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O ano era 1939. A
Segunda Guerra tinha começado há alguns meses. Os judeus
na União Soviética, como os judeus do mundo inteiro, ainda
não conheciam os horríveis eventos que estavam ocorrendo
do outro lado da fronteira, na Polônia, onde o massacre por atacado
e o genocídio de seus irmãos pelos assassinos nazistas estavam
sendo perpetrados.
Pinchas Sudak, que estava morando na Rússia, não tinha ideia
de que dentro de alguns anos comunidades inteiras seriam eliminadas. Porém,
ele suspeitava que algo estava errado. Havia algo sinistro emergindo da
Polônia, à medida que mais e mais judeus poloneses começaram
a fugir daquele país, preferindo até a temida União
Soviética do que permanecer no seu próprio país.
Homens, mulheres e crianças estavam procurando refúgio,
desejando simplesmente o dom da vida. Líderes comunitários
respeitados, ricos filantropos e pessoas comuns de todas as esferas da
vida tinham se tornado andarilhos da noite para o dia, procurando asilo
e um teto sobre a cabeça, e algum alimento para o estômago
faminto.
Esses refugiados judeus poloneses chegavam à estação
de trens na Rússia sem nenhum dos seus pertences terrenos, exceto
os pequenos fardos que tinham nos braços. Chegavam a essa terra
hostil, onde a linguagem e os costumes lhes eram estranhos, sem um amigo
no mundo e sem conhecer pessoa alguma para quem pudessem se voltar.
O governo soviético reagiu a esses hóspedes com suspeita
e crueldade típicas. Sob a falsa alegação de que
poderiam ser “inimigos do Estado”, o governo proibiu qualquer
contato com esses estrangeiros. Os refugiados dormiam nas estações
abertas, expostos a todo tipo de perigo, esperando a deportação
para a gelada Sibéria. Qualquer cidadão russo que fosse
apanhado se comunicando com esses “espiões estrangeiros”
era ameaçado e penalizado com a prisão.
Nesse clima de tamanho desespero, Pinchas e Batya Sudak abriram sua casa.
Para eles, era impensável abandonar um irmão numa hora de
tamanha necessidade, e eles ativa e resolutamente procuravam esses refugiados,
apesar do grande perigo pessoal.
Diversas vezes por semana, Pinchas viajava até a estação
de trens com sua filha mais velha, Batsheva. Ele escrevia um bilhete em
yidish, com as palavras: “Se você quer uma refeição
quente, venha a…” com o endereço e as direções
para chegar até sua casa.
“Batsheva, aproxime-se daquelas crianças polonesas como se
estivesse olhando sua estranha maneira de vestir” – Pinchas
instruía sua filha.
Os refugiados poloneses usavam roupas diferentes, e enfiavam as calças
dentro das meias, um costume considerado bizarro na Rússia. Não
levantaria suspeitas se uma criança se aproximasse dos estrangeiros
por curiosidade. “Entregue este bilhete a eles e teremos cumprido
a mitsvá de ajudar nossos irmãos judeus.”
Embora tivesse apenas sete anos de idade, Batsheva entendia as implicações
de seus atos. Ousada e corajosamente, ela passava o bilhete aos jovens,
agindo como uma criança curiosa que, travessa, tivesse se afastado
do pai.
Os judeus poloneses ficavam muito gratos por essa chance de viver mais
um pouco. Um a um, se afastavam e iam até a casa dos Sudak, onde
eram recebidos calorosamente com uma refeição nutritiva
e um local para descansar.
Em algumas noites de sexta-feira, chegavam tantos refugiados à
casa dos Sudak que alguns tinham de dormir no chão, por falta de
espaço. Ocasionalmente, se a polícia fizesse uma batida
de rotina, Pinchas avisava aos hóspedes para saírem rapidamente
pela porta dos fundos ou pela janela, enquanto ele abria a porta da frente,
aparentando inocência.
Pinchas compreendia o risco de vida e segurança de sua família.
Porém, não havia dúvida na sua mente e na da esposa,
Batya, de que aquele era o seu dever.
Certa vez, no grupo de judeus poloneses que se dirigiram à casa
dos Sudak, havia um indivíduo que se destacava dos outros. Ele
vestia um casaco de peles bonito e dispendioso e, ao contrário
de muitos dos outros refugiados, tinha uma aura de confiança e
uma pose que o distinguiam.
Pinchas ficou contente em recebê-lo para a refeição
daquela noite de sexta-feira, e passaram um tempo conversando. Percebeu,
no entanto, que sua esposa Batya parecia pouco à vontade com ele.
Ela colocava apressadamente a louça cara e a prataria que geralmente
adornavam a mesa de Shabat dos Sudak.
