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Disfarce
Havia dois mendigos sentados lado a lado numa rua da Cidade do México.
Um estava vestido como cristão, com uma cruz na frente da roupa;
o outro era um judeu chassídico com uma longa barba e casaco negro.
Muitas pessoas passavam por ali, olhavam para os dois mendigos e então
colocavam dinheiro no chapéu daquele com a cruz.
Após horas da mesma cena se repetindo, um padre aproximou-se do
mendigo judeu e disse: “Você não entende? Este é
um país católico. As pessoas não vão lhe dar
dinheiro se ficar sentado aqui como um verdadeiro judeu, especialmente
porque está perto de um mendigo que tem uma cruz. Na verdade, eles
provavelmente darão dinheiro a ele para te espicaçar.”
O pedinte chassídico ouviu o padre e, voltando-se ao mendigo vestido
como cristão, disse: “Moshê… olha só quem
está tentando nos dar uma lição de Marketing.”
A Identidade de Um Irmão é Revelada
A história de Yossef revelando-se aos seus irmãos
após décadas de amarga separação é,
sem dúvida, uma das mais dramáticas de toda a Torá.
Vinte e dois anos antes, quando Yossef tinha dezessete anos, seus irmãos
por desprezo o raptaram, jogaram num fosso e depois o venderam como escravo
a mercadores egípcios. No Egito ele passou doze anos na prisão,
de onde foi libertado para tornar-se vice-rei do país que era a
superpotência da época. Agora, mais de duas décadas
depois, o momento finalmente era propício para a reconciliação.
“Yossef não pôde mais controlar suas emoções,”
relata a Torá(1). “Ele dispensou todos seus assistentes egípcios
de sua câmara, para que ninguém mais estivesse presente quando
se revelasse aos seus irmãos. Ele começou a chorar com soluços
tão fortes que os egípcios do lado de fora podiam ouvi-lo.
E Yossef disse aos irmãos: ‘Eu sou Yossef! Meu pai ainda
vive?’ Os irmãos ficaram tão chocados que não
conseguiram responder.
“Yossef disse aos irmãos: ‘Por favor, aproximem-se
de mim.’ Quando eles se aproximaram, ele disse: ‘Eu sou Yossef,
seu irmão – fui eu que vocês venderam no Egito.
“Não se aborreçam, nem se reprovem por terem me vendido,
pois D’us mandou-me aqui para garantir sua sobrevivência na
terra e apoiar vocês para um importante pronunciamento.”
Analisando o Encontro
Emoções não são equações matemáticas
que poderiam ou estariam sujeitas a
escrutínio e análise acadêmica (exceto, talvez, no
consultório de um analista). Emoções, a textura através
da qual sentimos a vida em toda sua majestade e tragédia, professam
“leis” independentes e uma linguagem singular, bem distinta
da calculada e estruturada da ciência.
Apesar disso tudo, ainda nos sentimos obrigados a entrar em sintonia com
a fraseologia específica empregada pela Torá para descrever
este encontro carregado de emoções, quando Yossef revela
sua identidade aos irmãos.
Quatro observações vêm de imediato à mente(2).
1. Após Yossef expor sua identidade aos irmãos, pede a eles
que se aproximem. Apesar do fato de eles estarem sozinhos com ele numa
sala reservada, Yossef deseja que se aproximem ainda mais. Naquele instante
estamos esperando que Yossef partilhe com os irmãos um segredo
íntimo. Mas isso não parece ocorrer.
2. Depois que eles se aproximam, Yossef diz: “Eu sou Yossef, seu
irmão – a quem vocês venderam no Egito.” Porém
ele já tinha contado a eles que era Yossef!
3. Por que Yossef se sentiu obrigado a informar que eles o tinham vendido
aos egípcios, como se eles não soubessem o que tinham feito
ao irmão mais novo? Por que ele não começou imediatamente
sua explicação sobre por que eles não precisavam
se reprovar por tê-lo vendido?
4. Na primeira vez que Yossef se revela ele não se define como
irmão deles; porém quando ele repete, menciona o senso de
fraternidade: “Eu sou Yossef, seu irmão.” Por que a
diferença?
A Alma Não Reconhecida
A mais longa narrativa em toda a Torá está em Bereshit cap.
37 a 50, e não há dúvida de que seu herói
é Yossef. A história começa e termina com ele. Nós
o vemos como criança, órfao de mãe e amado pelo pai;
nós o observamos como um adolescente sonhador, invejado pelos irmãos;
vemos Yossef como escravo, depois prisioneiro no Egito; então o
vemos se tornar o segundo mais poderoso no maior império do mundo
antigo. Em todas as partes, a narrativa se desenvolve ao redor dele e
seu impacto sobre os outros. Ele domina o último terço do
Livro de Bereshit, eclipsando todos os outros. No decorrer de toda a Torá,
não há ninguém que cheguemos a conhecer tão
intimamente como Yossef. A Torá parece estar encantada com Yossef,
suas jornadas e conflitos, mais que com qualquer outra figura, talvez
ainda mais que com os dois pilares da fé judaica, Avraham e Moshê.
