Irena Sendler: “A Mulher que Resgatou as Crianças de Varsóvia"
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Elzbieta Ficowska tinha apenas cinco meses de idade quando foi colocada numa caixa de carpinteiro e contrabandeada para fora do Gueto de Varsóvia. Foi entregue a uma família polonesa no lado “Ariano” do muro, e a jovem que a tirara do Gueto acrescentou muito pouca informação ao nome de Elzbieta, os nomes dos pais e novos endereços num pedaço de papel no qual estavam escritos os detalhes sobre outras crianças que ela tinha contrabandeado. O jarro com o papel foi enterrado mais tarde sob uma macieira no quintal da casa de uma amiga.

Como uma pessoa pôde salvar 2.500 crianças? A jovem Irena Sendler tinha na época vinte e nove anos – uma assistente social polonesa, católica, que salvou dos nazistas 2.500 crianças. Ao contrário dos nomes no jarro, que foram desenterrados logo após a derrota dos nazistas, a história de Irena e de seus colegas permaneceu enterrada durante quase sessenta anos. Isto começou a mudar em 1999, quando quatro estudantes da Uniontown High School em Kansas, EUA, começaram a pesquisar possíveis projetos para a competição do Dia Nacional da História. As alunas Megan Stewart, Elizabeth Cambers, Jessica Shelton e Sabrina Coons ficaram intrigadas com uma frase que o professor, Norman Conrad, lhes mostrou num artigo dos jornais US News e World Report, que declarava simplesmente: “Irena Sendler salvou 2.500 crianças do Gueto de Varsóvia em 1942-1943.”

Tanto o professor quanto as alunas estavam convencidos de que aquilo deveria ser um engano – como poderia uma pessoa salvar 2.500 crianças do Gueto, murado e pesadamente vigiado? Presumiram que o artigo pretendia informar 250, e não 2.500.

“Quando você olha para ela,” disse Conrad a um entrevistador, “não consegue imaginar como ela pôde passar pelos guardas nazistas carregando uma criança num saco de aniagem. Como ela fez isso?”

Irena Sendler (Sendlerowa) tinha apenas 1,50 m de altura, olhos negros vivos e inteligentes num rosto redondo, sorridente, Era linda, e nas entrevistas gravadas pode-se ver uma pessoa calorosa, porém calma e determinada. Apesar disso, sua aparência lembrava mais a de uma boneca que a de uma corajosa líder da resistência.

Como ela teve coragem de contrabandear crianças judias vivas, respirando (e às vezes chorando), bem nas barbas dos cruéis guardas armados?

Esta foi uma questão que logo surgiu na pesquisa das estudantes, quando elas começaram a perceber que não tinha havido engano no artigo original – Irena de fato tinha salvado 2.500 crianças. Porém, as estudantes jamais esperavam poder apresentar esta pergunta à própria Irena. Presumiram que Irena, nascida em 1910 e que tinha sofrido torturas nas mãos da Gestapo durante a Guerra, deveria ter falecido. Desejaram então saber onde Irena estava enterrada. Ficaram entusiasmadas ao descobrir que ainda estava viva!

As jovens, que àquela altura tinham escrito uma peça com duração de dez minutos (“Vida num Jarro”) mostrando os esforços de Irena, decidiram escrever a ela, que estava morando com parentes num pequeno apartamento em Varsóvia. Elas mencionaram a peça, que tinha vencido o concurso nacional de história, e seria encenada na competição do National History Day. Elas pediram mais detalhes sobre a vida de Irena, e perguntaram: onde ela encontrou toda aquela coragem?

“Meus pais me ensinaram,” Irena escreveu de volta que se um homem está se afogando sua religião ou nacionalidade é irrelevante. Deve-se ajudá-lo.”

Irena nasceu em Varsóvia em 15 de fevereiro de 1910, mas passou a maior parte da juventude em Otwoc – uma cidade com uma vibrante comunidade judaica. Ao final da Primeira Guerra Mundial irrompeu uma epidemia de tifo e o pai de Irena, Dr. Stanislaw Krzyzanowski, devotou-se a cuidar dos judeus empobrecidos que sofriam da doença. Ele contraiu o tifo de seus pacientes e faleceu. Irena tinha apenas sete anos. Ela e a mãe terminaram por voltar a Varsóvia, onde Irena completou a escola e entrou na Universidade de Varsóvia.

