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Janusz
Korczak (pseudônimo tirado de um romance pouco conhecido de Kra
Szewski. ) — cujo nome verdadeiro era Henryk Goldszmit — era
um homem humilde e simples na sua mais profunda acepção.
Sua vida foi recontada inúmeras vezes e continuará sendo,
porque ela mostra o horror da última guerra, a exterminação
dos judeus poloneses e o holocausto em atos indescritíveis na maior
atrocidade que a história e a humanidade já conheceu.
Nasceu em Varsóvia há pouco mais de cem anos. O fato de
seu pai ter sido um advogado conhecido e seu avô um médico
mostra até que ponto o seu meio foi assimilado. Pertencendo a uma
família da elite cultural polonesa, teve a melhor formação
pediátrica da época (1898-1904), pois estudou em Paris (que
dava ênfase à pesquisa de novos conhecimentos) e em Berlim
(conhecido pela aplicação metódica dos conhecimentos
adquiridos). Nos seus 8 anos de prática pediátrica deu preferência
à população pobre da qual não cobrava. Como
pediatra tinha conceitos avançados para a época e modernos
para os nossos dias.
Um pouco desgastado com a prática médica (decepcionado com
a comercialização da medicina e as intrigas acadêmicas)
reconciliou-se com ela através da pediatria social: "os remédios
são instrumentos auxiliares e não substitutos da higiene
e da ajuda social à família".
Ele cresceu na solidão, preservado das influências do exterior,
sem se dar conta de que era judeu e sem saber o que isso significava.
Antes de terminar a escola ele perdeu o seu pai, atingido por uma doença
mental. A miséria sucedeu a abundância. O jovem Henryk tomou
sobre si, da maneira como pode, o encargo de sua mãe e irmã,
e nos anos seguintes, freqüentemente passando fome, estudou medicina
com enormes dificuldades. Quando, por fim, obteve seu diploma, as coisas
começaram a melhorar, contribuindo também para isso sua
reputação de escritor que se afirmava. Mas isto não
durou muito tempo. Repentinamente um tipo de necessidade interior mudou
completamente seu destino.
Com trinta
e quatro anos ele abandonou o exercício da medicina para se dedicar
toda a sua vida às crianças. A idéia fixa de consagrar
sua vida às crianças parecia possuí-lo. Ele não
era um idealista ingênuo; o que o caracterizava era uma compreensão
extraordinária da criança e a convicção da
necessidade de lutar pelos seus direitos no mundo governado pelos adultos.
Ele não tinha confiança no mundo governado pelos adultos,
mas como cada verdadeiro reformador ele julgava que mesmo uma só
pequena vela acesa valia mais que lamentar-se da escuridão. Sua
intuição não excluía sua sensibilidade e ela
está edificada sobre uma observação constante, clínica,
poder-se-ia dizer, sobre um estudo minucioso dos fatos. Totalmente absorvido
por sua única idéia, não havia lugar nele para tudo
que os outros davam tanta importância – dinheiro, a celebridade,
um lar, uma família.
Com o objetivo de criar um ambiente adequado para suas crianças
e alunos, ele inaugurou, em abril de 1912, o orfanato Lar das Crianças,
na rua Krochmalna, em Varsóvia. Seu público-alvo eram as
crianças judias carentes. A casa acolheu 200 delas — e os
fundos para o empreendimento foram conseguidos com judeus mais proeminentes
do país.
O orfanato contava com salas confortáveis de estar, refeitórios,
banheiros, biblioteca e dormitórios. Havia, ainda, uma sala silenciosa
com quadros na parede e um aquário, destinada aos estudos e à
meditação. Nesse espaço, as próprias crianças
realizavam os principais trabalhos e administravam o orfanato por meio
de duas intituições básicas: o Parlamento e o Tribunal,
que organizavam a vida em comunidade e solucionavam os conflitos, exercitando
as crianças e também os educadores no espírito da
participação e responsabilidade.
"Sem uma infância serena e completa, toda vida posterior fica
mutilada."
A idéia expressa nessas palavras condiz com seu princípio
fundamental de que o educador deveria sempre levar a sério a opinião
do aluno, seu ponto de vista, porque não considerá-los oprimiria
a personalidade da criança e seu amor próprio.
