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À primeira
vista a resposta parece simples. Afinal, não recebemos a Torá
exatamente porque os anjos não podem pecar? Como Moshê retorquiu
em seu argumento vencedor aos anjos durante seu debate épico no
céu sobre quem deveria receber a Torá. “Está
escrito na Torá: ‘Não matarás.’ –
‘Não cometerás adultério,’ – ‘Não
roubarás.’” Moshê disse: “Há inveja
no meio de vocês? Vocês têm uma má inclinação?!
Obviamente a Torá não é para vocês.”1
Em outras palavras, somente o homem foi dotado com a inclinação
tanto para o bem quanto para o mal. E somente o homem recebeu o livre
arbítrio para escolher um dos dois. Um anjo, por outro lado, não
tem má inclinação e portanto não tem livre
arbítrio. Isso poderia dar a entender que um anjo é uma
espécie de robô, que não pode se rebelar nem pecar.
Até o exemplo frequentemente citado do Satã como um anjo
expulso é um grosseiro mal-entendido. Satã é meramente
o nome de um anjo cuja tarefa divinamente designada é seduzir as
pessoas ao pecado. Este anjo é também o promotor que faz
as acusações perante a corte celestial contra aqueles que
sucumbem às suas seduções engenhosas. A palavra satã
simplesmente significa promotor em hebraico. Se a corte Celestial decide
que está na hora de alguém morrer, então o Satã
é o enviado para tirar sua vida. De fato, o Talmud nos diz que
“Satã, o anseio de fazer o mal, e o Anjo da Morte são
um só.”2 Todos esses títulos são simplesmente
múltiplas descrições de cargo para um anjo. Um anjo
cumprindo seu dever divino dificilmente está em conflito com seu
próprio Criador.3
Tudo isso, no entanto, é aparentemente contradito pelo versículo
em Job que declara: "Um mortal pode ser mais justo que D'us, ou pode
um homem ser mais puro que seu Criador? Veja, Ele não confia em
Seus servos e Ele lança censura sobre Seus anjos."4
E dizemos na liturgia de Yom Kipur:
"Os anjos estão desgostosos, eles estão invadidos pelo
medo e tremendo enquanto proclamam: Vejam o Dia do Julgamento! Pois todas
as hostes do céu são levadas a julgamento. Eles não
serão inocentes aos Teus olhos."
Essas duas citações implicam claramente que apesar daquilo
que dissemos, os anjos de alguma forma conseguem pecar até sem
ter uma má inclinação, e são julgados em Yom
Kipur. Além disso, encontramos vários exemplos no Midrash
e Talmud de anjos sendo punidos. O castigo implica que alguém tinha
escolha sobre a questão.
Por exemplo, o Midrash procura uma explicação para o versículo
sobre o sonho de Yaacov: “E ele sonhou, e viu uma escada fincada
no chão e o topo chegava ao céu; e vejam, anjos de D'us
estavam subindo e descendo por ela.”5 Isso parece estar na ordem
inversa. Os anjos não deveriam estar primeiro descendo para este
mundo do seu lugar de origem, e somente depois subindo?
Rabi Chomah, filho de Rabi Chanina, interpretou essa sequência inversa
da seguinte maneira: “Quando os anjos enviados para baixo para salvar
Lot e destruir Sodoma, eles foram maus e atribuíram o ato a si
mesmos, dizendo: “Pois nós estamos destruindo este lugar,
porque o grito deles se tornou grande perante o Eterno, e o Eterno nos
enviou para destruí-lo.”6 Em seguida, eles foram punidos
e postos para vagar pelo mundo durante 138 anos. Somente agora, no tempo
do sonho de Yaacov,7 eles puderam retornar. É por isso que o versículo
primeiro diz que eles estavam subindo e somente depois descendo.8 9 Castigo
implica pecado. Nesse caso, o Midrash acima citado implica que anjos podem
e de fato pecaram.