Qual é a mística por trás de Yossef? Quem é
ele?
A vida de Yossef incorpora todo o drama e paradoxo da existência
humana. O Yossef por fora não era o Yossef por dentro; seu comportamento
exterior jamais fez justiça à sua autêntica imagem
interior. Mesmo quando era jovem, seus irmãos não conseguiam
avaliar a profundidade e nobreza de seu caráter. O Midrash(3) vê
a descrição de Yossef aos dezessete anos como um “jovem”,
como a indicar o fato de que ele devotava muito tempo a arrumar o cabelo,
cuidar dos olhos e caminhar como um rapaz mimado, vaidoso e cheio de pompa.
Então, quando Yossef se ergueu para tornar-se vizir do Egito, ele
encarnou a pessoa de um carismático líder de estado, um
belo, charmoso e poderoso jovem líder, um diplomata habilidoso,
um político experiente e um economista inteligente, com enorme
ambição.
Não era fácil perceber que por baixo dessas qualidades estava
uma alma em fogo com paixão moral, um espírito análogo
para quem o legado monoteísta de Avraham, Yitschac e Yaacov permanecia
como epicentro de sua vida; um coração repleto de amor a
D’us.
A singular condição de Yossef – incorporando o paradoxo
da condição humana – é pungentemente expressa
num versículo da Torá(4):
“Yossef reconheceu seus irmãos mas eles não o reconheceram.”
Yossef identificou facilmente a santidade dentro de seus irmãos.
Afinal, eles viveram a maior parte da vida isolados como pastores espirituais
envolvidos em prece, meditação e estudo. Porém estes
mesmos irmãos não tiveram a capacidade de discernir a riqueza
moral incrustada na profundidade do coração de Yossef. Mesmo
quando Yossef estava morando com eles em Israel, eles o viam como um forasteiro,
um perigo à integridade da família de Israel. Certamente,
quando o encontraram como líder no Egito, não conseguiram
ver por trás da máscara de político experiente o
coração de um tsadic, a alma de um Rebe.
O Fogo no Carvão
Esta dupla identidade que caracterizava a vida de Yossef mostrou-se da
maneira mais poderosa quando a esposa de seu amo tentou seduzi-lo a ter
relações íntimas. Por fora, ela pensou, não
seria muito difícil convencer um jovem escravo abandonado a sacrificar
sua integridade moral em troca de atenção e algum divertimento.
Mas, quando chegou a hora da verdade, quando Yossef se viu frente a frente
com o teste dos testes, ele demonstrou uma coragem heróica ao resistir
e fugir da casa dela. Como resultado daquele ato, ficou na prisão
por 12 anos.
O Midrash (5) compara Yossef ao fresco manancial de água escondido
nas profundezas da terra, oculto por camadas de pedras e entulho. Numa
metáfora ao contrário ilustrando o mesmo ponto, a Cabalá
vê Yossef como a chama oculta dentro do carvão. Por fora,
o carvão parece preto, escuro e frio; porém, quando você
se expõe à sua verdadeira textura, pode sentir o calor,
o fogo e a paixão. Você se queima.
Revelação
E então chegou o momento em que Yossef retirou a máscara.
O Zohar (6), comentário cabalista fundamental sobre a Torá,
apresenta uma penetrante visualização do que ocorreu no
momento em que Yossef se revelou aos seus irmãos.
Quando ele declarou “Eu sou Yossef”, diz o Midrash, “seu
rosto ficou em chamas como uma fornalha ardente.” A chama oculta
durante 39 anos dentro do carvão emergiu com força total.
Pela primeira vez na vida, os irmãos de Yossef o viram como ele
era; entraram em contato com a maior santidade no mundo emergindo da face
do vizir egípcio…
Perda
“Seus irmãos ficaram tão horrorizados que não
conseguiram reagir,” relata a Torá. O que perturbou os irmãos
não foi tanto um senso de temor ou culpa pessoal. O que mais os
aterrorizou foi a sensação de perda que sentiram por si
mesmos e pelo mundo inteiro como resultado de sua venda ao Egito.
“Se após passar 22 anos numa sociedade moralmente depravada,”
pensaram eles, “um ano como escravo, doze anos como prisioneiro,
nove anos como político – Yossef ainda conservava tamanha
santidade e paixão, o quanto não seria mais sagrado se tivesse
passado estes 22 anos ao lado de seu justo pai Yaacov?!”
