A capacidade de questionar  
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  Por Sara Esther Crispe
 

Não há palavras suficientes para descrever o mal, não há imagens gráficas, não há uma imaginação suficientemente doentia para descrever aquilo que nossos avós, irmãos e irmãs, filhos e filhas, bebês e crianças ainda não-nascidas suportaram nas garras dos seus assassinos.
Seis milhões de judeus foram assassinados por um motivo e um único motivo. Porque eram judeus. Para nossos inimigos, não importava se o judeu era uma pessoa assimilada ou muito religiosa. Um judeu era um judeu.

Nossos inimigos conseguiram arrancar barbas, torcer a pele, empunhar armas, arrancar dentes e gaseificar corpos. Porém não conseguiram penetrar nas mentes, corações, almas e espíritos. A neshamá judaica nunca foi diminuída, apenas enfraquecida.


A cada ano que passa, devemos relembrar o horror, e como o nosso povo morreu. Porém o mais importante, devemos nos lembrar como eles viveram.

Porém o mais notável, talvez miraculoso, é que havia judeus que se apegavam à Torá – o código moral e legal que tem orientado nossa vida desde o Sinai – durante toda a sua provação. Nos guetos, nos campos de concentração, nas marchas rumo à morte, eles continuaram a consultar a Torá em busca de orientação, fazer perguntas aos seus rabinos e líderes espirituais. Do prático ao moral e ao filosófico, as perguntas demonstram a fé que aqueles mártires tinham no seu Criador, e a que ponto desejavam cumprir Sua vontade.

A maioria das perguntas e respostas nunca foi registrada, e sobre o que elas eram, praticamente tudo isso ficou perdido nos escombros e nas cinzas. Felizmente, alguns preciosos volumes sobreviveram, e são um testemunho daquilo que nosso povo tolerou. [Uma dessas obras é a Responsa do Holocausto, de Rabi Ephraim Oshry.]


Soldados alemães atormentando judeus - Olkusz, sul da Polônia
(31 de julho de 1940)

Estes judeus se preocupavam em saber o que deveriam ou não fazer, segundo a Torá. Quando o mundo não fazia mais sentido, eles ainda procuravam certificar-se de que suas ações, palavras e pensamentos eram puros e sagrados. Quando o mundo ignorou D’us e Seus mandamentos, eles determinaram que não o fariam.

Ao ler estas perguntas e respostas, a pessoa fica abalada pela sensibilidade, o carinho e a consideração sobre cada uma. Mas talvez ainda mais notável que as respostas em si seja o próprio fato de que as perguntas nunca foram feitas, e a maneira pela qual estas almas preciosas parecem não ver nada de "heróico" no fato de as estarem fazendo, considerando-se simplesmente judeus vivendo como judeus.

Uma mulher no gueto que tinha acabado de dar à luz queria saber se poderia circuncidar seu bebê antes do oitavo dia, pois ela temia que ele não vivesse sequer uma semana. Esta mãe amorosa desejava assegurar que pelo menos ele morreria como um judeu circuncidado.

As pessoas perguntavam se deveriam ou não recitar bênçãos sobre os alimentos quando a comida não era casher, ou se poderiam recitar as preces matinais antes do nascer do sol, pois esta seria a única hora em que não seriam notadas.

Um homem muito doente foi avisado que estava fraco demais para jejuar em Yom Kipur, e portanto proibido de fazê-lo segundo a Lei da Torá. Ele implorou para saber se mesmo assim poderia abster-se de comer. Embora tivesse sido não-observante durante toda a vida, ele queria morrer sabendo que tinha jejuado em seu último Yom Kipur.

Judeus do Gueto de Lublin sendo levados aos trens
para serem deportados para Sobibor, o campo da morte (1942)

Um pai queria saber se poderia salvar seu único filho, selecionado para a morte certa, por meio de suborno, sabendo que caso seu filho fosse salvo, outro morreria em seu lugar.

Uma mãe perguntou se poderia matar seu bebê de maneira indolor, pois no dia seguinte eles viriam pegar todas as crianças, e talvez atirassem sua filha de três meses de um telhado ou então diretamente no fogo.

Havia judeus que perguntavam as frases certas, e depois praticavam
cuidadosamente a bênção que é recitada quando alguém está sendo assassinado al kidush Hashem, pela santificação do nome de D’us.

Estas questões não foram respondidas com base em opiniões ou sentimentos pessoais. Estes judeus queriam saber o que a lei da Torá tinha a dizer sobre estes temas, e era obrigação dos rabinos encontrar as respostas. Esta não era a primeira vez que estas perguntas tinham sido feitas ou respondidas. Somos um povo que sabe muito sobre sofrimento e perseguição. E somos um povo que sempre quis fazer aquilo que é certo, o que é sagrado, independentemente das circunstâncias.

A cada ano que passa, devemos relembrar o horror, e como o nosso povo morreu. Porém o mais importante, devemos nos lembrar como eles viveram. E ao fazê-lo, honramos a dignidade, o poder e a fé que estes judeus tiveram. A coragem da fé é muito mais poderosa do que a covardia do ódio.

Nossos inimigos tentaram nos tornar untermenschen – sub-humanos. Tentaram nos aniquilar, livrar o mundo dos judeus. Mas eles não sabiam com quem estavam lidando. Não sabiam o que significa ser judeu. Pois o judeu não é aquele que meramente se esforça para ser humano. O judeu é aquele que se esforça para ser Divino. E isso nunca, nunca, pode ser destruído.


Sara Esther Crispe é escritora, conferencista inspirada e mãe de quatro filhos. Ela e o marido, Eabi Asher Crispe, atualmente são eruditos-residentes no Chabad do Sudoeste da Flórida.
       
   
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