O encontro

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  Por Tzvi Freeman
 

Seria ótimo pensar que eu poderia ter um relacionamento pessoal com D’us, que eu poderia sentir que Ele está satisfeito comigo, ou que de alguma maneira sou importante para Ele. Porém, sou uma pessoa racional. Posso relacionar-me com um D’us que inventou a física e o tempo e espaço contínuos; que fez surgir o eletromagnetismo, a gravidade e as forças nucleares; que colocou os elétrons em suas órbitas, e os fótons em suas trilhas – tudo isso é completamente impressionante. Mas como se pode falar sobre um relacionamento pessoal com um D’us assim? Como se pode fazer uma conexão entre a experiência humana, visceral e emocional, e o impressionante e inescrutável Criador do Tempo e do Espaço?

Sabe o que é isso? Você conseguiu fazer algo personificado com D’us! Assim como as crianças falam sobre animais e objetos inanimados como se estes fossem outras crianças, com personalidades reais. Como a Microsoft, que deseja que você dê um nome ao sistema de seu computador, e fale sobre ele como se fosse um ser humano. Só que não é. É uma função de um computador idiota. Bem, você fez o mesmo com D’us – mas ao contrário. O computador está muito abaixo da experiência humana consciente. D’us está muito além.

Então você sabe de onde vem a Física, e chama isso de D’us. Mas de onde vêm as emoções, idéias e experiência humanas?

Os antigos faziam uma declaração retórica: "Aquele que fez o ouvido não ouve? Aquele que fez o olho não vê? Ele ensina conhecimento ao homem e não conhece?" Assim, também, podemos perguntar: "Aquele que soprou amor e compaixão no coração humano – Ele também não conhece estas coisas?"

Sim, de uma maneira muito além da nossa – uma vez que estamos falando da fonte básica destas emoções. "Como os céus estão muito acima da terra" – diz o profeta – "assim Meus caminhos estão além dos teus." E sim, Ele Próprio é, em essência, mais transcendente até mesmo que aquelas forças emotivas. Mas, apesar disso, Ele escolheu ser expresso daqueles maneiras, e relacionar-Se conosco, seres insignificantes, daquela maneira. E é assim que nos relacionamos com Ele.

Como expresso na "Dose Diária": "Então D’us ri? Será Ele tão vulnerável que chora por suas falhas e Se alegra com o sucesso? Ele ama com a paixão de um frágil ser humano? O D’us que criou os céus e a terra a partir do nada arrepende-Se como qualquer criatura presa no túnel do tempo?"

Mas D’us desejou o homem e todos seus conflitos – como vemos pelo fato de estarmos aqui. E D’us olhou para baixo de Seu reino elevado além do amor e do riso e da paixão e do remorso, para esta idéia de um ser humano. E Ele disse: "Não é bom que o homem fique sozinho."
Eis por que Ele fez com o homem um ponto de encontro, no tecido da alma do homem e nas entranhas da infinita luz de D’us. Para que no amor e no riso, na compaixão e reverência e beleza, o homem e D’us pudessem se encontrar, e nenhum deles ficaria sozinho."

Mas retrocedamos um pouco. Temos aqui um problema maior. Por que pensamos em D’us da maneira que fazemos? Porque todos nós somos vulneráveis àquela cilada típica da percepção humana: a Cilada Modelo.

A cilada modelo é quando você organiza todas as informações da maneira que parece mais simples para você. Atualmente, nossa cilada modelo é com muita freqüência inteiramente materialista. Não é surpresa que não deixe espaço para um D’us pessoal.

A cilada do raciocínio humano

Falemos sobre as típicas ciladas modelo. Você provavelmente conhece aqueles diagramas de ilusões de óptica, onde se enxerga círculos ou diamantes onde na verdade não existe nenhum – é apenas a maneira pela qual nossa mente organiza dados visuais que recebe para torná-los mais simples. Bem, nossa mente não limita estes truques à visão. Isso pode afetar qualquer área de nosso domínio consciente.

Crianças pequenas gostam de organizar objetos menores e maiores em famílias, com um Papai, uma Mamãe, irmã maior, irmãozinho, bebê – tudo aquilo que lhes é familiar. Cidadãos educados de democracias liberais classificam conflitos sangrentos entre senhores da guerra rivais em termos de conflitos pelos direitos humanos.

Fazemos um modelo de D’us, também. Aristóteles e seus amiguinhos viveram num mundo um tanto simples, bastante humano, onde o que havia de mais interessante era o pensamento humano. Naqueles tempos, falavam sobre a natureza em termos de qualidades e mente. D’us tornou-Se uma Grande Mente.


