Um E-mail de D'us  
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Por muitos anos, perguntei-me como seria receber um e-mail de D'us. A idéia sugerida por seu artigo, de que há um site chamado Portais do Céu fascinou-me, e não saía de minha mente. Se existia esse site, não seria possível que e-mails pudessem ser enviados do céu para a humanidade? Após dias de contemplação e consideração, finalmente decidi tentar a comunicação com esta morada celestial. Tinha a impressão que enviar um e-mail ao Todo Poderoso era menos radical que lampejar mensagens a marcianos verdes e outras criaturas cósmicas, o que sabe-se que muitos adeptos da New Age fazem.

Suponha que você tem uma chance de mandar um e-mail a D'us, o que escreveria? Creia-me, não é uma decisão fácil. Refleti sobre o assunto com extremo cuidado, e finalmente compus a seguinte carta:

Apertei o botão "Enviar", e meu e-mail desapareceu rapidamente no espaço ciber-celestial.

Reconheço que D'us geralmente não responde a comunicações terrenas. Mesmo assim, eu estava empolgado sobre meu e-mail, e acalentei uma leve esperança de que receberia uma resposta. Chequei minhas mensagens várias vezes durante o dia. Quando fui para a cama aquela noite, virei-me de um lado para o outro, com dificuldade para pegar no sono. Finalmente mergulhei num cochilo. No meio da noite, acordei com um salto. Tinha a estranha impressão de que algo tinha acontecido, e corri para o computador. Tenho certeza que você pode avaliar meu entusiasmo ao ver que chegara um e-mail do webmaster de Portais do Céu. Minha mão tremeu enquanto eu tentava firmar o mouse e clicar duas vezes para abrir o e-mail que com toda certeza, mudaria minha vida. Estava totalmente despreparado para o conteúdo da mensagem:

O quê?! Então era esta, a resposta à minha elevada busca espiritual? Teshuvá por causa de um insignificante episódio de lashon hará? Que tremendo desapontamento! Eu tinha imaginado uma tarefa excitante e dramática, tal como: "Escale o Himalaia e salve uma alma perdida que tenha se juntado a um culto oriental", ou "Saia de casa, mude para a Sibéria e abra uma yeshivá para os bisnetos dos judeus que participaram da Revolução Comunista." Apesar de meu extremo desapontamento, não podia ignorar um e-mail de D'us, e teria de seguir esta diretiva Divina sem questioná-la.

No final do e-mail estava um link a meu "Arquivo de dados de Lashon Hará". Cliquei no link e encontrei um registro de todos os episódios de lashon hará durante minha vida. Fiquei atônito ao descobrir que a contagem ia a mais de 50.000, o que representava uma média de cinco indiscrições de lashon hará por dia, pelos últimos 30 anos (tenho 43). Embora eu fosse cuidadoso para nunca violar as leis, lashon hará é, bem, você sabe, uma categoria diferente, por assim falar (nenhum trocadilho aqui). Afinal, todo mundo precisa fofocar um pouquinho. Mesmo assim, fiquei chocado pela absoluta magnitude dos itens em minha vida. Perguntei-me por que os e-mails de D'us ordenavam-me fazer teshuvá por apenas um episódio de lashon hará, quando tantos existiam? Isso me parecia uma boa pergunta, mas a quem eu questionaria sobre a vontade Divina?

Fiz rolar a lista e selecionei ao acaso um incidente de lashon hará.

Eu não me lembrava claramente do episódio, embora tivesse ocorrido há poucas semanas, então cliquei duas vezes e assisti enquanto o Real Player carregava e fornecia um vídeo-retrocesso do acontecimento.

Paulo da Silva era um bom amigo. Embora fosse contador graduado, tinha dificuldade em ganhar seu sustento. Recentemente, contratei Paulo para fazer minha declaração de Imposto de Renda. Quando Paulo enviou-me minha via, fiquei muito aborrecido ao ver que ainda devia R$ 500,00 ao Leão. Fiquei tão furioso, que chamei meu amigo Roberto, que também estava pensando em utilizar os serviços de Paulo. "Paulo fez minha declaração e não me admira que ele não consiga ganhar dinheiro. É um contador dos piores. Aposto que não consegue somar 2+2 sem usar a calculadora."

Em seguida, Roberto partilhou minha avaliação de Paulo com alguns poucos amigos mais chegados, que por sua vez disseram a alguns membros de seu círculo íntimo de amizades, e assim por diante.

