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Aristides de Sousa Mendes
foi, em 1940, Cônsul Geral de Portugal em Bordeaux, na França.
Graduado pela Universidade de Coimbra, foi um advogado de posses de uma
antiga família aristocrata e tinha representado Portugal em postos
diplomáticos no Brasil, Zanzibar e nos Estados Unidos. As forças
nazistas de Hitler tinha entrado em Paris e uma multidão de pessoas
fugira para o sul, esperando deixar a França. Seu destino era Bordeaux,
onde um visto português podia lhes assegurar uma passagem pela Espanha
até Portugal, que era nominalmente neutro; dali talvez pudessem
obter um passaporte ou um visto para a América. Salazar tinha ordenado
a suas embaixadas para não emitir vistos de saída para russos,
exilados políticos portugueses ou quaisquer judeus.
Milhares de refugiados que chegaram a Bordeaux tinham encontrado o apartamento
do Cônsul Geral Português e se reuniram do lado de fora, esperando
conseguir os vistos. Sousa Mendes, com grande compaixão, decidira
desobedecer as ordens de Salazar e ele, com dois filhos, escreveu à
mão cerca de 30.000 vistos para salvar o máximo possível
de refugiados das mãos nazistas. Uns dez mil desses refugiados
eram judeus. Cita-se esta frase dita por ele: "Tenho de salvar estas
pessoas, quantas eu puder. Se estou desobedecendo ordens, prefiro estar
com D’us e contra os homens, que com os homens contra D’us."
O resultado dessa magnífica ação foi ele ser chamado
a Lisboa em desgraça, mas no caminho parou em Bayonne e escreveu
mais vistos à mão, salvando assim outros mil refugiados.
Quando chegou a Lisboa foi multado e proibido de exercer a profissão
de advogado. Ficou reduzido a ter de vender todos os seus pertences pessoais
para comprar comida para sua família. Morreu em 1954, sem dinheiro
e ainda em desgraça.
O nome de Aristides de Sousa Mendes foi homenageado pelo Congresso dos
Estados Unidos, pelo Governo de Israel e recentemente foi restaurado a
um lugar de honra e respeito pelo Presidente de Portugal, Mário
Soares.
Breve biografia
1885 - Filhos de Maria Angelina Ribeiro de Abranches
e do juiz José de Sousa Mendes, os gêmeos César e
Aristides de Sousa Mendes do Amaral e Abranches nascem em Cabanas de Viriato,
Distrito de Viseu, Portugal.
1907 - César e Aristides licenciam-se em Direito
na Universidade de
Coimbra e depois seguem a carreira diplomática.
1908 - Em Portugal, el-Rei D. Carlos e o príncipe
herdeiro são assassinados. Aristides casa com sua prima Angelina;
o casal virá a ter 14 filhos.
1910 - Aristides é nomeado Cônsul em Demerara,
Guiana Francesa. Revolução de 5
de Outubro e proclamação da República portuguesa.
1911/16 - Aristides Cônsul em Zanzibar, enfrenta
problemas de saúde juntamente com toda sua família.
1914 - Início da I Guerra Mundial.
1916 - Portugal entra na I Guerra Mundial a favor dos
Aliados; batalha de Verdun, massacre do corpo expedicionário português.
1918 - Termina a I Guerra Mundial com a vitória
dos Aliados (França, Reino Unido, etc.). Aristides é nomeado
Cônsul em Curitiba (Brasil).
1919 - Por causa das suas convicções monárquicas,
Aristides é castigado pelo governo de Sidônio Pais.
1921/23 - Aristides dirige, temporariamente, o Consulado de S.
Francisco da Califórnia, cidade onde nasce o seu 10.º filho.
1924 - Aristides é Cônsul em S. Luís do Maranhão
(Brasil). Depois, passa a dirigir, interinamente, o Consulado de Porto
Alegre (Brasil).
1926 - Aristides regressa a Lisboa para prestar serviço
na Direção-Geral dos Negócios Comerciais e Consulares.
Em Portugal, ocorre revolução militar do 28 de Maio, conduzida
pelo Marechal Gomes da Costa.
1927 - A Ditadura Militar portuguesa confia em Aristides e nomeia-o
Cônsul em Vigo. 1928 - Salazar, apontado Ministro das Finanças.
1929 - Aristides é nomeado Cônsul-geral em Antuérpia
(Bélgica).
1930 - Salazar, eleito Presidente do Conselho de Ministros
1936 - O rei belga, Leopoldo III, condecora Aristides
de Sousa Mendes, decano do corpo diplomático.
1938 - Salazar nomeia Aristides de Sousa Mendes Cônsul
de Portugal em Bordéus. 1939 - Salazar e Franco assinam o Pacto
Ibérico. A Alemanha de Hitler invade a Polônia, início
da II Guerra Mundial. Com a Presidência do Conselho, Salazar acumula
a pasta de Ministro dos Negócios Estrangeiros.