Então você sabe de onde vem a Física, e chama isso de D’us. Mas de onde vêm as emoções, idéias e experiência humanas?

Na Renascença, as pessoas ficaram fascinadas com delicadas maquinetas e mecanismos inteligentes. Pensadores originais, como Galileu, começaram a falar sobre o mundo em termos de medidas e mecânica. Começou o impulso rumo ao reducionismo materialista: reduzir tudo a suas partes mais essenciais, verificar como essas partes funcionam, e tudo seria compreendido.

No século vinte, este raciocínio chegou ao absurdo do extremo: a crença que até mesmo as emoções humanas e a consciência são nada mais que um artefato de matéria cinzenta mecânica. Tudo – incluindo você eu – tornou-se uma máquina tola. E se tudo neste mundo nada mais é que outra máquina boba dentro de uma outra máquina boba, então o deus por trás disso tudo deve ser um deus grande e bobo – se é que de todo ele existe.

Como um crítico literário parafraseou Wordsworth: "Dissecar é matar." A cirurgia reducionista conseguiu matar a própria Vida.

A Opinião do Alto

Então, o que está errado com este modelo?

Antes de mais nada, a crença que toda realidade pode ser entendida dentro de qualquer modelo. É verdade que vários campos da ciência têm apresentado modelos maravilhosos para predizer comportamentos específicos de sistemas. Mas afinal, tudo que estamos fazendo é expandir nossa brincadeira infantil com casas de bonecas e conjuntos de Lego: criando modelos da realidade para simplificar assuntos para nossa mente insignificante e cálculos de computador. No entanto, o único modelo verdadeiro de um objeto é o próprio objeto. É tolice imaginar que qualquer um desses modelos matemáticos equivalem ao "objeto em si."

Em segundo lugar, no que tange especificamente ao reducionismo materialista: O fato puro e simples é que não há base empírica para este conceito. A ciência ainda precisa isolar uma "parte mais simples" à qual pode ser reduzida. De fato, a evidência é esmagadora de que todas as partes do universo são integralmente relacionadas como um único todo. Para perturbação do campo reducionista, aqueles físicos quânticos causadores de problemas demonstraram alguns exemplos chocantes deste tipo. Por exemplo, dois átomos a anos luz de distância podem estar relacionados entre si de tal maneira que um evento num deles é imediatamente reciprocado no estado do outro. Nenhuma parte do cosmos pode ser vista como uma "unidade discreta e particular."

Para citar um dos pais da Física moderna, Max Planck, ao final de sua biografia: "E assim, em conclusão, descobrimos que na verdade não há matéria."

Por essa e muitas outras razões, diversos pensadores importantes – nos campos mais diversos, como mecânica quântica, ecologia e medicina – são proponentes de uma "abordagem holística." Em vez de começar com as partes e ir colocando as peças juntas para explicar o todo, eles começam com um sistema qualquer inteiro e explicam os detalhes como modalidades daquele todo. Caminhos de elétrons são oscilações do cosmos, mais ou menos como as ondulações em um lago não são uma entidade separada do lago, mas simplesmente "o lago ondulando." Plantas e animais são modalidades do planeta terra. Saúde e doença são dinâmicas do corpo e mente.
Nenhuma parte pode ser entendida fora de seu contexto dentro do todo. Na verdade, não há
"partes" – no sentido de que este termo foi previamente entendido.

E quanto à personalidade humana? Um reducionista dirá que se você está se sentindo inspirado, deprimido, arrebatado, entediado ou indiferente, é porque sua química está reagindo a estímulos de modo a provocar a ilusão que você tem uma mente. (Não se preocupe: eles também sofrem esta ilusão, e mais.) A Mente torna-se uma função do Corpo.

O holista afirma isso de outra maneira. Nossas químicas, nossos hormônios, nossas células, todos são modalidades específicas de nosso estado total de ser. (Pense novamente na metáfora das ondulações no lago. Agora pense naquilo que está acontecendo dentro de seu corpo como ondulações – você no lugar do lago.) Como a mente é o elemento mais penetrante daquele "estado total," é o primeiro lugar para procurar a cura. O Corpo torna-se um processo da Mente.

Embora eu estivesse relutante em colocar a Torá em qualquer dos campos, é digno de nota que a narrativa da criação na Torá é consistente com esta maneira holística, de cima para baixo: no primeiro versículo, D’us cria os céus e a terra. Tudo. Depois vêm os detalhes. E também nos detalhes: D’us não decora a terra com mercadorias de Sua caixa. Ao contrário, Ele fala com a terra e ordena: "Que brote a folhagem!" Leia-se isso como: "Torne-se um organismo vivo!" A vegetação se torna uma função do planeta terra, como o fazem todas as criaturas vivas, e até mesmo o corpo humano é formado a partir do barro. Todo o sistema é discutido como um todo – não as plantas e animais aparecendo, mas como a terra brotando e passando a viver.