Agora, eu precisava arrepender-me e fazer teshuvá por este ato falho. Como eu logo descobriria, porém, isso não era coisa simples.

Cliquei no link de ajuda para entender o processo de teshuvá. Eis o que apareceu em minha tela:

Eu agora tinha um problema, pois nenhuma das atitudes delineadas acima pareciam factíveis. Não podia pedir a Paulo que me perdoasse (opção 2) porque ele era um amigo íntimo, e eu não queria que ele soubesse que eu tinha prejudicado sua reputação. Por outro lado, não podia seguir a opção 3 porque não tinha certeza se de fato causara prejuízo financeiro a Paulo. Além disso, mesmo que Paulo ainda não tivesse perdido qualquer cliente, parecia impossível retirar minha declaração, mesmo por que não tinha como determinar o quanto minhas palavras tinham viajado e se espalhado.

Lembrei-me então de que o e-mail de D'us oferecia ajuda com o banco de dados do Portais do Céu. Observei a barra de ferramentas e encontrei uma opção chamada "Checagem do Avanço do Lashon Hará". Um clique neste link abriu uma tela que se assemelhava aos galhos mais finos de uma árvore copada. Perto de cada galho, estavam os nomes das pessoas que tinham ouvido e repetido minha avaliação sobre Paulo. A parte boa era que, até aquele momento, Paulo ainda não perdera qualquer negócio como conseqüência de meu lashon hará. Como meus comentários ainda estavam frescos, eu tinha uma pequena oportunidade de retirar minhas palavras antes que Paulo realmente perdesse qualquer cliente. A parte má era que a lista de pessoas que ouviram meu lashon hará era muito longa.

Rolei a tela e tracei toda a trilha de minha observação pejorativa. Para meu espanto, apareceu um novo galho enquanto eu estava olhando a tela. Alguém acabara de repetir meus comentários. Meu lashon hará estava vivo, crescendo e expandindo seus tentáculos, como se continuasse a espalhar sua horrível teia de calúnias. Tudo considerado, minha avaliação negativa de Paulo tinha sido repetida até agora 189 vezes.

Agora eu estava num dilema. Como poderia retratar um comentário passado para 189 pessoas? Muitos dos nomes na árvore me eram totalmente desconhecidos, e eu não conseguia me ver fazendo contato com pessoas que não conhecia. Lembrei-me de uma história famosa que escutara quando era criança, sobre um homem chamado Yankel, que gostava de repetir afirmações caluniosas. Conforme foi envelhecendo, percebeu que um dia teria que aparecer perante a corte celestial e prestar contas de seus atos. Finalmente, Yankel procurou o rabino local e perguntou como poderia arrepender-se e ser perdoado por toda a maledicência que espalhara no decorrer dos anos.

"Não há problema" - disse o rabino. "Simplesmente pegue um travesseiro grande de penas de ganso e suba no telhado mais alto que houver na cidade. Quando estiver no topo, bata com o travesseiro na chaminé, com toda a força que tiver."

Yankel achou o conselho muito estranho, e não conseguia ver de que maneira esta ação expiaria seu crime. Porém, o rabino havia ordenado, e quem era ele para questionar a sabedoria do erudito Rabi. Na verdade, Yankel estava encantado com a prescrição simples do rabino para a expiação. "Jamais percebi como é fácil fazer teshuvá por lashon hará." Yankel pensou consigo mesmo.

Agarrou um enorme travesseiro de penas de ganso e escalou rapidamente até o telhado do edifício mais alto da cidade. Com toda sua força, girou o travesseiro duas ou três vezes contra a chaminé. De repente, o travesseiro abriu-se e o vento espalhou penas de ganso por toda a cidade.

Yankel correu de volta ao rabino e reportou-lhe seu sucesso.

"Oh, há mais uma coisa que deve fazer," disse o rabino. "Vá e recupere todas as penas e traga-as a meu escritório."

"Isso é impossível," disse Yankel. "Elas viajaram por toda a cidade, e não tenho como recolhê-las."

Enviei meu e-mail às 189 pessoas e respirei aliviado. Estava muito orgulhoso de mim mesmo. Através do milagre da tecnologia moderna, pude corrigir o que Yankel jamais pudera.

Minha alegria durou pouco. Em poucos instantes, comecei a receber e-mails de resposta de meus novos amigos. Eis aqui uma amostra daquilo que escreveram.