Irena fingiu-se de enfermeira para entrar no Gueto
Naqueles dias, havia leis severas ditando a separação de estudantes judeus e não-judeus determinando que não podiam sentar juntos dentro ou fora das aulas. Irena recusou-se a obedecer a essas regras, e foi suspensa durante um ano. Ela conseguiu completar os estudos e em setembro de 1939, quando os nazistas invadiram a Polônia, era uma assistente social empregada pelo Departamento de Bem-Estar Social de Varsóvia. Aqueles que a conheciam sabiam que ajudar fazia parte da natureza de Irena. Embora tenha perdido o pai na infância, sua dedicação aos outros – reforçada pelo exemplo e palavras da mãe – causaram nela uma profunda impressão. Mesmo jovem, já tinha uma história de sacrifício em prol dos outros – e por desafiar o crescente anti-semitismo e por defender os judeus.

Assim que começou a ocupação nazista, Irena começou a falsificar documentos para amigos judeus. Ela também oferecia comida e abrigo à população judaica, cada vez mais perseguida. Então, em 1940, ela testemunhou a prisão de cerca de 500.000 judeus no Gueto de Varsóvia, uma área do tamanho do Central Park em Nova York.

Continuou fazendo documentos falsos para aqueles que escapavam ou que tinham conseguido se esconder e evitar o Gueto. Entre 1939 e 1942 Irena, com a ajuda de alguns poucos amigos de confiança, falsificou mais de 3.000 documentos para salvar famílias judias.

No outono de 1942 duas mulheres polonesas, Zofia KossakSzczucka e Wanda Krahelska-Filipowicz, fundaram Zegota – o Conselho para Ajuda aos Judeus na Polônia Ocupada, um ramo do movimento subterrâneo polonês.

Os membros da Zegota pediram a Irena que chefiasse o Departamento Infantil. Ela prontamente concordou. “Não perdi tempo refletindo sobre o perigo”, explicou ela mais tarde, “sabendo que eu e meu coração tínhamos de estar ali; tínhamos de ser uma parte do resgate.”

Com a ajuda de outras assistentes sociais, cerca de 25 na ocasião, Irena começou a resgatar as crianças do Gueto. Àquela altura, ela era administradora do Departamento de Bem-Estar. Aproveitando seu cargo oficial e a paranoia alemã a respeito dos germes, ela ia ao Gueto sob o pretexto de estancar o desenvolvimento de doenças por trás dos muros do Gueto. Oficialmente, ela estava examinando judeus em busca de sinais de doenças contagiosas. Na verdade, estava procurando crianças para salvar.

A princípio, Irena e suas ajudantes pegavam os órfãos que viviam nas ruas do Gueto. Mais tarde, ela procurava os pais e lhes pedia que a deixassem tirar as crianças dali.

Irena sempre deixava claro para as famílias, conventos e orfanatos que recebiam as crianças que elas deveriam ser devolvidas às famílias depois da Guerra. Mantinha listas detalhadas por este motivo – para que as famílias pudessem ser novamente reunidas.

Havia duas rotas comuns usadas para contrabandear as crianças, através de dois edifícios situados no limite entre o Gueto e o restante de Varsóvia. Um edifício era um antigo tribunal. O outro, uma igreja. Crianças com idade suficiente para aprender algumas preces católicas básicas podiam se esgueirar até a igreja, entrando pelo lado judaico. Uma vez lá dentro, elas removiam as estrelas amarelas e assumiam nova identidade como crianças polonesas católicas. Saíam pela porta da frente da igreja, que era vigiada pelos soldados nazistas que as interrogavam quando saíam. Os nazistas usavam diversos truques para tentar apanhar judeus que escapassem daquela forma. Irena e suas ajudantes treinavam bem as crianças – as moças nunca foram apanhadas saindo da igreja com as crianças.

As crianças menores não podiam ser resgatadas saindo pelos edifícios. Em vez disso, Irena as colocava em sacos de estopa ou caixas de ferramentas e as levava para fora do Gueto, ou as escondia debaixo de batatas numa carroça. Certa vez, ela levou uma criança escondida num caixão.

Em outras ocasiões, conseguiu tirar do Gueto crianças gravemente enfermas por meios legais, numa ambulância. Outras vezes, a ambulância foi usada para esconder crianças sadias. Irena tinha a ajuda do motorista da ambulância, e um cão. Quando as crianças começavam a reclamar e ela temia que fossem detectadas, batia na pata do cão, e este começava a latir. Isso desencadeava uma reação em cadeia nos cães dos nazistas, e o caos se instalava. Nessas situações, os nazistas a deixavam passar.