A Mente e Coração Sobrenaturais

Assim como discutimos as diversas funções do corpo humano como modalidades de uma única personalidade humana, os sábios do Talmud fazem algo similar com o cosmos e sua "personalidade".

"Com dez coisas o mundo foi criado, com sabedoria, entendimento e conhecimento, como está escrito: "D’us, pela Sabedoria fundou a terra, pelo Entendimento estabeleceu os céus, pelo Seu Conhecimento as profundezas se abriram" (Talmud Chaguiga, 12a).

No Zohar, o Profeta Elijah fala a D’us, dizendo:

"Tu és Um, mas não no sentido numérico. Tu és transcendente acima de todas as transcendências, secreto acima de todos os segredos. Nenhum pensamento pode Te entender. Tu criaste dez vestes e as chamamos de Sefirot, com as quais dirigir mundos ocultos, e mundos revelados, e Tu Te ocultas dentro deles." (Introdução a Tikunei Zohar)

Em outras palavras, a mecânica pela qual o mundo funciona nada mais é que modalidades destes dez domínios, e a dinâmica entre eles. E estas dez nada mais são que modalidades de uma Unidade ilimitada, transcendente, oculta dentro delas. Mais uma vez, a metáfora da ondulação do lago é útil – mas agora o lago é um oceano infinitamente vasto. Uma metáfora ainda mais útil é aquela que os próprios cabalistas usam, da luz emanando do sol. A luz não é algo em si mesma, mas apenas "o sol emanando." Assim, também, as dez Sefirot são modalidades – "emanações" – de uma fonte infinita, e o cosmos é um artefato daquelas modalidades.

Um broto de grana saindo do solo é uma modalidade de infinito: D’us está Se expressando como o ato do crescimento orgânico. Nossa fala, nossa luta diária e os conflitos emocionais são o Infinito expresso dentro de personalidades humanas. Evidentemente, a distância entre Aquele que é "transcendente além de todas as transcendências" e um broto de grama, ou um ser humano mortal está além da concepção. Mas, para citar Avraham Joshua Heschel:

"A própria estrutura da matéria é tornada possível pela maneira na qual o interminável se cristaliza no menor de todos. Se o fluxo de energia armazenado no sol e no solo pudesse ser canalizado em uma lâmina de grama, por que deveria ser, a priori, excluído que o espírito de D’us atingiu as mentes dos homens?

"Há tamanha distância entre o sol e uma flor. Pode a flor, a mundos de distância de sua fonte de energia, atingir a percepção sobre sua origem? Pode uma gota de água sequer aspirar à contemplação, mesmo que por um só momento, de sua origem distante? Na profecia, é como se o sol comungasse com a flor, como se a fonte enviasse uma corrente para atingir a gota" (A. J. Heschel, D’us na Busca do Homem).

Dez Modalidades e o mundo que elas geram

Pode ajudar uma descrição destas dez Sefirot e seu relacionamento com o cosmos em mais detalhes. A primeira das dez são os "poderes da mente." Permanecem além da dinâmica direta do mundo – nos bastidores, por assim dizer. Pense no conceito de um projeto no papel: cobre todos os aspectos da obra, mas permanece fora da labuta do dia-a-dia.

Os próximos três são os poderes dominantes da criação: "Grandeza" ou "Benevolência" é a força positiva por trás da criação ex nihilo (a partir do nada). "Poder" ou "Severidade" é a força negativa de afastamento da presença. "Compaixão" ou "Beleza" é a força de equilíbrio, de coesão. Depois daquelas vêm outras três, que nada mais são que expressões dos poderes dominantes em um papel ativo e engajado. Finalmente, vem o Domínio, que é o ponto onde todos os poderes se juntam para "ficar reais".


D'us fez com o homem um ponto de encontro para que nenhum deles ficasse sozinho.

Parece estranho falar sobre conceitos tão abstratos dentro de um modelo rígido, mas desde que continuemos a nos lembrar que é apenas uma representação de algo ainda mais abstrato, tudo bem. Na verdade, é o único modelo cósmico que conheço que vem com certificado rabínico.
O que ocorre é que na verdade há quatro poderes criativos por trás do cosmos: Os três poderes dominantes da Bondade, Severidade e Beleza, além do Domínio. As quatro modalidades fundamentais da Física são manifestações físicas destes. Em termos clássicos, são denominados de Fogo, Ar, Água e Terra. O Lubavitcher Rebe sugere que estes podem corresponder ao paradigma da física quântica como "positivo, negativo, matéria e anti-matéria" (Likutei Sichot, vol. 38 pág. 20).