“Que perda para a história nossas ações provocaram!”
atormentaram-se os irmãos, “Se Yossef poderia ter passado
todos estes anos no oásis transcendente, num ambiente sagrado,
na ilha espiritual do Patriarca Yaacov – como o mundo poderia ter
se enriquecido com um brilho tão atômico de santidade em
seu meio!”
O contraste entre a condição atual de Yossef e aquele que
poderia ter sido o seu potencial deixou os irmãos com um sentimento
irreparável de perda, pois sentiram que era uma oportunidade perdida
de proporções históricas.
O Erro
Neste momento, “Yossef disse aos irmãos, ‘Por favor,
aproximem-se de mim.’” Yossef queria que eles se aproximassem
ainda mais e olhassem profundamente para a luz Divina que brotava do seu
semblante.
“Quando eles se aproximaram,” relata a Torá, “Ele
disse: ‘Eu sou Yossef, seu irmão – que vocês
venderam ao Egito.’”
Yossef não estava meramente repetindo aquilo que lhes falara antes
(“Eu sou Yossef”), nem estava os informando de um fato do
qual estavam bem conscientes (“Fui eu que vocês venderam ao
Egito”), ao contrário, ele estava respondendo ao senso de
perda irreparável dos irmãos.
As palavras ‘Eu sou Yossef seu irmão – fui eu que vocês
venderam ao Egito” no original hebraico também pode ser traduzido
como “Eu sou Yossef seu irmão – porque vocês
me venderam ao Egito.”
O que Yossef estava declarando era que o único motivo para ele
ter atingido tamanhas alturas espirituais foi porque ele passou os últimos
22 anos no Egito, não no ambiente sagrado de Yaacov.
O brilho imenso que emanava de sua presença, Yossef sugeriu, não
estava lá apesar das duas décadas na depravada sociedade
egípcia, tão longe do paraíso celestial de seu pai;
estava lá exatamente como resultado de seu envolvimento com uma
vida estranha ao caminho inocente e correto de seus irmãos. As
incríveis provações e a adversidade que ele enfrentou
na selva espiritual são exatamente o que desencadeou o brilho espiritual
que os irmãos estavam presenciando.
Se Yossef tivesse passado as duas décadas viajando com seu pai
pela estrada pavimentada da lucidez psicológica e espiritual, ele
certamente teria atingido grandes alturas intelectuais e emocionais. Porém
foi apenas o seu confronto com um abismo fulgurante que deu a Yossef aquela
majestade singular, paixão e poder que desafiaram até a
rica imaginação dos seus irmãos.
É por isso que Yossef pediu aos irmãos que se aproximassem
dele, para que pudessem contemplar de mais perto sua luz singular e avaliar
que era uma luz que poderia emergir somente da profundeza das trevas,
do abismo da promiscuidade egípcia. [Este é também
o motivo para Yossef mencionar, pela segunda vez, o elemento da fraternidade.
Pois Yossef estava tentando não apenas contar-lhes quem era, mas
partilhar a realidade do seu parentesco, o fato de que ele, assim como
eles, estava profundamente conectado com suas raízes espirituais].
Se Pelo menos…
Assim como os irmãos, muitos de nós também, passamos
nossa vida pensando “Se pelo menos…” Se pelo menos minhas
circunstâncias tivessem sido diferentes; se eu tivesse nascido num
tipo diferente de família; se eu tivesse uma personalidade melhor…
A eterna lição de Yossef é que a jornada individual
de sua vida, com todos os altos e baixos, é que permite que você
descubra seu lugar único neste mundo como servo de D’us(7).
Às vezes, são os 22 anos no “Egito” que dão
a você a mais profunda clareza e intimidade com a vida e com D’us.
Notas:
1) Bereshit 45:1-7
2) As seguintes observações são discutidas por muitos
dos comentaristas bíblicos, que oferecem várias explicações
(veja Midrash Rabah, Rashi, Ramban, Klei Yakar, Or Hachaim).
3) Midrash Rabah Bereshit 84:7. Citado em Rashi sobre Bereshit 37:2.
4) Bereshit 42:8.
5) Midrash Rabah ibid. 93:3.
6) Zohar vol. 1 pág. 93b.
7) Este ensaio é baseado em escritos chassídicos. Veja Sefer
Halikutim sob a entrada Yossef e todas as referências ali anotadas;
Sefer Letorah U’Lemoadim (por Rabi Shlomo Yosef Zeviin) Parashat
Vayigash (págs. 60-61); Sefat Emet Vayigash (sobre o versículo
“Asher Nechartem”); Licutê Sichot vol. 25 págs,
255-257 e as referências ali anotadas. Meus agradecimentos a Shmuel
Kuperman (Brooklyn, NY) por compartilhar comigo o núcleo de sua
introvisão. |