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Pergunta:
Esta pergunta pode parecer tola. Sou mãe de dois filhos autistas.
Eu os amo profundamente, mas como qualquer pai de crianças especiais
poderia lhe dizer, criá-los é um desafio e muitas vezes
traz desapontamento, mágoa e frustração. Ouvi dizer
certa vez que a Cabalá considera crianças autistas como
estando num nível espiritual mais elevado, quase como anjos. Achei
essa ideia extremamente reconfortante, e isso me deu força para
seguir em frente. Estou tentando descobrir um pouco mais sobre este conceito
– existe quaqluer menção ou alusão sobre autismo
na Torá ou em qualquer outro texto sagrado?
Resposta:
Toda vez que encontro um pai ou guardião cuidando de alguém
com necessidades especiais, sinto reverência pela sua dedicação
e amor. Ler seu e-mail com o prefácio “Esta pergunta pode
parecer tola…” também é inspirador. Se a sua
pergunta é tola, então o que devo dizer sobre os meus problemas
que imaginei serem tão importantes?
Você
pergunta sobre uma fonte na Cabalá declarando que as almas dessas
crianças de certa forma são especiais. Na verdade, existe
essa declaração no Zohar. Porém, como ocorre com
a maior parte do Zohar, não é algo prontamente compreensível,
portanto espero que você esteja preparada para um preâmbulo
e algumas explicações.
Na leitura Emor da Torá (que parece ser a semana na qual você
faz essa pergunta), encontramos as leis dos cohanim que têm algumas
incapacidades e portanto são desqualificados para o serviço
no Templo Sagrado. O versículo declara “Qualquer homem entre
os filhos de Aharon, o Cohen, que tenha um defeito não deve se
aproximar para fazer as oferendas de fogo a D’us” (Vayicrá
21:21).
Como é possível que alguém que nada fez de errado
seja barrado de servir no Templo Sagrado apenas por causa de um “defeito”?
O D’us que nos ensinou a olhar além das aparências
e tratar a todos com igual amor, o mesmo D’us que criou este cohen
com essa incapacidade, nos diz “Nada disso, por causa dessa falha,
ele não pode Me servir no Templo Sagrado”?!
Portanto eis o que está escrito no sagrado Zohar:1
Rabi Shimon inicia a discussão com o versículo: “Somente
ele não deve ir ao Véu, nem chegar perto do altar, porque
ele tem um defeito; para que não profane Meus locais sagrados;
pois Eu, D’us, os santifico” (Vayicrá 21:23). “Ele
não deve ir até o Véu.” Venham e olhem: na
hora em que o rio está fluindo e transborda, e cria as almas, o
aspecto feminino acima concebe. E eles todos habitam numa sala…
Quando a lua é considerada defeituosa pelo mesmo aspecto da serpente
malvada, como todas as almas que são criadas, embora elas fossem
todas puras e sagradas, são defeituosas. Como elas emergiram numa
época defectiva, qualquer lugar a que essas almas cheguem [i.e.,
corpos] são esmagados, e sofrem dor e aflições. O
Eterno, bendito seja, cuida daqueles que estão alquebrados, embora
suas almas estejam tristes em vez de jubilosas.
O segredo é que elas permanecem como eram acima. Embora o corpo
seja defeituoso, a alma no interior permanece a mesma que era lá
em cima. O estado de uma se assemelha ao outro. Portanto, elas devem ser
renovadas como a lua, como está escrito (Yeshayáhu 66:23):
“E ocorrerá que a cada lua nova, e todo Shabat, toda a carne
virá se curvar ao solo perante Mim, diz D’us.” Certamente
“toda a carne”, pois elas precisam se renovar juntamente com
a lua.
… Estes justos são os constantes companheiros da lua e têm
defeitos idênticos… E “D’us está perto
deles, que são de um coração partido”2 –
ou seja, aqueles que sofrem do mesmo defeito que a luz, aqueles que estão
sempre perto dela. “E Ele salva aqueles que têm um espirituo
contrito,”3 dando-lhes uma porção da vida… porque
eles que sofreram com ela também serão renovados com ela.
… Aqueles defeitos dos quais os justos sofrem são chamados
“sofrimentos de amor”, porque são causados pelo amor
e não pelo próprio homem… Feliz é sua porção
neste mundo e no Mundo Vindouro…
Como você pode ver, as palavras são bastante esotéricas.
A investida delas, no entanto, é bastante simples: há almas
nascidas no mundo que são inteiras no interior, porém defeituosas
na parte externa. O motivo não é por alguma punição,
mas pelo contrário, por amor. Para entender melhor, você
precisa de um pouco mais de explicação:
Você precisa saber que a lua é uma referência à
presença imanente de D’us no mundo, também conhecida
como Shechiná. Precisa saber também que a Shechiná,
como a lua, diminui e aumenta, pois a presença de D’us à
vezes reluz brilhantemente no mundo, e outras vezes está sombreada
e obscurecida. Algumas almas são concebidas (não na terra,
mas acima) na parte crescente do ciclo. Essas almas entram no mundo com
um corpo forte e deslizam felizes através da vida. Outras almas
são concebidas no escurecimento da Shechiná.
