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  A alma do Cyberspace  
 
Por Jeff Zaleski
 

Entrevista realizada em 1993
com Rabi Yossef Y. Kazen z"l
pioneiro do judaísmo na internet,
falecido em 12 de Kislêv de 5759 /
2 de dezembro de 1998,
aos 44 anos

Os edifícios nesta parte do Brooklyn são mal cuidados, rabiscados de graffiti. Barras de ferro cobrem praticamente todas as janelas. Além de uns poucos carros, nada se move sob o escaldante sol de verão. Não admira o motorista do meu táxi ter acelerado ao máximo.

A distância, aparece um cartaz no alto de uma parede. Mostra um velho com uma barba branca. É o falecido Rabi Menachem Schneerson, o sétimo Rebe da seita Chabad-Lubavitch do Judaísmo Ortodoxo. O táxi passa pelo cartaz, e tudo muda.

O novo quarteirão cintila. Está fervilhando de homens em calças escuras, alguns usando casacos negros apesar do calor, todos com kipás ou chapéus pretos de feltro; andando, falando, rindo e gesticulando. Um punhado de mulheres e crianças abre caminho pela multidão. Toda esta ação parece girar em torno de uma mansão de tijolos vermelhos, com uma fachada repleta de cumes. É o nš 770 da Eastern Parkway, em Crown Heights, um edifício conhecido em todo o mundo por judeus ortodoxos simplesmente como "770". É a sede mundial dos Lubavitchers, e lar do falecido Rebe, que morreu em 1994 aos noventa e dois anos.

Fui ao 770 para encontrar Rabi Yossef Y. Kazen, diretor de atividades do website de Chabad-Lubavitch, para falar com ele sobre seu programa de divulgação na internet e sobre algumas das questões que tenho sobre o trabalho espiritual online. Sei como é a aparência de Kazen porque vi uma foto dele na Rede. (Praticamente toda a pesquisa para o seu livro foi feita na Rede). Mesmo assim, quando o avisto, é um choque combinar este homem que me cumprimenta como um amigo à pequena foto branco e preta digitalizada em seu site.

Rabi Kazen é de meia-idade, alto e robusto, vestido informalmente com camisa branca e calças escuras. Usa óculos, e sua barba cor de cenoura é estriada de cinza. O homem com quem ele está conversando me olha com curiosidade, pois sou a única pessoa no quarteirão com roupas coloridas e a cabeça descoberta. Kazen me oferece um cigarro – como muitos dos digerati1 religiosos, ele fuma sem parar – e ali ficamos, conversamos alguns minutos sobre o tempo, o ar, e o bairro. Estamos esperando pela minha colega, Daisy Maryles, editora executiva de Publishers Weekly. Judia ortodoxa moderna, Daisy, que coordena a cobertura de livros religiosos em PW, ofereceu-se para me ajudar por interesse profissional e pessoal, mas também para agir como minha guia nesta parte não-familiar do Brooklyn.

Depois que Daisy chega, Kazen nos guia escada abaixo até o moderno edifício vizinho ao 770. Lá dentro, o século vinte secular parece ceder lugar a uma outra época, outro espírito. Mulheres usando lenços de cabeça e vestidos com mangas compridas se inclinam, murmurando preces em hebraico. Passamos por um corredor estreito. Numa curva, uma janela pequena se abre para uma sala incrivelmente grande, repleta de ortodoxos de pé, conversando e lendo. Era nesta sala que Rabi Schneerson fascinava seus seguidores com sua conversa sobre D’us, Judaísmo e Torá. Eu quero me demorar, encantar-me com aquela visão, mas Kazen nos afasta dali, passando por uma porta lateral e quatro lances de escadas gastas.

Entramos numa sala minúscula atulhada de cadeiras, mesas, modems, computadores, estantes de livros e bancos. Os fios se cruzam para todos os lados. Painéis de madeira barata cobrem as paredes, e linóleos riscados num padrão xadrez enfeitam o piso. A maior parte daquilo é gasta e manchada, um tanto encardido, exceto o vidro sobre o quadro do Rebe pendurado numa parede.
Cada qual acha um assento. A sala está quente, o ar abafado. Olho para o resfriador de ar. Seu nível cairá muito antes que terminemos a conversa.

