por Professor Yaakov Brawer    
  A dúvida de Tevye  
índice
 
 

Senhor, que fizeste o leão e o cordeiro
Decretaste que eu fosse o que sou
Será que estragaria algum vasto plano eterno
Se eu fosse um homem rico?

A profundidade filosófica pode brotar nos locais mais estranhos. "Um Violinista no Telhado" é uma pieguice sentimental, otimista, que tem aquecido os corações dos judeus por décadas. Sua enorme popularidade não tem nada a ver com conteúdo metafísico. As fitas de vídeo não são alugadas por eruditos em busca de verdades filosóficas. Mesmo assim, lá está ele, colocado na boca de Tevye, o leiteiro, por um compositor distraído, enfeitado com "yuba buhs" e acompanhado por uma antiga dança: "Será que estragaria algum vasto plano eterno, se eu fosse um homem rico?"

Tevye não é teólogo. Obviamente, não está interessado em desvendar os caminhos do Todo Poderoso. A questão é retórica, com a mera intenção de dar uma alfinetada em D'us pela Sua aparente indiferença para com a pobreza de Tevye. A proposição de que o alicerce do cosmos seria abalado de alguma forma caso Tevye ganhasse uns poucos rublos é claramente absurda, ou assim poderia parecer. Na verdade, Tevye provocou um dos mais enigmáticos e recônditos assuntos do pensamento religioso: Qual é, se existe algum, o significado da existência física finita? O destituído leiteiro sem dúvida ficaria chocado ao saber que a resposta à sua pergunta è sim, algum vasto plano eterno seria estragado se ele fosse um homem rico.

A dúvida de Tevye é realmente a seguinte. Habito uma minúscula partícula situada em algum lugar de um universo sem fim, repleto de incontáveis estrelas, galáxias e planetas de assustadoras proporções. Eu compartilho este minúsculo grão de poeira com seis bilhões de seres humanos. Viverei por não mais que 80 ou 90 anos, que em termos cósmicos é menos que um piscar de olho. Sou totalmente ananicado pela infinitude do tempo e a amplidão do espaço sem fronteiras. Como pode ser concebível que aquilo que faço ou o que acontece comigo possa ter qualquer conseqüência?

A fim de responder esta questão, devemos primeiramente tratar do equívoco que está profundamente enraizado na psique humana - a falácia do tamanho. Em poucas palavras, o tamanho é importante. Uma criança dá uma topada no dedão ao descer da cama pela manhã e chora de dor. No mesmo dia, um aviso de bomba assusta a todos no Aeroporto Internacional, atrasa os vôos e atrapalha milhares de viajantes. Qual destas duas histórias tem maior probabilidade de sair na primeira página dos jornais? Como, em ambos os casos, nada mais sério aconteceu, por que o fechamento do aeroporto é notícia, e o dedão machucado não merece nem uma linha? Por que a conquista do Monte Everest ainda empolga a imaginação, ao passo que a escalada de meia dúzia de picos mais desafiadores não atrai atenção alguma? Por que a Torre Eiffel e o Rochedo de Gibraltar são grandes atracões turísticas? Por que deveriam as pessoas gastar tempo e dinheiro para ver uma pilha de estacas de metal ou uma rocha? A resposta é que todos os mencionados acima são grandes, e as pessoas instintivamente (e sem pensar) igualam o tamanho à importância.

Se maior é melhor, o infinito é melhor ainda. Na presença do infinito, qualquer coisa limitada por dimensões, independente da magnitude, não tem importância. Uma galáxia e um grão de poeira são indistinguíveis perante a interminável vastidão do universo. Como Tevye é finito, nem ele nem as circunstâncias podem alterar coisa alguma. Ele ser ou não ser rico é algo que não poderia estragar o vasto plano de D'us mais que o faria a remoção de uma gota de água do Oceano Pacífico.

O primeiro engano de Tevye é estorvar D'us com a limitação de infinitude. O termo "infinito" define uma propriedade, sendo portanto não menos restritivo que seu antônimo, "finito". O conceito de propriedades ou características é inaplicável a D'us. Ele não é infinito nem finito, nem qualquer outra coisa. Não há nada no reino dos seres criados que possa se aplicar a D'us, e nenhum termo pode descrevê-Lo. Os nomes que atribuímos a D'us não denotam Sua essência, mas sim atributos através dos quais Ele Se revela e com os quais Ele interage com a criação. Termos como Hakadosh Baruch Hu ("O Santíssimo, bendito seja"), Hamelech hamromam (Rei exaltado) definem as manifestações transcendentes (infinitas) da Divindade, ao passo que Shechiná (a Divina Presença), e Av Harachamim (Pai Misericordioso) definem formas imanentes (finitas) de expressão.

