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  Dignidade
  por Jay Litvin
 

Tudo bem, eu gritei um pouco alto demais quando repreendi minha filha. Sim, talvez ela não mereça toda a fúria que deixei escapar. Mas ela merecia pelo menos parte dela, não? Ou seja, depois do que ela fez, eu poderia simplesmente deixar passar? Sem dizer nada? Fingir que não tinha acontecido?

Quem ela se tornará, então? Eu deveria tolerar qualquer coisa só para não ficar furioso?

Tudo bem, então isso torna a casa desagradável, e lança uma sombra no ambiente depois que eu gritei, e ela sai com aquele olhar e vai para o quarto e fecha a porta.

Você está certa, isso assusta as outras crianças, que dão um jeito de olhar para o outro lado e ficarem quietas pelo resto da noite, na esperança de que eu não fique furioso com elas também.
E sim, eu estava de mau humor quando cheguei em casa e isso influenciou meu modo de reagir. Mas insisto, eu deveria ter deixado isso passar em branco? Quero dizer, Chaya não precisa de alguma disciplina, de vez em quando?

"Sua dignidade", disse minha mulher.

O quê? O que minha dignidade tem a ver com isso?

"Quando você grita daquele jeito, perde sua dignidade", disse ela.

Minha dignidade? questionei com exasperação. Pensei que estivéssemos falando sobre ela, sobre seu comportamento, sua necessidade de ser ensinada a distinguir o certo do errado.
"Você pode fazer isso com dignidade", disse ela novamente. "Quando você perde a calma, perde sua dignidade."

Tudo bem, isso me atingiu. Sentei-me, pronto a ouvir mais. Respirei fundo e tentei guardar minhas defesas no bolso por um tempo suficiente para escutar o que ela tinha a dizer.

"Chaya ama você," disse ela. "anseia por sua aprovação. Seu menor olhar de desaprovação é entendido por ela e por todas as crianças", disse ela convincentemente. "Se você tivesse simplesmente feito cara feia, teria passado a ela a mensagem, ensinado uma lição, e, apesar disso, sua dignidade ficaria intacta."

Uma careta bastaria? perguntei incrédulo.

"Só uma careta", repetiu ela. "Chaya – todos eles – estão completamente sintonizados em você. Você é o pai. Eles o amam e querem que você fique feliz com eles. Quando você não fica, eles percebem e isso é importante. Se você acreditasse nisso, não precisaria se enfurecer. E se não ficar furioso, conserva sua dignidade. E se mantivesse sua dignidade, ensinaria a eles como manterem também a dignidade deles."

Uau! Isso era muita coisa para engolir. Demais para aceitar. E como minha mulher ficou tão sábia? E onde ela encontrou a coragem para dizer tudo isso a mim, este marido não especialmente famoso por aceitar críticas de maneira pacífica, especialmente vindas da própria esposa; esta pessoa que com freqüência enxerga crítica, mesmo quando não há sequer sombra disso.

Havia alguma por ali?

Bem, olhei e não vi nenhuma. Parecia crítica. Tinha alguma textura e cheirava a crítica. Porém, havia alguma coisa na maneira pela qual ela estava me dizendo que parecia ser algo importante. Como alguma coisa a que eu daria ouvidos, se conseguisse tirar o ego dos ouvidos.

Você quer dizer que basta eu fazer cara feia para as crianças captarem a mensagem?

"Sim," disse ela, "embora talvez você tenha também de explicar porque está fazendo careta. Mas não precisa gritar para dizer isso. Seu desprazer já é suficientemente gritante."

E quando eu grito? perguntei.

"Uma estocada," disse ela, "direta no coraçãozinho deles. Nos corações que te amam."

Oh, não!

Mas eu não quero ser tão exagerado em meu comportamento, gemi. E quanto à espontaneidade, implorei. Poderei jamais ser eu mesmo? clamei ao Eterno lá no Alto.

