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  O dom do presente
 
Por Yehudis Fishman
  Já faz quarenta anos que minha mãe faleceu. Estive contrariada com ela catorze anos antes de sua morte. Mas quando você reavalia os eventos dolorosos da vida, às vezes acontecem coisas estranhas. O presente tem uma maneira de reestruturar positivamente o passado – talvez seja por isto que se chama presente.

Em 1950, meu pai faleceu, mas eu não soube disso até a manhã do funeral. Acordei empolgada porque não somente era o dia da minha formatura na escola primária, como eu cantaria uma canção de ninar de minha própria autoria. Em vez disso, quando entrei na cozinha, minha mãe disse numa voz sem qualquer emoção: “Seu pai morreu a noite passada. Eu vou ao funeral e você vai à escola.” Foi então que decidi jamais perdoar minha mãe, até este ano.

Minha infância nada teve de comum. Minha mãe tinha paralisia cerebral e meu pai era surdo. Eu era, graças a D’us, considerada “normal” embora meu avô, pai da minha mãe, me considerasse uma “crianca errada” porque meu nariz era mais arrebitado que o de qualquer pessoa na família. Meus pais viviam de auxílio do governo, eram separados e mais tarde se divorciaram, desde os meus sete anos. Portanto, naquela manhã fatídica, eu de nada sabia sobre os problemas de saúde de meu pai. Eu vivia relutantemente com minha mãe, pois ela podia cuidar melhor de mim, mas meu coração estava com meu pai. Naquela época, eu nem sequer pensei em expressar meu sofrimento interior, meu choque e a sensação de estar sendo traída que tive naquele lindo dia de junho.

Fui à escola, cantei minha canção, e desci a escadaria me arrastando de volta para casa. Quando aplaudiram depois que cantei, aquilo me lembrou o som da terra sendo jogada sobre um túmulo.
Eu não tinha amigas de verdade para conversar naqueles anos. Minha mãe, embora tenha escapado da Europa aos 20 anos, ainda comprava comida casher e tinha a nostalgia ou vontade de enviar-me a uma escola judaica de período integral. Isso era espiritualmetne bom para mim, mas não socialmente, pois todas as outras crianças eram classe média ou ricas. Nem sequer me lembro de ter tido uma festa de aniversário ou de comprar roupas novas até que cheguei à adolescência. Ali estava eu, voltando sozinha para casa no dia em que desejava estar com a única pessoa de quem jamais me senti próxima. Em vez disso, porém, estava voltando de uma celebração onde me sentira como um burro treinado recebendo aplausos.

Muitos anos e aparentemente muitas vidas depois, finalmente aprendi a partilhar meus sentimentos e lembranças com meus amigos. Um deles declarou: “Não se sinta mal; é como se você estivesse dizendo adeus ao seu pai com sua canção.” Aquilo me fez sentir um pouco melhor. Passou-se algum tempo, e uma outra amiga, poeta e bastante sensível, interpretou o ocorrido de maneira diferente. “Bem, Yehudis,” disse ela após ouvir as palavras da canção. “Aquela outra idéia é boa, mas não combina bem com a importância das palavras da sua canção. Ouça aquilo que você mesma escreveu:

Deite sua cabeça exausta, feche seus olhos sonolentos,
E sonhe com todas as coisas no mundo que você gosta.
Pode ser aqui embaixo na terra, ou lá no alto no céu,
Pode ser tristeza ou sofrimento, talvez seja até amor…
Eu te acaricio à noite, eu te visto sob a luz
Eu te amo de todo o coração, e espero que você jamais se afaste.
Filhinho, por favor vá dormir e tenha lindos, lindos sonhos.

“Yehudis,” disse ela, “estas não são as palavras de um filho cantando para um pai. São as palavras de um pai cantando para um filho!” Claro e óbvio! Porém eu tinha simplesmente precisado que o tempo passasse para eu me curar, e ser receptiva a uma mensagem vinda de uma boa amiga, talvez canalizando meu pai, ou talvez até mesmo D’us! A culpa se esvaiu de mim com aquelas palavras.

Porém a raiva contra minha mãe – esta era uma outra história. E nos traz até o momento atual, 2008, cerca de dez anos depois, e felizmente, estou mais sábia. Minha mãe faleceu no ano em que fui a Israel pela primeira vez, 1968, um ano após a Guerra dos Seis Dias. Ela estava doente quando eu parti, mas não estava pior do que muitas outras vezes em sua vida. Alguns dias depois que eu viajei, ela faleceu, mas o rabino que cuidou do funeral preferiu não me chamar porque eu não conseguiria voltar a tempo. No entanto, sem qualquer percepção consciente, o que eu mais queria fazer em Israel era visitar os túmulos dos tsadikim, justos.

Você pode imaginar o choque e a culpa que senti quando voltei para casa! Aqui, também, comecei gradualmente a enxergar melhor as coisas; talvez minha mãe soubesse que eu iria tentar mantê-la neste mundo, se eu estivesse por perto. Talvez ela estivesse esperando para abraçar-me antes de deixar este mundo. Porém eu ainda estava furiosa com ela por não me permitir comparecer ao funeral do meu pai.

Este ano, no entanto, eu vi as coisas de maneira um pouco diferente. No primeiro dia de Chanucá, eu estava dirigindo para dar uma aula sobre o Tanya quando alguém passou num sinal vermelho e bateu no meu carro. Minha perna foi quebrada, porém minha vida foi poupada.

Como estive numa cadeira de rodas durante alguns meses, e depois mancando por mais alguns, comecei a pensar sobre como deve ter sido difícil para minha mãe criar-me sozinha. Eu, sua única filha, sem incapacidade física, tive de aprender com a força interior de minha mãe. Eu não teria sobrevivido sem meus pais. Quando começamos a leitura em Elul, “Quando meu pai e minha mãe me deixarem, D’us cuidará de mim...” Finalmente aprendi a perdoar meus pais, como espero que eles me perdoem pela minha insensibilidade.

Que sejamos todos abençoados com a contínua sabedoria para ver com mais clareza, como aquilo que nos acontece tem de ser, e como continuamos a crescer, não apenas em anos, mas no verdadeiro entendimento.
     
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