Como os poderes Divinos de transcendência e infinitude não delineiam melhor a essência de D'us que aqueles da imanência, nossa tendência errônea a identificar a Divindade com infinitude simplesmente reflete um preconceito humano natural. A significância, portanto, é determinada não pelo tamanho nem por qualquer outra propriedade, mas sim exclusivamente pela vontade do Todo Poderoso. Ou seja, uma entidade é significativa se o Todo Poderoso assim o escolheu. Da mesma forma, não há base para Tevye assumir que desempenha um papel desprezível no vasto plano eterno de D'us simplesmente por ser pequeno. Pelo contrário, o fato de que o Todo Poderoso escolheu criar, sustentar, e relacionar-se com uma criatura mortal frágil e insignificante como Tevye indica que ele tem grande importância para D'us, se não para ninguém mais.

O segundo equívoco de Tevye é sua admissão de que "o vasto plano eterno" é modular, consistindo de partes intercambiáveis e descartáveis. Esta presunção errada vem naturalmente da observação de que quando um primeiro ministro morre, ou uma empresa multinacional quebra, as órbitas celestiais continuam imperturbadas, as leis da natureza continuam valendo e o mundo segue igual ao que era antes. A totalidade do ser não é afetada por ocorrências individuais, independentemente de sua importância local. Para dizer isso de outra forma, o mundo parece ser composto de uma multiplicidade de componentes autônomos, auto-sustentados, engajados em uma infinita variedade de eventos independentes. Assim, substituir o Tevye pobre por Tevye, o magnata, não teria impacto algum afora o de Anatevka, e seria facilmente acomodado no vasto plano eterno.

O que Tevye não entende é que a criação é uma forma de linguagem. Os símbolos da linguagem, as letras e as palavras, são escolhidas e arranjadas de maneira a capturar e revelar um pensamento ou sentimento. Cada palavra em uma frase, bem como sua posição em relação às outras, contribui para a intenção e para a clareza de expressão.

Considere o versículo Shemá Yisrael Hashem Elokênu Hashem Echad. Todos sabem que esta suprema declaração da fé judaica expressa a unicidade de D'us, que Ele é a única existência verdadeira, e que todas as outras existências aparentes são meramente um reflexo de Seu verdadeiro ser.

Suponha que um escriba cometesse um pequeno erro e substituísse a letra ayin pela letra alef no final da palavra Shemá. Como as outras 24 das 25 letras (na versão hebraica) estão escritas corretamente, 96% do versículo está perfeito, e a inadvertente substituição deveria ter um efeito mínimo. Na verdade, esta pequena alteração não apenas muda o significado do versículo, como o perverte por completo. A palavra Sehmá com o alef significa "talvez", portanto, ao invés de "Ouve, ó Israel, o Eterno é nosso D'us, o Eterno é Um", o versículo agora seria traduzido como "Talvez, ó Israel, o Eterno é nosso D'us, o Eterno é Um." Assim, esta pequena mudança isolada transformou a notável declaração de fé em uma grande declaração de dúvida. Embora a substituição de outras letras do Shemá possam não resultar em distorções tão dramáticas quanto ao significado, a transposição, substituição, eliminação ou deformação de qualquer letra individual é o suficiente para invalidar os Tefilin, uma Mezuzá ou uma Torá inteira.

Assim como toda letra da Torá captura um aspecto essencial da vontade e da sabedoria Divinas, assim cada detalhe da criação é um veículo ou uma "letra" através da qual uma faceta da sabedoria e da vontade de D'us, segundo expresso na Torá, está incorporada, objetivada e introduzida em nosso mundo físico. Nas palavras do santo Zôhar, "Ele olhou a Torá e criou o mundo". Isso explica por que a Halachá (a Lei da Torá) governa cada mínimo detalhe da vida neste mundo, e por que nenhum objeto, ação ou evento está abaixo de consideração pela vasta coleção de obras da Torá oral, conhecida como Talmud, pois como cada detalhe da criação é obrigatório para a realização do "vasto plano eterno" de D'us, Tevye não está certo. Ele e os detalhes de sua vida são cruciais para o propósito da criação. Ele é não somente importante, mas em sentido muito real, a estrutura do cosmos depende dele.