Obviamente, eu nada conseguira com meus e-mails. As pessoas já tinham a cabeça feita, e eu não poderia convencê-las do contrário. O dano que eu causara à reputação de Paulo era claramente irreversível. Eu conferia o site regularmente, e em poucos dias Paulo começou realmente a perder negócios como resultado da repetição de minhas declarações.

Parecia que não me restava outra opção. Para cumprir minha missão Divina, eu teria que jogar a toalha e pedir perdão a Paulo. Mas então perguntei-me se esta era uma atitude ética. Paulo sem dúvida ficaria magoado ao saber que eu o apunhalara pelas costas, e manchara sua reputação aos olhos de 189 pessoas. Seria justo adicionar o insulto à injúria e provocar o sofrimento em Paulo para que eu conseguisse minha expiação pessoal?

Decidi ir até a casa de Paulo, ainda incerto sobre o que fazer. Talvez eu pudesse, delicada e diplomaticamente, explicar o que fizera, sem magoar seus sentimentos. Meu plano logo seria alterado.

"Paulo, tenho algo importante para lhe dizer," gaguejei. "Preciso contar-lhe... Isto é, não sei bem como dizer isso... É que, bem, você sabe como às vezes... não, não é isso, sempre fomos bons amigos... deixe-me tentar desta forma..."

Paulo olhou-me com espanto total, e interrompeu minhas frases titubeantes. "Escute, primeiro pense sobre o que quer falar. Estou contente por você ter vindo. Você sabe, equilibrar o orçamento sempre foi difícil para mim. Não sei por que, mas ultimamente as coisas têm piorado, e ficou mais difícil conseguir novos clientes. Estou constrangido, mas preciso de um grande favor. Sinto-me à vontade com você porque sempre foi um amigo leal. Poderia emprestar-me cinco mil pratas por alguns meses?"

"Claro, Paulo, seria um prazer," respondi.

"Quem me dera todos fossem tão bons quanto você," rebateu ele. Senti-me como um verme.

Percebi que o Plano B fora por água abaixo. De jeito algum eu poderia deixar Paulo saber o amigo de duas caras que eu realmente era.

Agora eu estava mesmo encrencado, e não conseguia achar um jeito de cumprir a diretiva de D'us. Jamais imaginei que seria tão difícil corrigir um único incidente de lashon hará.

Infelizmente, a oportunidade para teshuvá apresentou-se algumas semanas depois, sob a mais trágica das circunstâncias. Paulo da Silva estava fazendo cooper quando subitamente teve um grave ataque do coração. Foi levado às pressas para o hospital e morreu dois dias depois. Abria-se agora, para mim, um novo caminho para teshuvá, pois a halachá (lei judaica) permite que alguém peça perdão à uma pessoa falecida na presença de um minyan (dez homens adultos).

Escrevi e enviei este e-mail para dez amigos.

Chegou o domingo, e encaminhei-me ao cemitério. Era um dia frio e escuro, e o clima combinava perfeitamente com meu estado de espírito. Você poderia pensar que é mais fácil desculpar-se com os mortos que com uma pessoa viva, mas não é bem assim. Além do extremo constrangimento de pedir desculpas em um cemitério perante um grupo de dez pessoas, é sinistro ficar em frente a um túmulo e dizer que está arrependido a uma alma que já se foi. Eu jamais teria conseguido manter a fortaleza de passar por esta provação se não fosse o e-mail de D'us, que me empurrava para a frente.

Caminhei até o túmulo de Paulo, cercado por dez homens melancólicos que com certeza desejariam estar em qualquer outro local naquela manhã de domingo. Meus olhos começaram a se encher de lágrimas. Pela primeira vez, durante toda esta penosa experiência, comecei a sentir a intensa dor que havia causado a Paulo com meus comentários impensados. Sem qualquer reflexão, eu tinha pronunciado palavras que trouxeram enorme prejuízo a um bom amigo. Havia me apressado em tirar conclusões sem qualquer fundamento sobre a incompetência de Paulo.

Lembrei-me da época em que um colega fizera isto comigo. Ele procurou meu chefe e criticou meu trabalho com argumentos que achei infundados. Fiquei furioso, e até hoje, não consigo perdoá-lo por completo, por ter prejudicado minha reputação. Senti vergonha por ter feito quase a mesma coisa a Paulo. Como eu era hipócrita! Perguntei-me também se a perda dos rendimentos que Paulo sofrera devido a meus grosseiros comentários adicionaram tensão à sua vida, e por fim contribuíram para seu enfarto e falecimento. Se a pena é mais poderosa que a espada, então as palavras podem matar. Seria eu um assassino?