Quando chegava ao outro lado, ela levava as crianças para casas de amigos, a família Piotrowska, onde os pequenos trocavam de roupa e tinham uma chance de comer e descansar após a perigosa jornada. Era também na casa dos Piotrowska que Irena enterrava secretamente as listas de nomes, sob uma macieira no quintal. Os Piotrowska moravam em frente a uma barraca alemã. Muitas vezes, as crianças ficavam na casa de outra amiga, Maria Kukulska, até que pudessem ser levadas em segurança para outra casa, na qual ficariam até o final da guerra.

As pessoas que ajudavam Irena, vinte e quatro mulheres e um homem, assumiam enormes riscos. Havia dez que entravam no Gueto com ela, mas era Irena que entrava no Gueto dia após dia durante dezoito meses – e saía com uma criança. Sua vida estava em constante perigo. Por fim, os nazistas começaram a suspeitar dela. Irena mudou de endereço diversas vezes, mas continuou sua obra. Sua lista feita com tanto cuidado quase a traiu. “Os nomes das crianças salvas eu anotava em papel higiênico. Havia duas listas idênticas e duas garrafas,” lembra Irena. “Uma vez quando eu tinha a lista em casa, na mesma noite a Gestapo chegou. Felizmente uma das moças que me ajudavam demonstrou presença de espírito e escondeu a lista na roupa de baixo. Depois disso, por razões de segurança nunca mais levei a lista para casa.”

Tragicamente, Irena foi presa pelos alemães em 20 de outubro de 1943 – cinco meses depois da destruição do Gueto de Varsóvia. Seu endereço tinha sido revelado por um informante. Irena foi torturada e espancada durante vários dias; um braço e uma perna foram fraturados. Ela recusou-se a revelar o paradeiro das crianças ou os nomes de qualquer pessoa da Resistência. Foi condenada ao fuzilamento, mas membros do Zegota descobriram e subornaram um guarda para deixá-la na floresta em vez de matá-la, e ali eles a resgataram. Seu nome foi impresso em listas públicas daqueles que tinham sido fuzilados pela Gestapo, e ela passou o restante da guerra escondida.

Depois da guerra, ela trabalhou no sentido de rastrear as crianças e reuni-las com parentes, mas quase todas então já estavam órfãs. Foram feitas cópias das listas e entregues aos funcionários da Zegota que ajudaram Irena na busca, mas poucos parentes foram localizados. Somente 1% dos judeus do Gueto de Varsóvia sobreviveu à guerra.

Os comunistas na Polônia consideraram Irena subversiva pelo seu trabalho com Zegota, e ela foi depreciada e largamente esquecida, exceto pelos próprios sobreviventes. As crianças mantiveram contato com ela durante anos. Muitas, incluindo Elzbieta, a consideravam uma figura materna e a visitavam regularmente. Era para Irena que eles se voltavam quando precisavam de conselho ou simplesmente de amor. Foram decisivos no sentido de tê-la reconhecida pelo Yad Vashem, duas vezes. Irena recebeu a distinção Gentio Justo em 1965, e uma árvore foi plantada em sua honra em 1983. Irena viajou a Israel para o plantio da árvore, onde se reuniu com algumas das crianças que tinha salvo, e apreciou uma visita a uma escola primária em Tel Aviv. Chegou até a aprender um pouco de hebraico para a viagem, mas ficou tão emocionada que precisou de um tradutor. Irena também recebeu apoio da Fundação Judaica para os Justos em Nova York.

Irena em 2007
Irena teria permanecido praticamente desconhecida para a maior parte do mundo não fosse pelas estudantes do Kansas. Após vencerem a competição da História do Estado no ano 2.000, elas começaram a apresentar a peça em comunidades e escolas em todo o estado, e a imprensa começou a prestar atenção na história dessa “Schindler de saias”. Uniontown proclamou um Dia de Irena Sendler, e outras cidades seguiram o exemplo. Foi por volta dessa época que aconteceram duas coisas muito importantes – tanto para elas quanto para Irena. As estudantes descobriram que não apenas Irena estava viva e como escrever para ela, como também encontraram uma aluna na faculdade que era fluente em polonês, e concordou em traduzir as cartas de Irena para elas. Então em janeiro de 2001, apresentaram a peça em Kansas City, onde um empresário local sugeriu que deveriam conhecer Irena. As estudantes disseram que estavam planejando fazer isso, e economizando dinheiro para esse fim. Ele perguntou: “Que idade ela tem agora?” Quando responderam que era quase 90 anos, ele usou seus contatos para levantar o dinheiro – em apenas um dia – para que as alunas e seu professor, Norman Conrad, fossem à Polônia encontrar Irena. A esposa de Nornan e diversos pais de alunas tomaram parte na viagem.

