|
Desde pequena lembro-me
de ter desejado que pudesse acordar e tudo não ter passado de um
sonho. Lembro-me de desejar que nada disso tivesse acontecido, que não
era a minha família a ser diferente das outras. Lembro-me de perguntar
a D'us por que eu tinha recebido um irmão com necessidades especiais,
por que recebi esta provação adicional para enfrentar.
Sempre me aborreceu o fato de que nenhuma das minhas amigas tinha um irmão
especial, portanto eu simplesmente não contei a ninguém
que ele era especial. Não queria ver os olhares enviesados que
calavam fundo no meu coração, fazendo-me desejar que pelo
menos eles tentassem entender. Entender que não precisamos de piedade,
precisamos de amor.
Então um dia algo aconteceu. Algo que estará para sempre
na minha memória.
Eu tinha apenas oito anos na época mas aquilo me afetou enormemente.
Acordei pela manhã e meus pais e irmão não estavam
em casa. Minha irmã mais velha contou-me tinham ido para o hospital
durante a noite, meu irmão com grave hemorragia. Ele perdera tanto
sangue que seu estado era crítico. O que aconteceu depois daquilo
é uma lembrança nebulosa. Ele permaneceu no hospital durante
semanas. Não podia comer, o que resultou em grande perda de peso,
precisando de alimentação intravenosa. Fiquei muito abalada,
e toda noite, antes de dormir, pedia a D'us pela recuperação
do meu irmão, rezando para que ele não morresse. Foi uma
época terrível. Tenho uma vaga recordação
de minha mãe curvada sobre o corpo dele, imóvel, indefeso,
e cada vez que me lembro disso, sinto um frio correr-me espinha abaixo.
Então, após um tempo que me pareceu uma eternidade, ele
começou a melhorar. Após semanas de recuperação,
ele finalmente teve alta do hospital. Seremos sempre gratos a D'us por
trazê-lo de volta para casa, mas eu não conseguia esquecer.
A vida continuou, mas jamais esquecerei o sofrimento pelo qual minha família
passou. Alguns anos depois, a vida tornou-se menos desafiadora, mas ainda
difícil… Era duro entender que com toda a sua meiguice, ele
jamais seria como todas as outras pessoas.
Tive de tolerar muitos comentários desagradáveis; as pessoas
olhavam para ele como se tivessem medo, ou simplesmente desviavam os olhos
ou atravessavam a rua quando passávamos com ele. Muitas crianças
com necessidades especiais têm seu próprio mundinho, no qual
desaparecem ocasionalmente, e às vezes me pergunto o que ele está
pensando quando o vejo com o olhar perdido no nada.
Você poderia perguntar por que eu poderia sequer pensar em considerar
uma criança dessas como uma "provação",
mas somente aqueles em minha situação podem entender por
que eu me sentia daquela forma. Porém um dia aquilo mudou. O dia
em que parei de ouvir a voz na minha cabeça, a voz que exigia saber
por que eu tinha de ter aquele fardo, a voz que exigia justiça.
Justiça para quem, você poderia perguntar? Para ele? Para
minha família? Comecei a fazer minha mente voltar àqueles
dias sombrios. Lembrei-me das incontáveis noites passadas no hospital,
lembrei-me das noites insones preocupando-me com ele, e fiquei furiosa.
Como D'us podia ter deixado aquilo acontecer? Mas então ocorreu-me
outro pensamento. Percebi que foi D'us que o salvara, também. Lembrei-me
quem tinha me dado essa "injustiça" – fora Ele.
Ele, que é misericordioso, que nos ama, que faz tudo para o nosso
bem. Mas como isso poderia ser bom? Como poderia o enorme sofrimento e
desgosto serem para o bem?
Certa vez eu ouvi algo que realmente ajudou-me a entender como este "fardo"
e todos os fardos são na essência bons, como não podemos
viver uma vida plena sem eles.
Imagine que você tem um quebra-cabeças de um sol se pondo
por trás de um oceano escuro. Algumas peças são totalmente
negras, outras coloridas e brilhantes. Mas quando você as colocas
juntas e obtém o quadro inteiro, percebe que sem aquelas peças
escuras, negras, o quadro não teria ficado completo. Estas peças
escuras são aquilo que vemos como os fardos da vida. Como pode
haver o bem em algo que não aparenta possuir nada de bom?
Na essência, tudo que acontece para nós na vida é
bom. Não vemos o quadro inteiro, mas D'us vê. Demorei muito
tempo para finalmente entender isso; passei por muito sofrimento e dor
para apreciar plenamente aquilo que tenho.
Sei que lá fora sempre haverá pessoas que tornarão
isso mais difícil para mim, pessoas que não sabem o que
é o verdadeiro amor, e pessoas que são muito insensíveis
para entender. Não é fácil escutar pessoas que julgam
sem pensar, não é fácil pensar que tudo que acontece
é para o bem, não é fácil ficar quieto quando
você vê alguém zombando dessas crianças especiais,
que não escolheram o seu destino. Mas quem disse que era fácil?
Não é, e jamais será.
Já prendi muitas lições, mas esta sem dúvida
foi a mais forte. Então agora, quando dou a ele um beijo de boa
noite e o escuto cantar a prece Shemá Yisrael com a voz mais meiga
que já ouvi, lembro-me que não importa o que possa vir daqui
em diante, serei sempre grata pelo presente que eu não sabia possuir.
Nota:
Chaya mora em Londres e estuda na Escola Lubavitch.
Tem 13 anos e sempre apreciou poesia e redação.
|