Silenciosamente, sussurrei palavras que eu sabia serem completamente inadequadas.

"Paulo, estou tão terrivelmente arrependido. Como eu gostaria que isso nunca tivesse acontecido."

Então, engoli em seco e disse em voz alta a fórmula prescrita no Código das Leis:

"Pequei contra o D'us de Israel e contra Paulo da Silva, de abençoada memória, manchando sua reputação como contador profissional". Os dez homens responderam em uníssono:

"Está perdoado, está perdoado, está perdoado."

Os dez homens, que estavam tão pouco à vontade quanto eu, rapidamente trataram de sair do cemitério. Eu também voltei para casa, contente por aquela provação estar finalmente terminada.

A experiência toda dos últimos dias haviam cobrado seu tributo. Em especial, a ida ao cemitério tinha esgotado minha última reserva de energia. Cheguei em casa tão completamente exausto que fui direto para a cama e caí em um profundo estupor.

Finalmente, acordei na manhã seguinte, de certa forma refeito, e fui até a sinagoga. Ao sentar-me para rezar, fiquei atônito ao ver um vulto, que por trás, se parecia com Paulo da Silva.

Isso foi muito desagradável, pois eu tinha a esperança de deixar o episódio todo para trás. Então o homem voltou-se, e fiquei chocado como nunca em minha vida, ao ver que era de fato Paulo da Silva. "Ele não aceitou minhas desculpas e saiu da tumba e levantou-se dos mortos para perseguir-me", pensei horrorizado. Isso era demais para mim, e caí desmaiado bem ali.

Quando finalmente recobrei os sentidos, Paulo e um grupo de amigos estavam de pé ao meu redor.

"Você está bem," perguntaram eles.

"Paulo, por que está aqui?" Eu estava petrificado.

"Por que não deveria estar? Sempre venho aqui para rezar."

"Mas o ataque do coração," comecei a dizer.

"Que ataque do coração?" perguntou ele com incrédula surpresa.

Aos poucos o véu foi se levantando, e a realidade voltou à tona. Tudo tinha sido um sonho. Paulo não morrera. Eu não tinha ido ao cemitério e não havia e-mail algum de D'us. O trauma do sonho tinha sido tão profundo que eu não percebera que estava sonhando, como geralmente ocorre quando se acorda pela manhã.

Finalmente, eu estava de volta a mim mesmo. Terminei de rezar e fui trabalhar. Para minha surpresa, eu estava desapontado pela experiência não ter ocorrido, e por não ter recebido um e-mail de D'us.

Chegando ao trabalho, um colega cumprimentou-me. "Já sabe da última sobre Max?" perguntou ele. Max, um colega nosso, era o rei da gafe, e estava sempre sujeito ao ridículo.

Eu estava para dar minha resposta costumeira: "Não acredito. O que ele fez agora?" quando, de repente, parei de supetão.

Tive visões de penas espalhadas pelo vento, flutuando por toda a cidade. Imaginei-me com uma rede de caçar borboletas na mão, correndo para lá e para cá, agitando freneticamente a rede e deixando escapar as penas. Corri mais rápido, mas tropecei nos túmulos em um cemitério frio e assustador. Em desespero, eu enviava e-mails às penas, 189 no total, mas os e-mails ricocheteavam para mim sem ser abertos, enquanto as penas continuavam a dançar para longe. Então, assisti incrédulo as penas se transformando em flechas pontudas, que se alojavam nos corações dos transeuntes inocentes.

Afastei-me rapidamente do colega, como se ele tivesse a peste ou alguma outra doença incurável. Cinqüenta mil vezes já era o suficiente, e eu não iria cair na areia movediça outra vez. Eu não era tolo.

Então tomei uma decisão. Lashon hará, nunca mais. Eu sabia que seria muito difícil manter esta decisão, mas eu estava determinado a cumpri-la.

Naquele instante, compreendi que tinha encontrado a missão espiritual, sem precisar de uma revelação angélica. Não havia necessidade de viajar a locais longínquos e matar dragões fumegantes e forças demoníacas poderosas. O drama do dia-a-dia da vida, com toda sua riqueza e complexidade, oferecia milhões de oportunidades, e era um desafio e tanto.

Caminhei para fora e vi que estava um lindo dia ensolarado. Contemplei o céu claro e azul, e ofereci uma breve prece.

"Mestre do Universo, não recebi Seu e-mail, mas Sua mensagem chegou. Obrigado, D'us!"

 

 

   
   
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