"A sala que temos aqui mede dez por quinze" – diz Kazen, as palavras saindo de sua boca num tom alto e apressado. "Mas está dividida em três segmentos. Um lida com pessoas na Internet, para respostas enviadas semanalmente a perguntas individuais e discussões. Há uma área de desenvolvimento de informática. E depois temos o escritório."

"Quantas pessoas trabalham aqui de uma vez?" pergunta Daisy.

"Podemos ter até cinco."

"Espero que se dêem bem" – brinca ela.

Os cinco são Kazen, Eli Winsbacher, o diretor de sistemas para o site; dois programadores: e o webmaster do site, ou programador chefe, o filho de Kazen, David – com catorze anos apenas. É jovem para um webmaster, mas não muito jovem. O Cyberspace é uma sala para brincalhões.

"Meu filho costumava me observar sentado ao computador, e ele sempre queria saber o que estava acontecendo." Kazen sorri quando se lembra. "Portanto, aos dezessete anos e meio ele criou um programinha só para ver como era. Basicamente, ele criou nossas homepages."

A sala onde os cinco se acotovelam é típica de outros sites religiosos. Não é preciso muito para criar um website. Um PC, um modem, e uma mesa para colocá-los é o suficiente. Com poucas exceções, sites espirituais na Rede têm um orçamento apertado. O dinheiro que aparece é aplicado em equipamento e custos operacionais. Não há necessidade de um escritório de luxo.
As milhares de pessoas que acessam o site Chabad-Lubavitch semanalmente não verão esta sala, pois o Cyberspace esconde mais do que revela.

O website que Kazen dirige é suave e colorido, no entanto sua página principal é encimada por uma foto do Rebe, com as legendas: "Chabad-Lubavitch no Cyberspace" e "Judaísmo na Internet com a velocidade da luz". A página é debruada com ícones vermelhos, azuis, verdes, amarelos, roxos e dourados. Não há uma mancha, um arranhão à vista. Chabad-Lubavitch no Cyberspace é um local claro e alegre, refletindo a animação característica dos seguidores deste ramo do Judaísmo Chassídico.

Os Chassidim, ou o Caminho dos Piedosos, surgiu sob a orientação do notável místico conhecido como Báal Shem Tov na Europa Oriental na metade do século dezoito. (O estilo de roupas usadas pelos Lubavitchers é um legado daquela época e local.) O Chassidismo enfatiza o relacionamento individual com D’us e a devoção para com o próximo. Chabad-Lubavitch, por sua vez, foi fundado pelo primeiro Rebe, Shneur Zalman, no final do século dezoito. Rabi Zalman enfatizava a importância do intelecto na prática mística judaica, bem como o papel importante do tsadic, ou justo esclarecido, na vida religiosa da comunidade. A sucessão de Rebes de Lubavitch é dinástica, geralmente de pai para filho, embora Rabi Shcneerson fosse genro do Rebe Anterior.

É difícil superestimar a influência dos Rebes, e de Rabi Schneerson em particular, para Chabad-Lubavitch. Durante sua liderança, que começou em 1950, o Rebe prometeu um enérgico programa de divulgação aos judeus não-ortodoxos que faziam uso inspirado de equipamento de alta tecnologia: rádio, televisão, telefones, bips e finalmente, computadores. Segundo a estimativa de Rabi Kazen, cerca de quinze mil Lubavitchers moram na comunidade de Crown Heights no Brooklyn, enquanto outros quinhentos mil estão espalhados no mundo inteiro. Os números eram muito menores antes de Rabi Schneerson ascender à liderança do Movimento, e a maioria de seus seguidores leva muito a sério esta divulgação.

Chabad-Lubavitch no Cyberspace tem raízes veneráveis pelos padrões online. Na década de 80, redes eletrônicas como Fionet conectaram os digerati, que participaram nos boletins de diretoria eletrônicos como Keshernet, uma BBS judaica, ou sistema de boletins de diretoria, ao qual Kazen se juntou mais para o final da década. Em 1989, por meio da Keshernet, Kazen recebeu um e-mail de um judeu no Texas, falando sobre uma mulher judia que tinha expresado alarme pela quantidade de e-mails que recebera de missionários cristãos. A mulher estava ansiosa para ler mensagens judaicas, mas havia um problema: ela era alérgica a tinta.