"Claro," respondeu minha mulher, "apenas não fique tão furioso. Você não precisa disso, e fere sua dignidade. As crianças querem que você tenha dignidade."

Dignidade. Uma palavra e tanto. Um senhor conceito. O que significa, exatamente? Como se pode perdê-la? E como se pode encontrá-la?

Isso cabe a você. Ache uma maneira. Você conseguirá, disse ela confiantemente, e de modo a preservar minha… sim… dignidade. Terminamos a conversa com meu ego intacto.

Portanto, comecei minha pesquisa onde qualquer bom estudante procuraria: no dicionário.

Dignidade: Presença de atitude e respeito próprio no comportamento de uma pessoa de modo a inspirar respeito, altivez e graça. Decoro. Intrigado, fui pesquisar o significado de decoro.

Decoro: adequação do modo de falar e comportamento ao próprio caráter, ou ao local e ocasião. Atitude no comportamento. Atitude, outra vez., Eu precisava conferir esta palavra.

Atitude: Ser equilibrado; o estado ou condição de ser equilibrado.

Era a isso que minha mulher estava se referindo, não era?

"… adequação do modo de falar e do comportamento ao local e ocasião…", "atitude e balanço". Minha fúria tinha sido desequilibrada com a ocasião e com minha filha. Eu tinha feito o oposto de "inspirar respeito".

Comecei a pensar em minha pequena Chaya tentando aparar e conter minha explosão de energia negativa. Eu estava furioso por mim mesmo, não por ela. Não somente eu tinha me perdido, como tinha esquecido também minha filha. Ela fora simplesmente esmagada pela minha intensidade, incapaz de absorvê-la ou entendê-la. Ela estava assustada, e consegui visualizar sua mente e coração afetados pelo poder de minha voz, de minhas palavras e de minha expressão facial. De maneira alguma esta fúria toda poderia ter um efeito positivo. Minha ira estava apenas querendo se expressar. E ao comportar-me daquela maneira, eu tinha perdido, como minha mulher dissera, a dignidade. E minha filha tinha sofrido as conseqüências.

Mais tarde naquele mesmo dia, eu estava estudando um livro sobre Sefirot, os dez "atributos" Divinos que D'us assume para criar e interagir com nossa existência. Estava aprendendo sobre Chesed (bondade/efusão), Guevurá (restrição/contenção) e a fusão deles em Tifêret (Beleza, ou aquilo a que eu agora chamaria Dignidade). Na descrição que eu estava lendo, a palavra "equilíbrio" era usada para descrever Tiferet, como o dicionário tinha usado esta palavra para descrever dignidade, decoro e atitude. A passagem estava descrevendo o equilíbrio entre "efusão" e o receptáculo para contê-la. Quando existe o equilíbrio ideal, tem-se beleza como resultado.
Quando as coisas se encaixam adequadamente, quando a forma se iguala perfeitamente ao conteúdo, quando ocorre o equilíbrio e as proporções estão corretas, as coisas são lindas. Têm graça e atitude. E quando aplicadas ao comportamento, pensei eu, elas têm dignidade e decoro.

Os cabalistas afirmam que quando a efusão é mais do que o recipiente pode conter, o resultado é um "abalo do recipiente". Quando a efusão é muito pequena, o resultado é um receptáculo em necessidade. Mas quando a efusão é, como diz Goldilocks, na medida certa, o recipiente do tamanho certo, o resultado é lindo, uma perfeita adequação.

Mais uma vez, eu estava em dificuldade para ver a relevância para minha filha e meu comportamento. E ao continuar a ler, foi como se as palavras estivessem impressas sobre um vago esboço do rosto dela olhando para mim, às vezes sorrindo, às vezes expressando o choque e angústia que sentiu quando gritei com ela.

A passagem continuou descrevendo a maneira pela qual D'us Se restringe para que cada receptáculo, não importa o quão pequeno seja, receba exatamente a quantidade certa de Divindade sem quebrar. Eu tinha agora um vislumbre daquilo que era exigido de mim. Embora parecesse desafiador, entendi que como eu fora criado à imagem de D'us, provavelmente Ele tinha me concedido os recursos de que precisava para atingir algo que parecia impossível.