É difícil imaginar que um conceito tão complexo e obscuro como o lugar do homem na criação tivesse emergido em um musical da Broadway. Na verdade, a dúvida de Tevye não se originou com ele. Como é o caso com qualquer assunto importância, a fonte é a Torá. O Talmud (tratado Taanit) relata que Rabi Elazar ben Pedat, que era extremamente pobre, ficou doente certa vez e precisava de uma sangria, tratamento comum nos tempos antigos. Obedecendo ao procedimento recomendado, ele desejava fortalecer-se com boa alimentação, mas era tão pobre que tudo que lhe restava era uma casca de alho. Ele comeu-a, e sofreu um desmaio, durante o qual teve uma visão da Presença Divina (Shechiná). Perguntou à Divina Presença por quanto tempo deveria se sujeitar a pobreza tão esmagadora. A Divina Presença respondeu: "Elazar. meu filho, você quer que Eu destrua o universo e o reconstrua para que você possa talvez ser criado em uma época mais favorável à prosperidade?"

A implicação é óbvia. A penúria de Rabi Elazar é essencial ao vasto plano eterno. Como Rabi Elazar desempenha um papel integral no esquema Divino, caso sua situação mudasse, o macrocosmo teria de ser redesenhado de forma a adaptar-se a seu novo status. Em outras palavras, a "história" da criação teria de ser reescrita, para adequar-se à situação alterada de Rabi Elazar. Similarmente, o escritor de "Um Violinista no Telhado" poderia muito bem ter recriado Tevye como um homem de posses, mas então ele não teria mais uma peça, e uma nova história teria de ser arquitetada, na qual a afluência de Tevye fizesse sentido.

Onde, então, tudo isso deixa Tevye, e portanto, o restante de nós? Devemos viver existências de rígida predestinação, encerrados em papéis exigidos de nós pelo vasto plano eterno, prisioneiros de nossa própria indispensabilidade? Afinal, não podemos esperar que o Todo Poderoso reestruture a criação a fim de ajustá-la a nossos desejos individuais, podemos?

Pense sobre a prece. Se um amigo (D'us não o permita) passa por dificuldades financeiras, rezamos para que ele consiga ajuda. Tendo em vista as implicações da dúvida de Tevye, a prece nada mais é que um pedido para que o Todo Poderoso reconstrua o universo. O que estamos dizendo a D'us é que estamos insatisfeitos com a ordem cósmica na qual nosso amigo passa por privações, para que o Todo Poderoso seja tão bom a ponto de apagá-la e inventar uma nova, na qual as circunstâncias incluíssem uma renda razoável.

Embora este pedido estranho pareça ser o máximo em ousadia, estamos não somente autorizados, como obrigados a apresentá-lo. Rezar por aqueles que precisam não é opcional, é uma mitsvá, o que equivale a dizer que D'us nos ordena cumpri-la. Além disso, a Torá nos assegura que a prece não fica sem resposta, embora os resultados possam não ser evidentes de pronto. Pareceria, então, que não somos apenas personagens no Drama Divino, somos co-autores.

Embora, como pressuposto pela dúvida de Tevye, sejamos insignificantes, fracos, vulneráveis, falíveis mortais, há conseqüências universais em tudo que fazemos. Cada prece, cada mitsvá, cada ato de bondade, cada tentativa de auto-aperfeiçoamento, redefine o papel do indivíduo na vida, e precisa de um refinamento correspondente no cosmos, consistente com seu novo status. O plano Divino está portanto sendo constantemente aprimorado para ajustar-se aos melhoramentos introduzidos por nós, e somos, portanto, realmente parceiros do Todo Poderoso no contínuo ato progressivo de criar um mundo perfeito. Com cada ação positiva e a subseqüente revisão do roteiro Divino, chegamos ainda mais perto do rascunho final.

Há muitos anos, perguntei a um conhecido cabalista por que a Torá usa o termo "natureza" para as obras do mundo físico, ao passo que os reinos espirituais mais elevados, antecedentes ao universo físico, são considerados acima da ordem natural. Este não são "mundos" também ordenados, consistentes, e também governados por leis imutáveis de causa e efeito, e portanto, não funcionam segundo um tipo de natureza? Ele sorriu e respondeu que a cada vez que alguém põe uma moeda numa caixa de caridade, ou coloca tefilin, ou anima o espírito de alguém com uma palavra gentil ou um sorriso, portadores angélicos da graça Divina são criados, e novos canais de esplendor Divino são abertos nestes mundos. Como toda mitsvá produz inovações radicais, mundos mais elevados acham-se em um constante estado de reorganização e não têm natureza estável. Por outro lado, neste mundo "natural", as mudanças revolucionárias provocadas pelo desempenho da Torá, mitsvot e prece estão ocultas pela rudeza da existência material e, embora muito reais, não são aparentes, pelo menos ainda não.

Fica claro, portanto, que não apenas nossas ações efetuam mudanças no vasto plano eterno; fomos colocados aqui especificamente para este propósito.

 

 

 
   
top