Quando estava chegando o final da refeição, o indivíduo
pediu para passar a noite na casa dos Sudak. Vendo o constrangimento da
esposa, Pinchas esgueirou-se até a cozinha para conversar com ela
em particular. Ele estava certo de que, como sempre, Batya ficaria feliz
em abrir sua casa a esse indivíduo respeitável.
“De forma alguma” – foi a resposta brusca de Batya à
pergunta do marido. “Ele não! Ele não pode dormir
em nossa casa.”
Pinchas ficou perplexo com aquela reação, tão contrária
à costumeira generosidade do espírito da mulher. A princípio
tentou dissuadi-la, mas vendo que ela estava firme, explicou em tom de
desculpa ao hóspede que a esposa não estava se sentindo
bem, e não seria possível oferecer-lhe abrigo durante a
noite.
Ao final da refeição, Pinchas acompanhou o convidado até
a porta. Ajudou-o com o casaco e levou-o até a rua.
Quando Pinchas voltou, seu rosto estava pálido. “Como você
sabia?” ele perguntou incrédulo a Batya.
“O que aconteceu?” Batya respondeu.
“Quando levantei o casaco do hóspede, senti algo duro lá
dentro. Pude distinguir o formato de três facas grandes. O homem
era um impostor. Um assaltante! Eu fingi que não tinha notado as
armas e respeitosamente levei-o até a rua. Se o tivéssemos
deixado passar a noite aqui, ele certamente nos teria matado e roubado
nossa casa!” As palavras saíam da boca de Pinchas e ele fez
uma pausa, pensando sobre as implicações desastrosas. “Mas
como você podia saber?”
“Eu apenas senti alguma coisa nele de que não gostei”
– respondeu Batya simplesmente.
O mérito de hachnasat orchim (hospitalidade) dos Sudak os protegeu
do mal. Esse susto, porém, não impediu o casal de continuarem
a abrigar seus irmãos e a ajudá-los mesmo depois que deixavam
a sua casa.
Pinchas fez investigações sobre o destino de vários
judeus poloneses a quem tinha dado abrigo, e soube que tinham sido mandados
para a Sibéria. Ele enviava regularmente pacotes de comida às
famílias de cujos nomes lembrava. Ele sabia como esses pacotes
seriam preciosos para aquelas pessoas. Para preservar sua segurança
e a de sua família, ele não colocava o nome do remetente
nos pacotes, nem endereço de retorno.
Certa vez, Pinchas recebeu uma carta de volta de um judeu polonês
que descobrira ser ele o benfeitor. Agradeceu a Pinchas pela sua bondade,
explicando: “Nós dividimos seu generoso presente de comida
com outro membro de nosso grupo que estava lentamente morrendo de fome.
Esse indivíduo nos lembrou que em duas semanas será 19 de
Kislêv.”
Essas palavras veladas eram uma referência ao feriado chassídico
de “Yud Tet Kislêv”, um dia que comemora a primeira
libertação do Rebe de Chabad da prisão soviética.
Embora Pinchas jamais descobrisse a sua identidade, ficou contente por
saber que tinha salvo a vida de um chassid de Chabad. Algum indivíduo
preso devido à sua obra “anticomunista” de divulgar
Yiddishkeit e Chassidismo, ensinando-o para crianças, fora salvo
pelos seus esforços.
Em outra ocasião, os Sudaks abrigaram um homem que, apesar de seu
comportamento discreto, tinha um porte real, feições refinadas
e era bem versado em todas as áreas da Torá. Imediatamente,
Pinchas sentiu que essa era uma pessoa especial e convidou-o a permanecer
em sua casa pelo tempo que precisasse. O homem, Hirsh-Melech, no entanto
hesitou, vendo que não tinha dinheiro para pagar pela generosidade.
Pinchas convenceu-o a ficar, sugerindo que Hirsh-Melech desse aulas ao
seu filho, Nachman, em troca da hospitalidade. Aliviado com essa oferta,
Hirsh-melech concordou e permaneceu durante quase dois anos na casa dos
Sudak. Muitos anos mais tarde, depois que a família Sudak tinha
escapado da Rússia e se estabelecido em Israel, uma grande caravana
de chassidim dirigiu-se à sua casa. O Rebe desse grupo, vestido
com roupas reais, bateu à porta da casa dos Sudak e cumprimentou
calorosamente a família.
Ele explicou a Pinchas que ele tinha vindo em pessoa visitá-los
e agradecer pela bondade que tinham demonstrado a ele quando chegara,
um refugiado sem tostão, à União Soviética
no ano de 1939. Pinchas cumprimentou-o e, voltando-se para Batsheva, perguntou
se ela reconhecia o homem.
Como ela poderia não reconhecer? Era ninguém menos que o
discreto “Hirsh-Melech”.
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