Eu precisava adequar a efusão de minhas expressões para adequar-se à capacidade de receber de minha filha. E isso exigia que eu viesse a conhecer sua capacidade de receber, que eu me sintonizasse mais profundamente com sua sensibilidade, sua capacidade de entender seu próprio comportamento e o meu, e manter este conhecimento em primeiro lugar na minha mente e no meu coração.

Voltando ao Chassidismo e à ordem das sefirot, relacionei este nível de entendimento à sefirá de Daat, que precede e influencia as sefirot de Chessed – efusão, expressão – e Guevurá – restrição, contenção. Embora Daat tanto seja precedida, e uma combinação das sefirot de Chochmá (sabedoria) e Biná (compreensão), não é um saber intelectual, não um saber da mente, mas um conhecimento mais profundo – uma intimidade com o outro que preenche a distância entre sujeito e objeto, entre o conhecedor e o conhecimento.

Pensando sobre minha filha, relacionei Daat ao tipo de conhecimento que ocorre entre pais e filhos na melhor das hipóteses. O tipo de conhecimento disponível àqueles criados do mesmo sangue, semente e óvulo, o mesmo DNA e alma, a mesma família e lar. Era-me difícil contemplar este nível de conhecimento sem imaginar o profundo amor que resultaria, e o avassalador desejo de dar e ser bom àquilo que vem a ser conhecido desta maneira intrínseca.

Pensar sobre isso e minha pequena Chaya, meu amor e afeição por ela preenchiam minha consciência, e quando eu me lembrava de ter gritado com ela naquela triste manhã, meu comportamento agora parecia abominável e cruel.

Percebendo agora como eu agira e o sofrimento que causara a ela, maravilhei-me por ver como minha mulher tinha sido bondosa comigo. Naquele momento, eu não poderia ter ouvido uma descrição de minha feiúra sem gritar para minha mulher algumas palavras em minha própria defesa. Em sua sabedoria, ela tinha escolhido palavras que eu podia escutar e das quais eu tinha algo a aprender. Ela não me falara sobre feiúra, mas sobre dignidade.

Agora eu tinha este estranho sentimento de que o ensinamento chassídico estava me dizendo para ser um pai e marido melhor, e minha filha e esposa estavam me ensinando a entender melhor o Chassidismo e a mim mesmo.

Comecei a ver que eu não seria privado de minha espontaneidade, como temera. Embora meu comportamento não devesse mais ser controlado por explosões de emoção, também não seria o resultado artificial do raciocínio rígido e premeditado. Do fato de conhecer minha filha – ou minha mulher – nas maneiras descritas pelo Chassidismo, eu via a possibilidade de que minha expressão viesse de um tipo diferente de espontaneidade, que brotasse naturalmente do melhor de minha mente, de meu coração aberto, de meu carinho e amor.

Eu via a possibilidade de manter minha dignidade, ao mesmo tempo em que dava a minha filha a capacidade de receber e aprender com aquilo que eu desejava partilhar, como minha mulher tinha me dado aquela oportunidade.

E via que o resultado seria belo, da maneira que todas as coisas são belas quando dirigem-se da mente para o coração, para serem expressas por nossas palavras e ações.

Para minha filha, minhas desculpas. Para minha mulher, minha gratidão. Ao Chassidismo, minha apreciação pelo refinamento que trouxe à minha vida.


Jay Litvin escrevia para chabad.org e morava em Rehovot, Israel. Era diretor do Projeto Chabad para Vítimas do Terror; trabalhava também como Contato Médico para as crianças vítimas de Chernobyl, que remove as crianças das áreas contaminadas pelo desastre nuclear. Faleceu recentemente vítima da doença que ajudou incontáveis crianças e jovens a combater.  
       
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