Você mudou o mundo na Polônia
As estudantes visitaram Irena, apresentaram a peça e se encontraram com funcionários do governo. A imprensa nacional e internacional cobriu a visita – rompendo quase sessenta anos de silêncio. Aquela primeira visita ocorreu em maio de 2001, e desde então a educação sobre o Holocausto mudou drasticamente na Polônia. Surgiram outros resgatadores poloneses com suas histórias. As alunas fizeram cinco viagens à Polônia, encontrando-se com Irena todas as vezes e se apresetando para escolas e organizações comunitárias.

Graças em grande parte aos seus esforços em divulgar a obra de Irena, esta recebeu numerosos prêmios – incluindo a Ordem da Águia Branca, a mais alta honraria polonesa. Em 2003 ela recebeu a comenda Jan Karski por Valor e Coragem. Foi nomeada pelas estudantes e Norman Conrad, e por Stefanie Seltzer, Presidente da Federação Mundial de Sobreviventes Judeus do Holocausto. Em 2007, foi nomeada para o Prêmio Nobel. Em abril deste ano, a Fundação Audrey Hepburn concedeu seu Prêmio Humanitário postumamente a Irena Sendler.

Porém não foi por ela mesma que Irena ficou tão contente com o reconhecimento. Em vez disso, foi pelo fato de a obra de Zegota ter sido finalmente reconhecida, especialmente pela maneira que a percepção polonesa sobre a própria história mudou depois de saber sobre Zegota. Dando um herói aos poloneses, as estudantes tornaram possível discutir o bem e o mal daqueles anos. A história de Irena, a peça, e algumas das 4.000 páginas de material de pesquisa coletado pelas alunas sobre Irena estão sendo usadas em escolas e faculdades na Polônia e nos Estados Unidos. E durante os últimos três anos, o Prêmio Irena Award tem encorajado e premiado projetos que visam à tolerância no ensino. A cada ano um professor de destaque é escolhido nos Estados Unidos e na Polônia.

Algum tempo antes, Irena tinha escrito para elas: “Minha emoção está sendo diminuída pelo fato de minhas colegas já terem todas falecido, e estas homenagens recaem apenas sobre mim. Não posso encontrar palavras para agradecer a vocês, pelo meu país e o mundo saberem sobre a coragem dos resgatadores… Antes do dia em que vocês escreveram “Vida num Jarro”, o mundo não conhecia nossa história; o desempenho e a obra de vocês está continuando o esforço que comecei há mais de cinquenta anos.”

As últimas palavras de Irena às estudantes, em 3 de maio de 2008, foram: “Vocês mudaram a Polônia, mudaram os Estados Unidos, mudaram o mundo. Eu as amo muito, muito, muito.”

As palavras de seu pai a acompanharam ao longo de sua vida: “Ajude sempre a quem estiver se afogando, sem levar em conta a sua religião ou nacionalidade. Ajudar cada dia alguém tem de ser uma necessidade que saia do coração.”

As crianças que salvou só a conheciam pelo apelido: Jolanta. Quando a sua história saiu num jornal anos mais tarde com sua foto antiga, diversas pessoas entraram em contato: “Lembro de seu rosto... “ “sou um daqueles meninos”, “lhe devo a minha vida, meu futuro, e gostaria de vê-la!”

Irena viveu durante anos numa cadeira de rodas pelas lesões e torturas impostas pela Gestapo. Nunca se considerou uma heroína e jamais reivindicou crédito por suas ações: “Poderia ter feito mais” e completa: “Este lamento me acompanhará até o dia de minha morte!”

Irena faleceu em 12 de maio de 2008 e foi enterrada no Cemitério Powanski de Varsóvia – um local reservado para a elite entre os artistas, escritores e heróis de guerra. Os visitantes do site ”Life in a Jar” relatam que ali entre as atrizes, premiados Nobel e outros heróis, o túmulo com maior número de velas é o de Irena.

 

   
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