"Eu disse a mim mesmo" – Kazen nos relata, maravilhado e com um brilho nos olhos – "Um segundo! Eis aqui um nicho que não foi preenchido!"

O rabino enviou por e-mail algum material judaico sobre preces. "Então comecei a pedir para editores dentro da organização para me fornecerem material. O texto básico da filosofia Chabad, o Tanya, é um livro de cinco volumes com lições diárias. Peguei este livro na tipografia, tive de remover o hebraico, mexer nos itálicos e sabe mais o quê. Portanto, foi uma boa dose de trabalho."

Kazen tornou o Tanya, e outros textos-chave judaicos, disponíveis a todos que desejassem lê-lo online. Junto com outros membros da Keshernet, ele foi aonde todos vão em busca da palavra final: Rabi Schneerson. "Perguntei ao Rebe se valia a pena entrar na Internet. Porque em 1990 a Internet estava começando a provocar algumas ondas, mas estávamos apreensivos porque era totalmente Ocidental. E o Rebe disse para ir em frente– simplesmente ir atrás daquilo."

"Um amigo meu, Eli Winsbacher" – explica Kazen – "é um perito em computação. Falei com ele a respeito e lhe disse: ‘Temos de criar um Beit Chabad eletrônico. Um centro judaico online.’ E ele disse: ‘Você está louco!’"

Kazen ri. "Sabe, muitas pessoas me dizem isso. Mas finalmente consegui convencê-lo.’"
Kazen via vantagens distintas em adaptar novas tecnologias para um propósito milenar. "Um homem com chapéu preto se aproxima de você e aí está o estereótipo" - disse Rabino Kazen numa entrevista ao New York Times em 1994. "Quando você vai para a Internet e lê sobre judaísmo, vai direto para o intelecto e o estereótipo desmorona."

Para seguir em frente, os dois foram a Long Island falar com funcionários da Dorsai Embassy, uma empresa sem fins lucrativos que fornece serviços de computação a outros grupos sem fins lucrativos. "Eles olharam para nós e disseram: ‘Sabe, Rabi, isso vai levar tempo, muito tempo para estudar e aprender este negócio todo. Está disposto a isso?’ E dissemos: ‘Sim, estamos prontos a fazê-lo."

Kazen balança a cabeça. "Dois anos e meio depois – toda noite, sem falhar – passamos um tempo ali. Eles nos deram nosso primeiro computador, e nos ensinaram como colocar as coisas em um gopher [um programa menu que exibe os recursos da Internet como arquivos de texto].
Então usei todo o hard-disk de 40 megabytes que eu tinha, e coloquei-o no site gopher.

"Perguntamos ao Rebe se podíamos usar o nome Chabad. [Chabad é um acrônimo para as palavras hebraicas que significam "sabedoria", "entendimento" e "conhecimento"."] Ele concordou. Ao final de 1993 começamos online como chabad.org. Por fim mudamos os computadores do porão da minha casa para este prédio, e mudamos os servidores [computadores que servem como poder de processamento de dados para outro computador, geralmente menor] de Dorsai para cá, conseguimos o T1 [uma conexão avançada por linha telefônica com a Internet], e assim estamos indo."

Este sistema todo não custa pouco, mas Chabad-Lubavitch no Cyberspace recebe alguns poucos fundos vindos de fora. A maioria das despesas é paga do próprio bolso de Kazen e Winsbacher.
"Nós dois" – considera kazen – "na verdade afundamos nossas economias. O retorno aqui é espiritual. Não há retorno financeiro." Como muitos websites religiosos, Chabad-Lubavitch mostra poucos anúncios de produtos externos. O site comercializa uma profusão de itens, incluindo um kit para montar uma menorá, sociedade num clube de fitas cassetes com aulas do mês, e um vídeo de culinária, Um Sabor de Shabat ("Cholent? Babaganoosh? Kugel? Estas são palavras em código que desvendam os Mistérios de Uma Civilização Antiga?"). No início de 1997, ele apresentou anúncios de diversos "patrocinadores", incluindo um corretor de commodities estabelecido na Flórida.