Porém estes elétrons voando em suas órbitas, fótons em suas trilhas, e em outros lugares, são meras manifestações das dinâmicas mais elevadas da bondade, severidade, beleza e domínio de D’us.

Além disso, as propriedades de cada objeto advêm desses dez poderes: Para conectar os dez juntos, os cabalistas desenham doze linhas (veja diagrama acima). Dez mais doze igual a vinte e dois, e a partir daí vêm as vinte e duas letras do alfabeto hebraico. Estes vinte e dois poderes se combinam numa permutação infindável para gerar a força animadora por trás de cada criação específica. Como ensinou Rabi DovBer de Mezeritch, o nome de cada objeto em hebraico bíblico é uma representação direta da força que o projeta como ser e que lhe dá vida.

Baseado nisso, os poderes emotivos sobrenaturais são o tecido fundamental de todas as coisas. E sua expressão mais abrangente dentro de todo o cosmos é a profundeza insondável do coração humano.

Evidentemente, D’us poderia ter feito um mundo que fosse apenas uma máquina tola. Por que Ele preferiu manifestar primeiro Sua luz investida nestes dez poderes, e somente depois permitir que aqueles dez se manifestassem como um mundo físico? Mais uma vez, os rabinos fazem a mesma pergunta, mas revestida em termos desapontadoramente simples. Dizem eles: "O mundo foi criado com dez ditos. O que isso nos ensina? Não teria sido possível o mundo ser criado com uma única frase? Mas isso é para igualar a retribuição do perverso que destrói um mundo criado com dez frases, e para conceder recompensa aos justos que sustentam um mundo criado com dez frases" (Ética dos Pais 5:1).

Um tanto enigmático, mas eis aqui o significado: D’us poderia ter dito: "Aqui estou Eu, bang, existe um mundo. Ele funciona. E basta." Porém seria um mundo tolo, um mundo que se explica por si mesmo, porque, bem, não há mesmo muita coisa para explicar.

Não era isso que Ele queria. Ele desejava um mundo onde as criaturas pudessem chegar até Ele e Ele chegasse até elas, até que se desenvolvesse uma afinidade entre Criação e Criador, e Ele pudesse ser encontrado em Sua obra-prima.

Portanto, Ele construiu uma ponte. Como costumamos dizer, Ele primeiro investiu a luz de Sua presença nas dez faculdades. E a partir delas, Ele deu forma e vida a todos os seres criados. Os seres em si, especialmente o ser humano, são projetados para combinar com aquelas faculdades sobrenaturais. Nós somos "à imagem de D’us" porque temos o poder de sermos bons, de reter aquela bondade, de agir com compaixão e beleza, e de dominar o que nos cerca. Nossa mente, também, é capaz de receber a inspiração e idéias Divinas, de encontrar sentido no mundo que nos cerca, de consciência e livre arbítrio.

Para chegarmos de volta até o Criador, então, precisamos encontrá-Lo naqueles Divinos Atributos. Esta é a mitsvá da Torá: "Deves caminhar em Seus estatutos." Os sábios perguntam: "É realmente posssível caminhar em Seus estatutos? Ao contrário, isso significa conectar-se a Seus atributos. Ele é bom – você também deve ser bom. Ele é misericordioso, você também deve ser misericordioso" (Talmud, Sotah 14a).

Esta é uma mitsvá toda abrangente, porque está por trás de todas as outras mitsvot: em cada ato recebemos o poder de imitar nosso Criador em Seu relacionamento com Sua criação. Quando mergulhamos nas profundezas da Torá com toda nossa mente, nosso intelecto torna-se um com a Mente Divina. Quando nos atiramos sinceramente em um ato prescrito pela Torá, nossa alma torna-se um conduíte transparente para a bondade e beleza Divinas. Quando fazemos o contrário, provocamos uma distorção daqueles atributos e eles se tornam expressos como vício e fealdade. Se agirmos com ira e vingança, distorcemos ainda mais a expressão da Divindade neste mundo.
Mas quando combinamos justiça com compaixão, permitimos que aqueles atributos Divinos fluam suavemente através de seu mundo.

Fazendo contato com D’us de maneira pessoal, envolvendo toda nossa mente e nosso coração, chegando a Ele em nossa prece e através de nossa vivência diária, estamos tocando o Divino e tornando-o real em nosso mundo.

 
   
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