"Não
desejo mal a ninguém. Fazer o mal? Nem sei como isto se
faz"
Janusz
Korczak
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Em 1942, os nazistas
ordenaram a transferência do orfanato para uma casa pequena e suja,
no gueto de Varsóvia. Em 5 de agosto do mesmo ano, durante a liquidação
do gueto de Varsóvia, os hitleristas ordenaram o agrupamento das
crianças do orfanato de Korczak e o envio das mesmas ao campo de
morte de Treblinka. O ‘Velho Doutor’ reuniu duzentos pupilos,
os fez colocar-se sabiamente em fileiras e, à sua frente, partiu
com eles para o ‘Umschlagplatz’, no cruzamento das ruas Stawki
e Dzika, onde todos foram colocados em vagões de carga e enviados
para os fornos crematórios.
Esta marcha nas ruas do gueto foi vista por algumas centenas de pessoas,
e a silhueta pequena de Korczak dirigindo-se para seu calvário,
inconsciente de seu heroísmo, fazendo aquilo que lhe parecia evidente,
excitava as imaginações. A novidade espalhou-se imediatamente,
repetida de boca em boca com a força de detalhes inventados: que
Korczak carregava nos braços os dois menores, coisa pouco provável,
porque ele mesmo estava doente e tinha dificuldades em andar; que o ‘Jundenrat’
tinha intervindo no derradeiro momento e tinha despachado em seguida um
mensageiro atrás da fila, portador de um salvo conduto somente
para Korczak, que foi por ele rejeitado com desprezo; que para apaziguar
as crianças ele tinha lhes dito que iam em excursão e que
eles, confiantes, o seguiam sem choro e sem protesto. Mas nenhum embelezamento
é necessário diante dessa verdade nua e crua; não
é preciso ajuntar qualquer coisa para torná-la mais eloqüente.
A antítese do espírito e das dificuldades é clara
e definitiva: um homem sábio por excelência, desinteressado
e bom, opondo-se aos covardes, bárbaros obtusos, que se mostravam
sob seu aspecto mais satânico.
Entre os milhões de mortes anônimas, a de Korczak tem um
grande significado. Nos campos e guetos, ele se tornou para muitos, uma
inspiração, pois o que mais ajudava a sobreviver era a convicção
obstinada e indestrutível que a dignidade humana poderia vencer
, embora tudo parecesse provar o contrário.
A imprensa clandestina dos campos mostra bem o quanto esta derradeira
caminhada sublime do "Velho Doutor" foi um reconforto e uma
dose de ânimo para seus contemporâneos. A partir daí
sua glória tem crescido e o mundo fez de Korczak um símbolo
moral.
Quando os hitleristas fecharam os judeus de Varsóvia dentro do
gueto, o orfanato perdeu sua casa à Rua Kruchmalna, do lado ‘ariano’,
e transportou-se para locais provisórios, no interior dos muros
do gueto. Naquele momento Korczak já percebia melhor que a maioria
das pessoas que a máquina impiedosa os mataria a todos. Mas ele
pensava em não renunciar ao seu direito de aliviar os sofrimentos.
Alquebrado e doente, cada dia ele reunia as forças que lhe restavam
e partia à procura de viveres e de medicamentos para as crianças.
Às vezes ele não trazia nada de suas buscas obstinadas,
outras vezes ele voltava somente com uma ínfima parte do necessário.
Apesar de fome incessante cada vez mais insuportável e às
doenças sempre mais freqüentes, ele cuidava para que seu orfanato
funcionasse normalmente, a fim de que seus alunos pudessem sentir-se bem.
Freqüentemente ele trazia dos locais mais distantes uma nova criança
encontrada na rua, no fim de suas forças, para quem a bondade do
Velho Doutor significava a salvação durante algum tempo
ainda.
Nestas condições rigorosas levadas ao extremo e que em tempo
normal é difícil de se imaginar, nós temos em Korczak,
no seu trabalho cotidiano, um exemplo do que pode fazer um genuíno
homem guiado pelo amor.
Ele morreu com suas crianças na câmara de gás, em
Treblinka. Mas apesar de mais de meio século ter se passado desde
sua morte, a história não deixa margens a dúvidas:
existe o homem, dentro dele um cérebro, junto com ele um coração
e acima de todos seus sentidos uma faísca Divina: uma neshamá.
Como o próprio Korczak acreditava: "mesmo uma só pequena
vela acesa vale mais que lamentar-se da escuridão", desejo
que hoje não seja apenas um dia de dor e lamento. Que possamos
sentir e chorar pelos que se foram, mas que ao mesmo tempo possamos acender
a chama de muito mais luzes, verdadeiras obras divinas chamadas Filhos,
Netos, Bisnetos daqueles que já não se encontram entre nós…
fisicamente. |