O site de Kazen funciona basicamente como uma divulgação educacional. Isso se aplica à maioria dos sites religiosos no Cyberspace. Porém quando Daisy pergunta a ele quantos "Chabadniks" estão conectados ao servidor, sua resposta é uma surpresa.

"De nossa própria comunidade, provavelmente uma porcentagem muito pequena."

"É mesmo?" observa Daisy. "Então não é para os nossos?"

"Nosso estabelecimento nunca foi para nosso próprio grupo. Pelo contrário, isso foi montado estritamente para lidar com o mundo lá fora. Não sei se uma pessoa comum de Chabad deseja que seus filhos fiquem navegando na Net. É como colocá-los no meio de uma loja de jornais com todas as revistas ali. Então, nunca vamos até a comunidade e tentamos forçá-la a isso. Minhas perspectiva aqui é de sair para o mundo. Enviar uma mensagem do Judaísmo ao judeu que não sabe muito, que se encontra afastado."

O Chabad e outros Ortodoxos não são os únicos judeus promovendo o Judaísmo online. Diversos outros grupos judaicos Conservadores, Reformistas, Reconstrucionistas e Humanistas criaram sites na Web. Há muitas páginas destinadas a estudantes judeus, especialmente em sites conectados com Hilel. A organização global de campus judaico. No total, provavelmente existem milhares de sites judaicos na Web. Somente Chabad-Lubavitch no Cyberspace atinge muita gente – mais de 2 milhões em 1995, segundo o rabino. Suas páginas agora têm em média – reporta ele – "vinte a trinta e cinco mil acessos por semana. E este é apenas o nosso site." (Uma página da Web recebe um acesso a cada vez que alguém dá um download de qualquer texto do arquivo, seja áudio ou visual, daquela página. Uma pessoa pode visitar uma página da Web uma vez, portanto, e contabilizar diversos acessos.)

E existem numerosos outros sites Chabad-Lubavitch online, enfatiza Kazen. Isso parece natural para um movimento que tem centros físicos em muitas cidades nos Estados Unidos, Canadá e Europa, bem como em oito cidades do Marrocos, e um centro no Peru, Casaquistão, Cingapura, Hong Kong e Zaire, entre outros locais.

"Os sites estão conectados de alguma forma?" pergunta Daisy.

"Estão todos conectados" – diz Kazen, inclinando-se para a frente com entusiasmo. "O material é todo baseado nos ensinamentos do Rebe ou em Judaísmo em geral, porém há bastante sabor local. Por exemplo, a área de Baltimore-Washington está começando a se concentrar em mulheres no Judaísmo. Há um sujeito em Marin County que está concentrado em jogos e Judaísmo, lidando com questões do tipo: o que tem o pólo a ver com o Judaísmo? Como se pode aprender uma lição com isso? Temos outro indivíduo na Califórnia que está apresentando receitas casher de diferentes lugares do mundo."

Os visitante online que fazem Kazen gritar de alegria são os judeus errantes que respondem ao chamado eletrônico e retornam à religião. Ele nos conta sobre um despachante policial em Filadélfia que não somente voltou ao Judaísmo por causa das atividades do Chabad online, como agora passa os feriados na casa de Kazen.

"Tive um estudante no Novo México" – recorda Kazen – "que é muito interessante. Ele me escreveu porque desejava saber se era permitido fumar maconha na manhã de sábado, em preparação para a prece, para que ficasse mais esperto." O rabino se diverte com a idéia.

"Escrevi de volta que, dentro do Judaísmo, o conceito é que a prece em si dá o "barato". E também, que você não fuma aos sábados. Ele terminou passando o verão aqui, numa yeshivá, e está planejando prosseguir os estudos no próximo ano. Eu o conheci no começo do ano, e ele disse que como lhe respondi de maneira positiva e não deixei sua dúvida de lado, tive um profundo efeito em sua vida.

O estudante contactou Kazen por intermédio de "Faça uma Pergunta", uma página no site que oferece um campo onde os curiosos podem digitar uma pergunta e então, clicando num ícone, enviam o e-mail ao rabino. Kazen relata que passa uma média de seis horas por dia lidando com esta ferramenta interativa. "Ontem" – recorda ele – "recebi uma pergunta de uma mulher que tinha comprado uma jarra egípcia com duas alças e queria saber se poderia usá-la para lavar as mãos – o ritual de ablução antes de comer pão. Muito interessante. Uma estudante da Universidade Brandeis que tinha cortado o dedo com uma faca enquanto descascava uma maçã queria saber o que fazer com a faca – se era ou não casher, por causa do sangue.

