O Cohen Silencioso: Silêncio além do sofrimento  
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  Por Simon Jacobson
 

Há alguns anos, num Seder de Pêssach, eu estava sentado perto de um judeu francês que, no decorrer de sua busca espiritual de toda uma vida, tinha descoberto o Zen.

Incrivelmente vigoroso e bem-humorado aos 70 anos, Julian se auto-proclamava um ateu cuja crença fundamental era na natureza, uma crença apoiada por muitos anos seguindo os caminhos da vida americana nativa em reservas indígenas no Canadá.

Eu senti que Julian estava resistindo a todas as tentativas de ser engajado nas discussões à mesa sobre o Judaísmo. Quando começamos a conversar, ele partilhou comigo – quase que para demonstrar sua antipatia a tudo que fosse judaico – que estava sempre absorvido pela filosofia Zen, especialmente seus Koans (exercícios teóricos mentais). Havia, no entanto, dois Koans que fugiam a sua compreensão:

Koan nš 1: “Uma mão entra na água, mas a manga da roupa não se molha. Como?”

Koan nš 2: “Um touro colide com uma janela. Sua cabeça, corpo e pernas continuam entrando vidro adentro, mas não sua cauda. Por quê?”

À medida que a noite avançava, e nós dois tomamos vinho de Pêssach (ele mais do que eu), senti uma oportunidade de responder ao dilema de Julian. Perguntei a ele se estava familiarizado com o mais original e importante de todos os Koans. A palavra hebraica “Kohen” significa sacerdote, referindo-se aos sacerdotes que serviam no Templo de Jerusalém.

No Templo Sagrado, havia dois tipos de serviço: o dos cohanim e o dos levitas. Os levitas serviam a D'us através dos cânticos, cada dia compondo uma nova melodia para louvar a D'us. Os cohanim serviam em silêncio. Por maior que fosse o poder da canção, não pode ser comparada ao poder do silêncio. A quietude do serviço dos cohanim acessava a dimensão mais íntima do Divino, cuja intensidade não pode ser contida nem mesmo na mais bela melodia.

Sob a nossa limitada perspectiva, o som é mais alto que o silêncio. Sob a perspectiva da verdadeira realidade, o silêncio é mais poderoso que o som. Não porque D'us está mais próximo do silêncio do que está do som, mas porque o silêncio nos proporciona a capacidade de nos elevar acima de nossa limitada percepção e sentidos para vivenciar o sublime.

Agora, disse eu a Julian, vamos voltar ao seu primeiro Koan. “Uma mão entra na água, mas a manga da roupa não se molha. Como?” A água pode ficar molhada? Não, porque a água é molhada. Sob a nossa limitada perspectiva, uma mão e uma manga secas que entram na água ficam molhadas, porque seco e molhado são dois estados diferentes. A realidade, no entanto, não é seca nem molhada e portanto inclui e integra ambas. Quando nos sublimamos (“tevilá”, submersão num micvê, tem as mesmas letras que “bitul”, “auto-anulação” nas “águas puras do conhecimento,” quando sentimos o silêncio, então nossa manga e nosso braço e todo o ser não podem se molhar, pois somos a própria umidade. Ao seu segundo Koan: “O touro inteiro colide com a janela e a cauda não. Por quê?” Deixe-me perguntar a você: “Por que não? Por que a cauda deveria seguir?”

Um professor de Filosofia pediu aos seus alunos para escreverem uma dissertação respondendo a uma pergunta: “Por quê?” Todos os estudantes, escrevendo longos ensaios, erraram exceto dois. Um aluno recebeu um A por ter respondido “Porque sim.” O outro recebeu um A+ por ter respondido “Por que não?”

Todas as nossas questões “por que” originam-se do fato de começarmos com princípios definidos que são “dados” e portanto perguntamos “por quê?” No entanto, sob a perspectiva de D'us, aquilo que está além de todas as definições e paradoxos, qualquer questão “por quê”, e quanto a isso qualquer pergunta, é absurda. Perante D'us “por que não?” é a pergunta mais apropriada.

O touro, nosso lado agressivo, colide contra uma janela. Nós, nossa lógica, espera que tudo o mais siga batendo, incluindo a cauda. Quando a cauda não o faz, perguntamos: “Por quê?” Meu amigo, eu disse, suspenda sua lógica e fique em silêncio. E agora, “por que não?”

O francês deu um salto na cadeira. “Claro! Após todos esses anos – é claro, é claro…” Ele continuou resmungando consigo mesmo, intercalado com breves ataques de riso… “Por que não? Por que não? Por que… não?”

Ficou sentado imóvel durante algum tempo. Então olhou para mim em silêncio. Um silêncio que era mais alto que quaisquer palavras. E ele disse: “Então por que este D'us – o seu D'us – permitiu o Holocausto?”

Ele não precisou explicar mais.

Fiquei quieto. Então olhei a verdade no olho – no meu e no dele – e lhe disse: “Você acaba de acertar o maior de todos os ‘koans’. Tendo passado a vida inteira intrigado, procurando os mistérios do ‘koan’, você está incomodado pelo supremo koan, o supremo paradoxo.”

Ele inclinou-se para mais perto de mim, olhando-me nos olhos, ouvindo com a maior atenção. “Por que você está preparado para aceitar as experiências transcendentais que resultam dos paradoxos intrínsecos inerentes a todos os Koans, porém não quer aceitar o paradoxo de um D'us bom que permite o mal? Se D'us é realidade – a inteireza da realidade – não é possível que D'us transcenda nossas limitadas definições de bem e mal? Ou seja, que D'us não seja bem nem mal (na maneira que definimos os termos), nem “seco” nem “molhado” nem “sim” nem “não”, e portanto não podemos perguntar “por quê” ou nem mesmo “por que não”.

“O motivo pelo qual você – e eu, e todos, sem dúvida – agonizamos sobre este Koan é que este atinge um ponto… outros Koans são exercícios teóricos intrigantes e podem até levar a alguma verdade mais importante. Porém ao final do dia, vivemos e dormimos pacificamente sabendo que nossa lógica não compreende o som de uma mão batendo palmas, ou a mão seca na água molhada. No entanto, não podemos dormir em paz quando sabemos e sentimos a agonia de crianças inocentes sendo impiedosamente gaseificadas, suas cinzas dispersas pelo vento, seu sangue indefeso sendo absorvido pela grama do solo da Bavária.

“Este, meu amigo, é o supremo Koan. E não tenho resposta para ele. Nenhum de nós jamais terá uma resposta. Na verdade, o próprio D'us talvez não tenha uma resposta que possamos entender, e D'us, também, não dorme em paz.

Quando os romanos torturaram os maiores sábios e santos de seu tempo, fazendo-o com uma barbárie desenfreada, os anjos celestiais clamaram a D'us: ‘Esta é a Torá e esta é sua recompensa?!’ D'us não deu qualquer explicação teológica. Ele disse simplesmente: “Fiquem quietos…”

Silêncio. A única resposta.

Julian inclinou levemente a cabeça. Olhou para mim durante uma eternidade. E não pronunciou mais nenhuma palavra durante toda a note. Eu também não.

Porém antes de ir para casa ele me disse à porta: “É tão difícil. O sofrimento é tão profundo...”

Somente mais tarde eu soube que aquele judeu francês e sobrevivente do Holocausto é um Cohen, um sagrado Cohen.

       
   
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