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  Crise Financeira na visão de Cohelet
  Credo – Outubro de 2008
Pelo rabino chefe da Inglaterra, Professor Jonathan Sacks
 

Tempos difíceis, como a atual crise financeira, podem ser tempos de transformação. Sem minimizar o sofrimento, ele pode ser uma experiência que muda a vida se deixarmos que abra nossos olhos para aquilo que realmente importa, a verdadeira fonte de felicidade.

Esta é a mensagem do livro que os judeu leram semana passada como parte da Festa dos Tabernáculos: Eclesíastes, ou Cohelet em hebraico.

Cohelet contém uma das prosas mais refinadas na Bíblia. Suas frases passaram a fazer parte do idioma: “Há um tempo para todas as coisas”, “A corrida não é para o mais rápido”, e a mais famosa “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade.”

Cohelet é a primeira vítima da doença que chamamos de afluência. Cohelet tem tudo; casas, palácios, servos, jardins. É, segundo ele próprio, o homem mais rico sobre a terra. Porém isso não lhe traz felicidade. Quanto mais tem, mais inútil tudo lhe parece.

Para muitos o livro parece ser obscuro, até mesmo contraditório. Às vezes Cohelet parece triste, outras vezes alegre. É capaz de odiar a vida e amar a vida. Sua prosa parece inconclusiva. É difícil dizer o que está dizendo a obra como um todo.

O problema está na tradução da palavra chave que é o tema do livro, hevel. A Biblia do Rei James a traduz como “vaidade”. Outras traduções falam em “sem sentido, vazio, fútil, vão”. Nenhuma dessas palavras capta o verdadeiro sentido da palavra, e como resultado deixamos de entender o real significado do livro.

Em hebraico, todas as palavras relacionadas com alma, espírito, força da vida, têm a ver com o ato de respirar. O mesmo ocorre com a palavra hevel. Significa uma respiracao curta, superficial. Esta é a ideia fundamental de Cohelet. A vida é vulnerável, frágil, breve. É uma mera respiração fugaz, porém é tudo que temos. Sempre que leio Cohelet, penso nas palavras do Rei Lear ao final da peça de Shakespeare, quando ele segura nos braços sua filha Cordélia morta: “Por que deveria um cão, um cavalo, um rato, ter vida/ E você não respirar?” Cohelet é sobre mortalidade.

A princípio, o conhecimento de que ele morrerá ameaça roubar Cohelet de todo o significado. De que valem a riqueza, o poder, a sabedoria e o sucesso se um dia não estaremos mais aqui para desfrutá-los? Nus viemos ao mundo e nus o deixaremos. Nada dura. Todos sofremos o mesmo destino. Bem ou mal, todos morreremos.

Porém Cohelet não deixa por aí. A certa altura ele tem uma percepção que muda sua vida. O que aconteceria se não morrêssemos, se fôssemos realmente imortais? Jamais sentiríamos júbilo ou entusiasmo. Não sentiríamos necessidade de ter filhos, ou de deixar uma marca no mundo. Nem sequer amaríamos. Não sentindo falta de nada, nada sentiríamos.

Um livro que jamais terminou não seria um bom livro. A música que continuasse para sempre não seria uma sinfonia. Todo o significado ocorre dentro de uma estrutura. Nascimento e morte são a estrutura que dá sentido à vida.

Compreendendo isto, todo o esquema de valores de Cohelet é transformado. Ele agora sabe que a felicidade está nas pequenas coisas, como o trabalho: “O sono daquele que trabalha é doce.” E no amor.

“Desfrute a vida com sua mulher, a quem você ama.” E júbilo: “Vá, coma seu alimento com alegria, e beba seu vinho com um coração alegre.”

Cohelet de repente percebe que durante todo o tempo em que estava buscando a riqueza e as posses, estava procurando substitutos para a vida, em vez de celebrar a própria vida. Ele agora sabe que “Aquele que ama o dinheiro jamais tem dinheiro suficiente.” Ele também sabe que “não há nada melhor para uma pessoa que ser feliz e fazer o bem enquanto está viva.” Como Bill Gates e Warren Buffet, ele sabe que o melhor a fazer com a fortuna é distribuí-la.

Cohelet não significa achar a vida sem sentido, fútil, mera vaidade. Este é um erro de tradução. Cohelet acha a vida curta. A perspectiva da morte ameaça roubá-lo de toda a felicidade, até que ele percebe que a mortalidade é a própria condição de nossa felicidade. Como a vida é curta, todo momento é precioso.

Este é o conhecimento que a maioria de nós somente aprende por meio de sofrimento, crise ou perda. Trabalho, amor, a vida em si; estas são as fontes de alegria. O resto é enfeite.

A felicidade consiste em ser, não em ter.

       
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