"Estas perguntas chegam às onze da noite, à meia-noite, e eles querem a resposta agora. Não querem ter de esperar até o dia começar."

Kazen não responde todas as perguntas por si mesmo. Às vezes ele as passa para a frente. "Geralmente tento descobrir onde estão aqueles que enviaram a pergunta, quem são, se têm ou não contato com um rabino local ou representante Chabad, e os envio para lá" – diz ele. "Creio que a melhor parte sobre a Net é que permite às pessoas se sentarem sozinhas para ler, estudar, perguntar, questionar, perguntar, perguntar, perguntar, até que se sintam à vontade para não se importar se estão associadas ou não a um estereótipo específico. E este foi o poder que descobri sobre a Net."

"Em outras palavras" – afirma Daisy – "é um poder anônimo quando você faz estas perguntas pela primeira vez."

"Um poder completamente anônimo."

"Deixa você à vontade para perguntar qualquer coisa."

"Qualquer coisa. Já houve pessoas vindas de todas as esferas da vida, que fazem perguntas sobre homossexualidade, transsexualidade, bissexualidade. Tive um psiquiatra da Austrália que me perguntou como deveria lidar com pacientes que estão sendo testados para doenças genéticas e que vão ter uma morte horrível ainda jovens. O sujeito não é americano, ele nem sabe como eu sou, nem sequer sabe se sou real ou não.

A maioria do material disponível em Chabad-Lubavitch no Cyberspace – agrupado em áreas como; "a Mulher Judia" e "Misticismo Judaico", lições interativas de Torá em hebraico e inglês – é baseada em textos (embora haja gráficos e áudio-clips, incluindo clips de canções de Chabad).
Isso parece apropriado para o Povo da Palavra. São os sinos e apitos do Cyberspace, no entanto – os interativos visuais, especialmente em 3-D – que atraem visitantes aos sites da Web como o néctar atrai as abelhas. Kazen sabe disso. "No decorrer dos anos, sempre tivemos um evento chamado Chanucá ao Vivo na TV a cabo" – diz ele – "com conexões via satélite para todo o mundo. Decidimos que neste ano, vamos levar isso a um outro nível." Kazen está se referindo à "Festa das Luzes" (um ambicioso programa online para a época de Chanucá em 1996 que iria, como diz o texto da divulgação: "Utiliza o poder e o alcance da Internet para elevar o barômetro moral e ético do nosso planeta".

A utilização fundamental é através de "O Database Global Interativo de Boas Ações" – planejado para ser um site permanente onde, diz kazen – "as pessoas poderão participar acendendo sua própria menorá, clicando num ato de bondade ou em algo positivo que fizeram. E tendo um mapa do mundo inteiro, à medida que a pessoa clica em algo de bom que fez, uma outra parte do mundo se acende." O database, explica ele, adere a "nossa perspectiva de que a Internet é um comprimento da profecia de Yeshayáhu sobre espadas transformadas em arados."

Os planos de Kazen para o Cyberspace são ambiciosos, mas ele é cauteloso naquilo que coloca online. Dentre os muitos documentos conectados ao seu site, um conjunto está ausente de maneira notável: o próprio alicerce do Judaísmo, os primeiros Cinco Livros da Bíblia. Quando lhe pergunto o por quê, ele fica sério e explica que embora ele disponibilize numerosos comentários bíblicos "a Bíblia em si não está ali". Comercializá-la na Internet, dizer que ‘aqui está uma versão autêntica da Bíblia fornecida pelo Movimento’ – esta é uma responsabilidade muito, muito grande.
Qualquer um pode entrar numa livraria e comprar uma Bíblia do Rei James. Eles não precisam de mim para isso. Prefiro fornecer uma sinopse e fazer com que a pessoa vá à sinagoga e participe.
"E que tal a possibilidade de colocar a sinagoga na Web?" pergunto. "Uma sinagoga pode ser duplicada online?" Esta parece uma questão crucial. Para as religiões se mudarem completamente para o Cyberspace, terão de levar seus rituais e o senso de comunidade com elas.