Rabino Yeshaya Halevi Horowitz em seu clássico Shnei Luchot HaBrit
(Shelah) fornece uma explicação. Ele concorda que anjos
não têm má inclinação e portanto, não
podem pecar no sentido convencional da palavra, contrariando deliberadamente
a vontade de seu Criador. No entanto, os anjos são criações
de D'us como qualquer outra criação, embora criaturas mais
espirituais e intelectualmente inclinadas que vivem num plano mais elevado
que o nosso. Por definição, não há criação
que seja perfeita; a única perfeita é o Criador. Todo ser
criado, até o intelecto mais alto, de alguma forma oculta a suprema
realidade. Portanto, embora um anjo não possa pecar, pode cometer
um erro ou pelo menos apresentar uma distorção da verdade.10
Um anjo não é meramente um robô; é algo como
um robô com sua própria inteligência. Talvez a melhor
analogia seja aquela dos androides na ficção científica
que têm a própria inteligência e mesmo assim são
incapazes de deliberadamente fazer algo contrário à função
para a qual foram projetados – mas apesar disso cometem erros.
Foi assim que os anjos enviados para destruir Sodoma pecaram. Quando um
anjo é enviado numa missão divina, é para cumprir
aquele dever enquanto deixa totalmente de lado a própria identidade.
Porém, quando os anjos foram destruir Sodoma, eles falaram como
se eles mesmos estivessem para destruir a cidade. Embora isso não
tivesse impacto sobre a missão em si, mesmo assim foi considerado
como um pecado, pois distorceu a verdade sobre seu papel na missão.
Foi um erro devido às suas imperfeições, e não
uma falha em cumprir uma missão divina.
Além disso, Rabi Yonatan Eibshitz11 explica que há dois
tipos de pecados. O primeiro é o tipo mais comum, um pecado que
vem através da má inclinação nos seduzindo
a errar. Mas há um outro tipo de pecado que não vem através
da má inclinação; pelo contrário, este pecado
é transgredido por “santidade”.
Toda pessoa – e todo anjo – tem seu nível de entendimento
e santidade. Uma pessoa deve se esforçar para atingir um caminho
cada vez mais elevado. O problema surge quando um ser (humano ou anjo)
tenta subir muito rapidamente e atinge um nível de revelação
ou compreensão que transcende muito seu estado objetivo de ser.
Isso, escreve Rabi Eibshitz, pode ser comparado a alguém que bebe
vinho demais muito depressa, ou “mais do que pode tolerar”,
o que lhe faz – na melhor das hipóteses – cair no sono,
mas se tivesse tomado o vinho lentamente não apenas nada de negativo
teria acontecido, como ainda teria sido benéfico para a saúde.12
Isso então lança uma nova luz sobe o significado do versículo
de Job acima citado. Os anjos são repreendidos não tanto
pelos pecados que podem ter cometido no sentido convencional. Em vez disso,
é pelos pecados feitos por pureza e integridade, procurando se
elevar a um nível mais elevado que seu estado objetivo de ser,
como declara o versículo: “Pode um mortal ser mais justo
que D'us’, ou pode um homem ser mais puro que seu Criador?”13
Portanto em resposta à sua pergunta, sim, os anjos podem pecar.
No entanto, somente podem pecar errando em sua missão ou tentando
atingir níveis de revelação onde não podem
estar.
NOTAS
1. Talmud, Shabat 88b-89a. Para uma elaboração
mais profunda sobre este debate épico, veja Os Arquivos do Sinai.
2. Talmud, Bava Batra 16a.
3. A respeito dos bnei elokim ou nephilim em Bereshit 6:2, enquanto alguns
de fato interpretam como se referindo aos anjos, é somente depois
que eles estavam sobre a terra e assumiram as características dos
seres humanos – deixando efetivamente de serem anjos – que
eles pecaram.
4. Job 4:17-18.
5. Bereshit 28:12.
6. Bereshit 19:13.
7. Alguns explicam que é porque eles foram os anjos que acompanharam
Yaacov da casa de seu pai.
8. Midrash, Bereshit Rabah 68:12. Consulte ali para respostas alternativas,
veja também Rashi sobre Bereshit 19:22.
9. Outro exemplo de anjos sendo punidos pode ser encontrado no Talmud
(Chaguiga 15a) onde o arcanjo Metatron recebeu “sessenta golpes
de um bastão em fogo” como castigo. No entanto, alguns comentaristas
explicam que ele não foi realmente punido por quaisquer pecados
que tenha cometido, em vez disso, nos céus eles “fizeram
um show” de puni-lo, a fim de ensinar uma lição aos
outros. Veja Maharsha ibid.
10. Shnei Luchot Habrit, Beit Yisroel; veja também Igrot Kodesh,
vol, 14 pág. 147.
11. Yaarot Devash, vol. 1 palestra 2.
12. Veja Talmud, Yuma 76 a.
13. Job ibid.
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