo da intimidade
Esta busca por um relacionamento com o Divino é manifestada em nossa busca por relacionamentos com nossa chama gêmea aqui em baixo. Onde Freud diagnosticou a libido como um anseio por união com um dos pais, e Jung a viu como um anseio pelo gênero oposto em nosso inconsciente coletivo, a Cabalá a entende como uma busca pela união com D'us. Nosso desejo por intimidade é uma das expressões mais profundas de nosso anseio existencial por Verdade, por Unidade, por D'us.

Como diz o Livro de Bereshit: "D'us criou o homem à Sua imagem, na imagem de D'us Ele o criou; macho e fêmea Ele os criou." Claramente, foi na união e unidade dos gêneros que o primeiro Adam, o primeiro ser humano, refletiu a imagem de D'us.

Esta visão dos relacionamentos e intimidade é expressa nos próprios nomes hebraicos para homem e mulher dados por Adam em Bereshit. As palavras hebraicas para homem e mulher – Ish e Ishá – ambas contêm a palavra hebraica para fogo, Eish. Elas também contêm mais uma letra – um yud e um hei, respectivamente – que quando combinadas formam o Nome de D'us. O significado disso é profundo. Homem sem mulher, e mulher sem homem, carecem da totalidade do nome Divino. Quando eles se unem, as duas meias imagens do Divino dentro deles também se unem. O fogo e a paixão que os atrai um para o outro é seu anseio de recriar o Nome completo de D'us entre eles.

Numa cerimônia de casamento judaico, esta bênção é recitada: “Bendito sejas, D'us, Rei do Universo, que criaste o seu humano à Tua imagem… “ Por que esta bênção é recitada numa cerimônia de casamento? Não seria mais apropriado dizer esta bênção quando nasce uma criança? A resposta é que é através da união de homem e mulher que a imagem de D'us é mais claramente refletida.

As ramificações dessa idéia são importantes. Isso significa que o casamento não é uma suspensão do ser individual de uma pessoa em prol da união com um estranho. Ao contrário, através do casamento o homem e a mulher retornam ao seu estado natural, um único ser refletindo D'us, cada um à sua maneira singular. O casamento permite que marido e mulher descubram seu ser completo e pleno, um ser feito de energia masculina e feminina.

Conhece a ti mesmo
Podemos viajar pela vida inconscientes dessa dimensão do ser, procurando unidade com o Divino. No decorrer de nossos anos neste planeta podemos nos comportar como se este elemento do ser não existisse. Embora seus sintomas ecoem em nossa consciência – freqüentemente na sensação de vazio e falta de contentamento quando nosso ser espiritual está insatisfeito – somos propensos a descartá-los ou negá-los. Afinal, pelo menos a curto prazo, é muito mais fácil aceitar que somos nada mais que animais inteligentes ansiando pela auto gratificação que almas espirituais ansiando por D'us.

Quando vemos o ser na superfície, o egoísmo é mais fácil que o altruísmo; o isolamento mais natural que o relacionamento; a solidão mais inata que amor e compromisso. Somente quando "abrimos nosso mar", quando descobrimos a profundidade de nossa alma, as sutis vibrações de nosso subconsciente, descobrimos que a unidade satisfaz nosso âmago mais profundo; que o amor é a expressão mais natural de nosso ser mais profundo.

"Formar casais é tão difícil quanto abrir o mar," declara o Talmud. O desafio em criar e manter um relacionamento significativo e forte é a necessidade de partir nosso próprio mar todos os dias, para aprender como na profundeza de nosso espírito nós ansiamos por amar e partilhar nossa vida com outro ser humano, e com nosso Criador.3


Notas:

1 - Talmud, Sotah 2a. O Talmud está discutindo segundos casamentos, no entanto, em muitas obras judaicas, esta citação é aplicada a todos os casamentos (veja por exemplo Akeidat Yitschak Parashat Vayeshev).

2 - Esta noção de ver o macrocosmo como uma metáfora para o microcosmo é central em todos os escritos judaicos. "O homem é uma miniatura do universo," declaram nossos Sábios (Midrash Tanchumah Pekudê 3), um microcosmo de toda a existência criada. O ser humano, assim, inclui os elementos da terra bem como os elementos do mar – o homem tem tanto um aspecto terrestre quanto um aspecto aquático em sua vida. Na terminologia da Cabalá, o mar é definido como alma d'eiskasya, "o mundo oculto", ao passo que a terra é descrita como alma d'eitgalya, o "mundo revelado" (Torah Or, Parashat Beshalach).

3 - Este ensaio é baseado num discurso feito pelo segundo Rebe, Rabi Dovber (1773-1827), conhecido como o Miteler Rebe. (Publicado em Maamarei Admur Haemtzaei, Kuntrasim, Derushei Chasunah.)

 

 

 
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