"Pode ser duplicada" – responde Kazen – "mas somente até certo ponto. Existem limitações. Por exemplo, na vida judaica, o homem acima da idade de treze anos tem de colocar tefilin [caixas de couro contendo rolos com passagens da Torá] todos os dias da semana, exceto Shabat, Yom Tov e chol hamoed,conforme o costume. É um verdadeiro ato físico. Você está pegando uma caixa de couro, e está colocando-a sobre seu braço, e a está enrolando em seu braço e colocando-se sobre sua cabeça e diz uma prece específica. Sim, a prece em si pode ser lida na Net. Porém o ato em si precisa ser feito por uma pessoa física. O conceito do Judaísmo em geral é usar o material – o couro animal, o pelo do cordeiro transformado em lã – para que haja uma real participação em todos os quatro níveis diferentes: o inanimado, a flora, a fauna e o ser humano – todos em um só aspecto.

"Posso fazer uma refeição virtual?" continua ele. "Quanto tempo vai me sustentar? Posso ler uma receita, mas ainda preciso sair e comprar os ovos, comprar o açúcar."

Pergunto a Kazen se existem outros aspectos do Judaísmo que não possam ser transferíveis para a internet.

"Bem, não se pode ter um minyan online. Não se pode ter um quorum de dez pessoas."
Não entendo esta parte. Não consigo compreender por que dez homens judeus não podem se encontrar em tempo real numa sala de chat e assim constituírem um minyan – o número mínimo, segundo a tradição judaica, para rezar em conjunto.

"Isso é muito interessante. Por que não? Porque o quorum de dez pessoas exige dez corpos físicos. Cada indivíduo tem uma centelha de Divindade dentro de si, que é a alma. Isso exige o quorum de dez pessoas, que refletem os dez níveis diferente de Divindade. Portanto, você pode ter nove pessoas que poderiam não ser religiosas e uma que é religiosa. Não importa o nível de religiosidade deles, desde que sejam judeus."

"E do sexo masculino" – completa Daisy.

"Sim, acima dos treze anos. Porém o conceito é que se você tem aquelas dez pessoas, está atraindo um alto nível de Divindade que lhes permitirá recitar a prece de Kadish."

"Mas por que" – pergunto – "isso não pode ocorrer numa sala de bate-papo com dez homens?"
"Porque não há a presença física. Não vemos necessariamente a realidade espiritual daquilo que está acontecendo naquela hora, mas determinadas coisas têm de ser feitas com pessoas físicas, assim como a comida tem de ser ingerida por pessoas físicas."

"Então você não poderia ter um bar mitsvá" – enfatiza Daisy.

"Certo. E não se esqueça, o relógio pára ao final de seis dias. Há um conceito no Judaísmo chamado Shabat. O dia na semana o qual saímos de nosso dia-a-dia e caminhamos numa ilha do tempo completamente diversa. Este é um aspecto que não pode ser manuseado na Internet."

Apesar disso, Kazen e outros de Chabad têm altas esperanças para a Internet. "Judaísmo e a Moderna tecnologia", um ensaio colocado no site e baseado em palestras proferidas por Rabi Schneerson no final dos anos 1960 e início dos 1980, faz esta firme declaração:

O avanço no entendimento científico está cada vez mais revelando a unidade inerente no universo, como expressa nas forças da natureza.

Estar consciente disso pode servir como preparação e prólogo para a Era de Mashiach, pois naquele tempo a Unidade simples, não-composta, do Criador se tornará evidente.

O Rebe está falando aqui especificamente sobre rádio e televisão, porém não há dúvidas de que ele teria estendido estas idéias à comunicação via computador.

Kazen confirma isso. "Este conceito de unidade inerente no mundo" – diz ele – "é fortemente demonstrado pela Internet, talvez mais ainda que através do rádio e TV. Como há um efeito entre eu e uma pessoa que está em Beijing, ou entre eu e alguém na Antártida, e é uma comunicação instantânea, o que a lição está nos mostrando?"

