Enganar a si mesmo  
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Geralmente consideramos a fraude como algo repreensível. Afinal, na maioria das vezes temos de aceitar a palavra de alguém, pelo menos a princípio. Sim, para alguns assuntos investigamos antes de aceitar aquilo que é dito. Procuramos conferir as credenciais de um médico, por exemplo, ou comparar apólices de seguro. Mas mesmo assim, a certa altura confiamos naquilo que estão nos dizendo. Quantas vezes pedimos uma segunda opinião? Somente se nosso médico – que nos conhece por todos esses anos – diagnostica uma doença grave ou recomenda algum tratamento radical. Caso contrário, obviamente confiamos nele. E o advogado que está cuidando do meu caso – ele defende cegamente meus interesses.

Na verdade, quase sempre sabemos quando alguém está simulando. Temos uma espécie de instinto que nos avisa quando algo está errado. Temos suspeitas, apreensões, dúvidas, incertezas. O negócio é muito bom para ser verdade. Ou então deixamos de receber alguma informação. Porém, deixamos de lado nossas suspeitas. Afastamos nossas reservas: "Um jovem tão simpático não pode nos levar pelo caminho errado." "Ela parece tão inteligente, deve saber o que está falando." "Parece uma pechincha. Se não fosse legal, eles não teriam permissão de dizer isso." Tente, você gostará.

Mas então quando o vendedor, o conselheiro, o amigo, traem sua confiança, nos levantamos contra a fraude. E o argumento muitas vezes se resume a isso: ele sabia e eu não. Ele levou vantagem sobre mim, porque tinha informação privilegiada.

E mesmo assim, na maior parte do tempo – reconhecemos que um negócio bom demais para ser verdade é exatamente isso. Temos um pressentimento de que estamos sendo enganados. Deveríamos ter desconfiado.

Nós nos deixamos enganar, trapacear, fraudar, embora tivéssemos uma certa desconfiança, porque enganamos a nós mesmos. Esta não é uma verdade agradável. Por maior que seja a culpa do trapaceiro, nós abrimos a porta e o convidamos a entrar. E da forma mais irônica, através da nossa mente – nossa lógica e nossa razão – há prova de nosso desastre. Nosso orgulho e alegria – nosso intelecto – nos trai.

Nós nos enganamos sobre nossos limites e capacidades. No auge do orgulho, no momento da maior satisfação, de nossa mais notável conquista – tropeçamos em nós mesmos. Nosso ego – nosso eu – nossa alma animalesca – nosso yetser hará – nos traiu.


Todos temos uma má inclinação, mas ao contrário de tantas coisas sobre as quais nos enganamos, essa nós podemos controlar.

O yetser hará – a má inclinação – é chamado de "tolo sábio". Sábio, porque conhece seu ofício. Conhece bem nossas fraquezas, como nos desviar, como nos confundir e enganar. Tolo, porque se concentra em nos desviar da Torá e mitsvot, porque pensa que a alma judaica, nossa própria essência, pode ser afastada de sua Fonte. Porém conhecemos também a satisfação de fraudar o fraudador, de virar a mesa. Todos temos uma má inclinação, e portanto possuímos as mesmas ferramentas do astuto que tenta nos enganar. Mas ao contrário de tantas coisas sobre as quais nos enganamos, essas nós podemos controlar, redirecionar. Mas como?

Geralmente ao começarmos a trilhar nosso caminho em Torá através do cumprimento de uma única mitsvá nos encontramos meio perdidos, medrosos, atordoados de dar o primeiro passo. Então vem algo de dentro, nos indagando o que ganharemos com isto, o quanto iremos mudar, "pense melhor", entre outras dúvidas que utilizam a mesma técnica dos menos escrupulosos. É nosso yetsêr hará, (má inclinação) querendo ditar as regras.

No entanto, podemos usar as mesmas técnicas para acrescentar ou começar a cumprir uma mitsvá.: "Não vou ser casher, mas simplesmente não comerei um hambúrguer hoje"; "Não pretendo me tornar religioso, simplesmente vou colocar tefilin hoje"; "Não pretendo cumprir todas as leis do Shabat, mas acenderei velas ou ouvirei a bênção sobre o vinho na noite de sexta-feira"; "Não sou nenhum tsadic, justo, mas hoje darei dinheiro para tsedacá", é possível avançar.

Não estaremos mudando, simplesmente cumprindo determinada mitsvá. E a próxima mitsvá. E a seguinte. Desta forma, "burlando" o yetsêr hará gradualmente, transformamos seu poder negativo na arte de nos enganar, em algo bom e positivo… à nosso favor. Certamente os resultados ao final serão verdadeiramente compensadores.

 

 

 
     
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