Uma Torá de Sangue  
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  Por Rabino YY Jacobson
 

Quando os soldados judeus russos tiraram a camisa em Simchat Torá.

A Saga Cantonista

Esta é uma das narrativas mais trágicas e horríveis na história dos judeus russos: a história dos cantonistas.

Em 26 de agosto de 1827, o Czar Nicolau publicou o Decreto de Recrutamento, chamando para alistamento no exército russo os meninos judeus entre doze e vinte e cinco anos. Estes rapazes eram conhecidos como Cantonistas; derivado do termo ‘Cantão’ referindo-se aos distritos para onde eram enviados, e as “barracas” nas quais eram alojados. Inscritos abaixo da idade de dezoito anos eram designados para morar em instituições preparatórias até terem idade suficiente para juntar-se formalmente ao exército. Os vinte e cinco anos de serviço exigiam que aqueles recrutas fossem contados a partir dos dezoito anos de idade, mesmo se já tivessem passado muitos anos em instituições militares antes de atingirem aquela idade.

Nicolau endureceu o sistema cantonista e usou-o para destacar meninos judeus para perseguição, sendo que o batismo deles era para ele de alta prioridade. Nenhum outro grupo ou minoria na Rússia servia com tão pouca idade, nem havia outros grupos de recrutas atormentados dessa maneira. Nicolau escreveu num memorando confidencial: “O principal beneficio a ser derivado com o alistamento dos judeus é a certeza de que isso os fará mais efetivamente mudar sua religião.”

Durante o reinado de Nicolau I, cerca de setenta mil judeus, dos quais cinquenta mil eram crianças, foram tirados à força de suas casas e famílias e induzidos ao exército russo. Os meninos, criados à maneira tradicional do shtetle (aldeia), eram pressionados por todos os meios possíveis, incluindo tortura, a aceitarem o batismo. Muitos resistiam e alguns conseguiam manter sua identidade judaica. A magnitude de seu conflito é difícil de conceber.

Este período de trinta anos, de 1827 a 1856, viu a comunidade judaica num estado de pânico incessante. Os pais viviam num medo constante de que seus filhos seriam os próximos a preencher a cota do Czar. Uma criança podia ser levada de qualquer lugar, a qualquer hora. Cada momento poderia ser o último juntos; quando uma criança saía para ir ao cheder (escola) pela manhã, os pais não sabiam se tornariam a vê-la. Quando se retiravam à noite após cantar para o filho dormir, jamais sabiam se teriam de lutar contra os chappers (raptor, chapper é o termo em yidish para agarrar) durante a noite num último esforço de manterem seu filho ao seu lado.

Esses meninos eram espancados, chicoteados, muitas vezes com chicotes feitos com seus próprios tefilin confiscados. Em seu estado de má nutrição, as feridas abertas no peito e nas costas infeccionavam e muitos meninos, que durante meses tinham resistido heroicamente a renunciar ao Judaísmo, morriam ou cediam ao show do batismo. Como comida casher não estava disponível, eles tinham de escolher entre abandonar as leis dietéticas judaicas ou a inanição. Para evitar este horrível destino, alguns pais pediam aos ferreiros que amputassem os membros dos filhos na floresta para que os meninos não pudessem mais ser alistados. Outros meninos cometiam suicídio para não se converterem.

Todos os cantonistas eram institucionalmente sub-alimentados, e encorajados a roubar alimentos da população local, para imitar a construção do caráter espartano. (Em uma ocasião em 1856 um cantonista judeu, Khodulevich, conseguiu furtar o relógio do Czar durante jogos militares em Uman. Não somente ele não foi punido, como recebeu uma recompensa de 25 rublos pela sua atitude ousada.)

Sinagogas Cantonista
Os poucos corajosos sobreviventes que mantiveram a fé e conseguiram voltar para suas famílias 25 anos depois, acharam difícil se integrar à comunidade regular. Eram analfabetos, sem educação, e tinham vivido entre russos não-judeus durante um quarto de século. Portanto eles construíram suas próprias sinagogas a fim de fazer as coisas à sua maneira. Estas ficaram conhecidas como Sinagogas Cantonistas. Rabino Yerachmiel Milstein relatou a seguinte história que ele ouviu de um judeu, que a ouvira de seu avô.

O avô deste homem certa vez fora a uma Sinagoga Cantonista em Simchat Torá, a alegre festa em que dançamos com Rolos de Torá na sinagoga. Agora os cantonistas dançavam como cossacos. Eram homens altos, musculosos e fortes, e os pesados Rolos de Torá pareciam palitos em seus braços. Dançavam sem esforço durante horas a fio. Muitos judeus de outras sinagogas iam para vê-los dançar. Verdade seja dita, alguns desses judeus, infelizmente, zombavam desses soldados. Eles se pareciam com cossacos, eram ignorantes e sem cultura. Não era culpa deles, pois não tiveram educação, cresceram sem família ou comunidade; foram arrastados a um exército hostil quando eram crianças. Porém as pessoas muitas vezes gostam de julgar: “eles não são do meu tipo…”

Com a Pele Nua
Então para a hacafá final (a volta ao redor dabimá, mesa de leitura principal da sinagoga), os cantonistas, como se tivessem combinado, de repente retiraram a camisa de seus corpos. Com a Torá segura firmemente sobre a pele nua que estava coberta com as mais horríveis cicatrizes e vergões, eles dançaram ainda mais animadamente. Seus sorrisos e alegria agora davam lugar a torrentes de lágrimas que desciam pelo rosto dos judeus instruídos e educados que tinham ido assisti-los dançar.

Os judeus letrados agora estavam repletos de vergonha. Estavam todos tendo os mesmos pensamentos: podemos ter estudado e cumprido esta Torá, mas esses judeus sagrados deram a vida e o corpo por ela. Estamos segurando os Rolos de Torá; porém os corpos deles são Rolos de Torá. Para eles, a Torá e sua pele nua se tornaram uma. A Torá deles não foi de sermões e palavras; foi uma Torá de vida, de auto-sacrifício, de compromisso total e inabalável.

Vivendo hoje em liberdade, poucos de nós fomos espancados por causa do nosso Judaísmo. Porém quando mais uma vez segurarmos estes rolos sagrados e dançarmos com a Torá, devemos nos perguntar como podemos tornar a Torá parte da nossa própria carne, permitindo que suas palavras sejam inscritas nas tábuas de nosso coração, não apenas no pergaminho de nossa sinagoga. Pois essa é a Torá que realmente importa – aquela que acende um fogo em nossas almas.

   
   
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