1940 - Contrariando as ordens de Salazar, Aristides de
Sousa Mendes, no Consulado de Portugal em Bordéus, passa mais de
30.000 vistos a judeus e outras minorias perseguidas pelos nazistas. Salazar
condena Sousa Mendes a um ano de inatividade e depois aposenta-o sem qualquer
vencimento.
1945 - Termina a II Guerra Mundial com a vitória
dos Aliados (França, Grã-Bretanha, Estados Unidos da América,
União Soviética, etc.). Aristides de Sousa Mendes dirige
carta à Assembleia Nacional, reclamando (em vão) contra
o castigo que lhe fora
imposto pelo Governo.
1948 - Morre sua esposa, Angelina de Sousa Mendes.
1954 - Assistido apenas por uma sobrinha, Aristides de Sousa
Mendes morre
"pobre e desonrado", no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa.
1967 - Yad Vashem, autoridade estatal israelita para a recordação
dos mártires
e heróis do Holocausto, homenageia Aristides de Sousa Mendes com
a sua
mais alta distinção: uma medalha com a inscrição
do Talmud: "Quem salva
uma vida humana é como se salvasse um mundo inteiro".
1998 - A Assembleia da República e o Governo português
finalmente procedem à
reabilitação oficial de Aristides de Sousa Mendes.
Reclamação formal
por Aristides de Sousa Mendes
Em 1945, terminada a guerra, desaparecem os condicionalismos políticos
que desaconselhavam a reapreciação do meu processo. Envio
carta ao Presidente da Assembleia Nacional. A mim me referindo na 3.ª
pessoa, reclamo:
"Tendo-lhe sido enviadas instruções pelo ministro dos
Negócios Estrangeiros sobre vistos em passaportes, essas instruções
continham na 1ª alínea a proibição absoluta de os
dar aos israelitas, sem discriminação de nacionalidade.
"Tratando-se de milhares de pessoas de religião judaica, de
todos os países invadidos, já perseguidas na Alemanha e
noutros países seus forçados aderentes, entendeu o reclamante
que não devia obedecer àquela proibição por
a considerar inconstitucional em virtude do art.º 8.º n.º 3 da Constituição,
que garante liberdade e inviolabilidade de crenças, não
permitindo que ninguém seja perseguido por causa delas, nem obrigado
a responder acerca da religião que professa, medida que aliás
se lhe tornava necessária para saber a religião dos impetrantes,
e assim negar ou conceder o visto.
"Nestes termos, se o reclamante não obedeceu à ordem
recebida do Ministério, não fez mais que resistir, nos termos
do n.º 18 do art. 8º da Constituição, a uma ordem que infringia
manifestamente as garantias individuais, não legalmente suspensas
nessa ocasião (art.º 8.º, n.º 19).
"E não se pretenda que a inviolabilidade de crenças
não é, segundo a Constituição, um direito
para os estrangeiros visados, por não se acharem residindo em Portugal,
único caso em que poderiam ter os mesmos direitos que os nacionais
(do art.º 7.º) pois não se trata no caso presente de um direito
dos estrangeiros, mas de um dever dos funcionários portugueses,
que nem em Portugal nem nos seus Consulados, também território
português, poderão sem quebra da Constituição
interrogar seja quem for sobre a religião professada, para negar
qualquer acto da sua competência, o que a admitir-se significaria
odiosa perseguição religiosa, mormente quando se impunha
o direito de asilo que todo o país civilizado sempre tem reconhecido
e praticado em ocasiões de guerra ou calamidade pública.
Concluo:
"Não alegou na resposta que deu no mesmo processo disciplinar
estas circunstâncias, pelo motivo de, lavrando a guerra na Europa,
não querer dar publicidade e relevo a uma atitude, por parte de
funcionários do Estado, que sobre ser inconstitucional poderia
ser interpretada como colaboração na obra de perseguição
do governo hitleriano contra os judeus, o que representaria uma quebra
da neutralidade adoptada pelo governo.
"Não
pode porém suportar a evidente injustiça com que foi tratado
e conduziu ao absurdo, a que pede seja posto rápido termo, de o
reclamante ter sido severamente punido por factos pelos quais a Administração
tem sido elogiada, em Portugal e no estrangeiro, manifestamente por engano,
pois os encómios cabem ao país e à sua população
cujos sentimentos altruístas e humanitários tiveram larga
aplicação e retumbância universal, justamente devido
à desobediência do reclamante. Em resumo, a atitude do Governo
Português foi inconstitucional, antineutral e contrária aos
sentimentos de humanidade e, portanto, insofismavelmente „contra
a Nação.