Rabi Shimon nos diz que essas almas partilham o sofrimento da Shechiná
– e é por isso que ela é sua companheira constante.
Por fim, este ciclo da Shechiná resolve numa plenitude duradoura
que a Presença de D’us vai brilhar numa intensidade suprema
neste mundo, e essas almas “serão também renovadas
com ela.”
Até agora, algumas respostas. Mas ainda permanecem muitos enigmas:
por que a Shechiná deve sofrer? E por que essas almas devem sofrer
junto com ela?
Sobre esse sofrimento da Shechiná, Rabi Yitschak Luria, o Ari,
fornece um ensinamento profundo e esclarecedor. Ele explicou que tudo
em nosso mundo é vitalizado e sustentado na existência por
uma centelha divina. Quanto mais elevada a centelha, afirmou ele, mais
baixo ela cai. A luz divina mais intensa, portanto, é encontrada
nos cantos mais escuros do nosso mundo. A Shechiná é tanto
a luz da presença de D’us como a mãe de todas as almas.
A função da alma humana é resgatar essas centelhas
caídas de sua escuridão para que possam ser reconectadas
à Luz Infinita. A Shechiná sofre quando desce às
trevas para realizar este resgate. Este, diz o Ari, é “o
segredo do exílio da Shechiná,” como declara o Talmud,
“Quando o povo judeu vai ao exílio, a Shechiná vai
com eles.”4
O Tsemach Tsedec usa esse ensinamento do Ari para explicar as palavras
do Zohar acima. Geralmente, escreve ele, há duas maneiras de resgatar
as centelhas das forças das trevas. Ele iguala a tarefa espiritual
das almas puras a um exército que engaja outro em batalha. No final,
os vencedores subjugam o inimigo mas não o erradicam completamente.
Então, continua o Tsemac Tsedec, existem aqueles nascidos com uma
falha – embora exterior, pois a alma continua íntegra. Sua
tarefa é erradicar totalmente o mal para que este deixe de existir.
Porém para fazê-lo, eles devem entrar em contato direto com
aquela escuridão, São como aquelas forças especiais
enviadas em camuflagem para levar o inimigo até uma emboscada.
Obviamente estes soldados não têm as vestes exteriores de
um uniforme militar, afinal, algum lutador inteligente seguiria alguém
que surge como uma ameaça até uma emboscada? Porém
no interior, por dentro, eles formam a tropa de elite, encarregada de
uma missão especial.
Outra maneira de dizer isto: a fim de batalhar face a face com as trevas,
a alma precida ter um pouco daquela escuridão dentro de si. Porém
apenas externamente – a fim de que essa própria escuridão
possa ser redimida.
Como isso se aplica à criança com necessidades especiais?
Certamente todos nós vimos claramente como essas crianças
– que até recentemente eram praticamente alienadas da sociedade
colocadas em instituições reservadas – têm nos
dado tanto agora que permitimos que participem na sociedade. Uma escola
que ajuda a encaixar uma criança assim está prestando um
grande serviço a todos os seus alunos, ensinando-lhes compaixão
e compreensão sobre os outros. Uma comunidade que ajuda sente-se
integrada e unida em seu ato de carinho. Talvez você conheça
os Círculos de Amizade que têm sido criados para ajudar nesse
entrosamento. Os diretores me disseram que quem mais se beneficia são
os adolescentes que se oferecem como voluntários – e terminam
aprendendo tanto com essas almas especiais. Como pai ou mãe, ainda
é difícil, mas a longo prazo você certamente tem muito
a ganhar.
Você pergunta se os seus filhos podem ser comparados a anjos, mas
na verdade eles detêm uma posição muito mais elevada.
O restante de nós serve como soldados rasos no exército
de D’us, o que é uma posição mais alta que
os anjos. Porém seus filhos são a tropa de elite, completando
uma tarefa especial neste mundo. Seus desafios certamente não são
falhas deles, e nem suas. Pelo contrário, você recebeu o
grande mérito de trazer essas duas almas de elite ao mundo, nutrindo-as
e cuidando delas enquanto completam sua missão elevada. De maneira
alguma esta é uma tarefa fácil, mas D’us somente confia
estas almas nas mãos daqueles que Ele considera mais apropriados.
Falando sobre os Cohanim, e sendo eu próprio um Cohen, quero abençoar
você com muitos nachas dos seus filhos, e com a força para
enfrentar o desafio e o privilégio com os quais D’us lhes
presenteou.
Notas:
1 – Vayeshev 181
2 – Salmos 34:19
3 – Ibid.
4 – Meguilah 29 a
5 – Derech Mitzvotecha |