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"Quando
aumentar o Eterno, teu D'us, o teu território, como te falou, e
disseres: comerei carne, porquanto a tua alma desejará comer carne,
com todo o desejo de tua alma poderás comer carne."
Devarim
12:20-23
"Último e primeiro Tu me criaste (Tehilim 139:5)… Se
o homem é merecedor, ele ouve: Tu és o primeiro dentre as
obras da Criação. Se ele não é merecedor,
ele ouve: A pulga te precedeu, o verme te precedeu."
Midrash
Raba, Vayicrá 14:1
Existem
aqueles que contestam a moralidade de comer carne. O que dá ao
homem o direito de consumir a carne de outra criatura? Porém o
mesmo pode ser dito sobre consumir a vida vegetal, a água ou o
oxigênio. O que dá ao ser humano o direito de devorar qualquer
criatura de D'us simplesmente para perpetuar sua própria existência?
De fato, não há tal direito natural. Quando o homem vive
apenas para sustentar e melhorar seu próprio ser, não há
justificativa em mexer com outra existência para atingir seu objetivo.
Como declarou um grande mestre chassídico: "Quando uma pessoa
caminha sem um pensamento sobre D'us em sua mente, o próprio chão
sob seus pés clama: ‘Idiota! O que o torna melhor que eu?
Com que direito pisa em mim?’" O fato de o homem ser uma forma
de vida "mais elevada" mal justifica a destruição
de criaturas não inteligentes ou inanimadas. Além disso,
segundo os ensinamentos da Cabalá, a alma dos animais, plantas
e objetos inanimados são na verdade mais elevados que a do ser
humano: pois no grande colapso do mundo primordial de Tohu os elementos
mais elevados caíram mais baixo (como as pedras mais altas num
muro que desaba caem mais longe), portanto as centelhas mais elevadas
da luz Divina foram encarnadas nas assim chamadas alas "inferiores"
do mundo físico.
O
fato de o homem ser uma forma de vida "mais elevada"
mal justifica a destruição de criaturas não
inteligentes ou inanimadas.
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O homem
tem o direito de consumir outras criaturas apenas porque, e quando, ele
serve como agente da elevação destas criaturas.
A essência espiritual de uma pedra, planta ou animal pode ser mais
elevada que a de um ser humano, mas é uma centelha estática,
destituída da capacidade de avançar na busca da criação
para se unir ao seu Criador. A crueldade do gato ou o empenho da formiga
não são falhas morais ou conquistas, nem o são a
dureza da rocha ou a doçura da maçã. O vegetal, mineral
ou animal não podem fazer o bem ou o mal – podem apenas seguir
os ditames de sua natureza. Somente ao homem foi concedido o livre arbítrio
e a capacidade de fazer melhor (ou pior, D'us não o permita) que
seu estado natural. Quando uma pessoa bebe um copo de água, come
uma fruta ou abate um boi e consome sua carne, estes são convertidos
na essência do corpo humano e na energia que o faz mover-se. Quando
alguém realiza uma ação Divina – um ato que
transcende seu eu natural e o aproxima de D'us – ele eleva os elementos
que incorporou em si mesmo, reunindo as centelhas da Divindade que eles
incorporam com sua fonte. (Também são elevadas as criações
que possibilitaram a realização da ação Divina
– o solo que nutriu a maçã, a grama que alimentou
a vaca, o cavalo que carregou a água até a cidade, e assim
por diante).
Eis aqui o significado profundo do versículo acima citado: "Quando
disseres: comerei carne, pois tua alma desejará comer carne."
Você pode expressar um desejo por carne e estar consciente apenas
da ânsia pela satisfação física que isso traz;
na verdade, porém, este é o resultado do desejo de sua alma
de comer carne – a busca de sua alma pelas centelhas de Divindade
que foram enviadas à terra para redimir.
Desejo
Existe, no entanto, uma importante diferença entre o consumo de
carne e o de outros alimentos. A diferença envolve desejo e o papel
que ele desempenha na elevação da criação.
A
licença concedida ao homem para consumir as criaturas e
criações do mundo e subjugá-las para servir
a ele não é incondicional.
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O ser
humano não pode viver sem os componentes vegetais e minerais de
sua dieta. Assim, ele é compelido a comê-los pelo mais básico
de seus desejos físicos – a preservação de
sua existência. A carne, no entanto, não é uma necessidade
mas um luxo; a vontade de comer carne não é um desejo motivado
pela necessidade, mas desejo em seu sentido mais puro – o desejo
de sentir prazer.
Em outras palavras, os animais são elevados – sua carne integrada
ao corpo humano e suas almas são feitas parceiras num ato Divino
– somente porque D'us instilou o desejo do prazer na natureza humana.
Isso significa que a elevação da carne exige uma sensibilidade
espiritual mais aguçada por parte de seu consumidor que os outros
alimentos. Quando alguém ingere um pedaço de pão
e então estuda Torá, reza ou faz caridade, o pão
contribuiu diretamente para estas ações. Para realizar estas
ações, a alma do homem deve se fundir com o corpo físico,
e o pedaço de pão foi indispensável a esta fusão.