"A tecnologia conectada ao computador então é uma tecnologia sagrada"

pergunto eu – "no sentido em que está servindo para um propósito sagrado?"

O rosto de Kazen se ilumina como se eu tivesse dito a palavra mágica. "Sim. A Humanidade no passado era glorificada pela guerra. Todos os monumentos que você vê estão glorificando a guerra. E a profecia de Yeshayáhu é que não haverá mais guerra, que as espadas serão transformadas em arados. Então, como o mundo chegará a isso?

"Minha pergunta é, de maneira bem humorada: a TCP/IP [o protocolo dominante de comunicações, a Internet, é um outro nome para D’us? Porque na essência, esta é uma forma que estamos encontrando para unir as pessoas. Sim, há os prós e os contras. Mas em última análise todos desempenharão uma parte da ação. Portanto sim, a meu ver, este é um meio para um fim, a Era de Mashiach."

Kazen respira fundo, depois prossegue. "Vamos aprender com a lição que tivemos há 50 anos. O país com a tecnologia mais avançada do mundo, ao não colocar a Divindade dentro de si mesmo, criou uma nação que aniquilou milhões de pessoas. Esperamos que a Internet, que é nossa mais nova tecnologia, junte a humanidade para um propósito melhor, e não sofra abusos. Há um conceito de bem e luz no mundo, e esta é uma tecnologia que pode ser o meio rumo àquele fim."

Com esta mensagem inspiradora, concluímos nossa conversa formal e saímos da sala, passando novamente por aqueles quatro lances de escadas. Lá fora, Kazen acende um cigarro e inala como um homem que dá sua última baforada. Ele nos leva até o fim do quarteirão, na entrada principal do 770, e ao longo de um corredor. À nossa direita, vemos fileiras de jovens debruçados sobre seus livros. Ao final da passagem, entramos num aposento alinhado com mesas de telefones e um enorme painel telefônico. Este é um ancestral da sala da Web de Kazen; o centro de comando da mídia de onde os Lubavitchers em todo o mundo recebiam os discursos do Rebe via telefone. Lembro-me agora que, quando o Rebe chegou aos noventa anos, foram distribuídos bips a todos seus seguidores para avisá-los sempre que ele saía de seus aposentos particulares para rezar.

Estas são, eu pensei, pessoas muito plugadas.

Finalmente, Kazen nos leva até a biblioteca do Rebe, um andar acima. A sala respira história sagrada. Em redomas de vidro, lembranças do passado dos Rebes – fotos, documentos, cartas, Bíblias – estão preservadas com muito cuidado. Numa estante encontrei um passaporte gasto pela idade e pelo uso, evidência do legado da Diáspora, a dispersão global dos judeus. Ocorreu-me, olhando através do vidro, que de uma forma virtual a Internet tem estimulado, ao tornar possível uma convergência de judeus no Cyberspace em todo o mundo, a reversão da Diáspora da mesma maneira que teve a criação de Israel.

Passo minha mão pela superfície polida de um velho carrilhão que marca a lua segundo o calendário hebraico. A madeira responde calorosamente aos meus dedos – tão diferente, eu penso, tão mais generosa aos meus sentidos que o relógio que marca os minutos na tela do meu monitor. Um pouco depois, pressiono minha mão na mão de Kazen, despedindo-me. Sua mão é ainda mais calorosa que a madeira do carrilhão. Ao tocar sua mão, eu sei que estou tocando uma centelha da realidade viva por trás do Cyberspace.


Nota
1 – Digerati
Quem são os "digerati" e por que são a "elite cibernética"? São os criadores, pensadores e escritores que têm enorme influência sobre a revolução emergente na comunicação. Não estão na fronteira, eles são a fronteira.
Os digerati conectam pessoas, adaptam-se rapidamente. Gostam de conversar com seus iguais porque isso os força a chegar ao topo de sua forma e explicar as mais interessantes idéias novas. Eles dão um ao outro permissão para serem notáveis. São aqueles com quem eles desejam conversar a respeito das coisas sobre as quais estão empolgados porque querem ver se elas funcionam. Fazem uns aos outros perguntas que estão fazendo a si mesmos, e isso é parte daquilo que faz esta elite online funcionar.

  Personalidades:
Rabino Kazen:
Um visionário na Web
     
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