O homem come o pão para viver; se ele vive para cumprir a vontade
de seu Criador, a conexão é completada. Porém o homem
come carne não para viver, mas para apreciar seu sabor; assim,
não é suficiente que uma pessoa viva a fim de servir a seu
Criador pela carne que come ser elevada. Ao contrário, ele deve
ser alguém para quem a própria experiência do prazer
físico é um esforço Divino, algo devotado somente
a uma finalidade Divina; uma pessoa para quem a satisfação
física gerada por uma refeição saborosa se traduz
num entendimento mais profundo de Torá, um fervor maior na prece,
e um sorriso mais gentil para acompanhar a moeda colocada na palma da
mão de um mendigo.1
A
elevação da carne exige uma sensibilidade espiritual
mais aguçada por parte de seu consumidor que os outros
alimentos
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Assim,
a Torá diz: "Quando o Eterno teu D'us ampliar tuas fronteiras,
como Ele te prometeu… poderás comer carne segundo o desejo
de tua alma." O Talmud deriva daí que, "originalmente,
eles estavam proibidos de comer "carne pelo desejo" (bassar
taava); foi somente depois que eles entraram na Terra [de Israel] que
tiveram permissão de comer carne pelo desejo".2
Para a primeira geração da existência de Israel como
um povo – desde o momento em que receberam a Torá e construíram
o Santuário no Deserto do Sinai até se estabelecerem na
Terra Santa – a única carne que tinham permissão de
ingerir era a carne dos corbanot, os sacrifícios de animais oferecidos
a D'us no Santuário. O consumo desta carne era uma mitsvá,
o que significa que sua elevação foi conseguida pelo fato
de que comê-la constitui um cumprimento direto de um mandamento
Divino. No entanto, eles não tinham a capacidade de elevar a "carne
do desejo" – a carne ingerida com o propósito de proporcionar
prazer a seu consumidor. Portanto, o consumo de tal carne era proibido.
De fato, os filhos de Israel foram admoestados e punidos por expressarem
um desejo de comer carne, como é relatado no capítulo 11
do Livro Bamidbar.
Foi somente depois que D'us ampliou suas fronteiras, garantindo-lhes um
mandato de tornar "santa" um adjetivo para "terra",
que eles puderam santificar este aspecto mais corpóreo da vida
humana.
(O que ocorreu na História Judaica foi também o caso na
história da humanidade. Originalmente, o homem tinha permissão
de comer "toda erva que produzisse sementes na face da terra, e de
cada árvore na qual houvesse um fruto com semente" (Bereshit
1:29). Foi somente após o Dilúvio, quando o mundo estava
imbuído de um maior potencial espiritual, que D'us disse a Nôach
que "toda coisa viva que se mova será alimento para ti.")
Similarmente, nossos Sábios declararam que "Uma pessoa grosseira
está proibida de comer carne" (Talmud, Pessachim 49b). A licença
concedida ao homem para consumir as criaturas e criações
do mundo e subjugá-las para servir a ele não é incondicional.
É obrigatório que ele tenha sensibilidade para com a essência
espiritual das criações de D'us, e seu compromisso de servir
a elas, tornando-as partes integrantes de sua vida santificada.
É preciso ser um indivíduo com horizontes espirituais amplos
para valorizar adequadamente um bife.
1 – Veja o Talmud, Yoma 76b; ibid. Bava Kama 72a; Tanya, cap. 7. Pão
e carne são empregados aqui como protótipos da necessidade
e luxo; neste contexto, uma torta de creme ou um iate seriam uma forma de
carne, ao passo que um pedaço de carne ingerido para manter a alma
e o corpo juntos cairiam sob a categoria de pão.
2 – Rabi Yishmael, citado pelo Talmud em Chulin 16b. Rabi Akiva (ibid.
17a) interpreta o versículo de modo diferente, entendendo as palavras
"quando o Eterno teu D'us ampliar tuas fronteiras" não
como uma qualificação de "poderás comer a carne
que tua alma deseja" mas daquilo que a Torá declara logo em
seguida: "Abaterás teu rebanho que D'us te deu, pois Eu te ordenei."
Assim, segundo Rabi Akiva, não apenas era "a carne por desejo"
permitida no deserto, era até mesmo permitida sem a shechitá
(o abate segundo a Halachá), ao passo que toda a carne comida depois
da entrada dos israelitas na Terra Santa exige a shechitá.
No entanto, o mais profundo significado da lei que Rabi Akiva deriva destes
versículos é idêntico àquele da lei derivado
por Rabi Yishmael. Shechitá significa "extrair" (Talmud,
Kidushin 82a); o abate de um animal de acordo com as leis divinamente ordenadas
da shechitá é o que possibilita sua elevação
– a extração de um animal de seu estado animalesco para
o reino de uma vida consagrada ao serviço do Criador. No deserto,
a shechitá estava limitada aos animais oferecidos no Santuário,
pois apenas estes podiam ser "extraídos" da maneira que
a shechitá torna possível. A única diferença
nas opiniões de Rabi Yishmael e Rabi Akiva é que Rabi Yishmael
declara que como a total elevação da carne do desejo não
foi possível no deserto, seu consumo era proibido, ao passo que Rabi
Akiva afirma que mesmo assim era permitido, pois uma elevação
menor podia ser atingida. |