Pede deferimento (a) Aristides de Sousa Mendes
"Não recebo qualquer resposta. Estou pois definitivamente
condenado à miséria e à desonra."
Depoimentos
de Dr. Aristides Mendes
Não consigo dormir, viro-me para a esquerda, viro-me para a direita,
ora tenho frio, ora calor, ora me tapo, ora destapo. Vivo em Bordéus
e de Lisboa acabo de receber más notícias, proibições.
Que horas são? Tenho sede, Angelina dá-me água…
Estou sempre a zanzar de um lado para o outro, na cama e na vida. A diplomacia
tem destas coisas, não dá tempo para um homem assentar e
deitar raiz. Será por isso que eu torno sempre às mais profundas.
Em 1908 tentaram cortá-las, no Terreiro do Paço mataram-me
el-Rei D. Carlos, também o príncipe herdeiro. Lesa-majestade,
lesa-vida... Dois anos depois o 5 de Outubro, bandeiras republicanas são
içadas, já definha a História pátria…
César é o meu irmão gêmeo. Juntos, íamos
tomar banho no rio Dão. Juntos, cursamos Direito na Universidade
de Coimbra. Nosso pai é juiz. Mas César e eu optamos pela
diplomacia, não pela magistratura ou advocacia. Até nas
carreiras somos gêmeos. Tomamos o caminho errado? Creio que sim,
somos monárquicos e, com a implantação da República,
passamos a ser descriminados. Fui Cônsul na Guiana Francesa, 1 ano;
em Zanzibar, África britânica, 7 anos. Ali estou sempre doente,
também a minha mulher e os meus filhos. Peço para me transferirem.
No Palácio das Necessidades de Lisboa, que é o Ministério
dos Negócios Estrangeiros, finalmente atendem o meu pedido e mandam-me
para o sul do Brasil, sou nomeado Cônsul em Curitiba.
Estamos em 1919, tenho 34 anos. Só por causa das minhas convicções
monárquicas o novo Governo de Sidônio Pais, sem mais nem
menos, suspende-me de funções. Consequências: inatividade,
redução brutal de vencimentos e família cada vez
maior. É o limiar da miséria, é o desespero. Na Embaixada
portuguesa no Rio de Janeiro, César é o Encarregado de Negócios,
felizmente. Movimenta-se, consegue que 34 prestigiados cidadãos
portugueses, residentes em Curitiba, subscrevam um protesto contra uma
campanha miserável movida contra o Cônsul português
por criaturas sem vislumbre de senso moral. A iniciativa de César
dá resultado: no final do ano suspendem a suspensão. Mas
continuo sob mira e alvo não quero ser. Tudo se agrava, de Lisboa
acabo de receber más notícias, proibições…
Quatro anos mais novo do que eu, em Santa Comba Dão, no nosso distrito
de Viseu, nasceu homem que vai dar muito que falar, estou em crer. Também
ele cursou Direito na Universidade de Coimbra mas depois optou por Economia
e Finanças, não pela Diplomacia. Em 1910, em Viseu, no Colégio
do Cónego Barreiros, durante a sua conferência sobre Educação
da Mocidade, ele disse: ‘A vontade deve ser educada no amor a D’us
e ao próximo, no amor à família, à honra e
à dignidade, ao trabalho e à verdade’. Estou de acordo.
Este moço pode vir a ser uma barreira contra a falta de escrúpulos
que submerge a nação. O seu nome? António de Oliveira
Salazar.
Um dia será alçado a lugar cimeiro do país, prevejo.
Mas quando é que ele vai assumir o poder para nos salvar? Tenho
pressa…
Não me deixam ficar em Curitiba, não lhes convém,
a colónia portuguesa está bem ciente da perseguição
que me fizeram. Mandam-me para Cônsul temporário em S. Francisco
da Califórnia. Temporário é equivalente a vencimento
reduzido e, em dois anos, nascem mais dois filhos meus. Outra vez o limiar
da miséria, o desespero. Depois mandam-me novamente para o Brasil.
Em Agosto de 24 sou Cônsul em S. Luís do Maranhão,
no norte. E em Dezembro estou a gerir interinamente o Consulado de Porto
Alegre, no extremo sul. Interinamente é eufemismo de ‘corte
nos vencimentos’... Cansam-me estas viagens, estas deslocações
sucessivas, mas o pior de tudo é a falta de dinheiro. Além
do mais, de Lisboa acabo de receber más notícias, proibições.
Em 1926 estou outra vez em Lisboa, presto serviço na Direção-Geral
dos Negócios
Comerciais e Consulares. A 28 de Maio ocorre o golpe do General Gomes
da Costa, é a Ditadura Militar. Para surpresa minha, em Março
de 27 sou nomeado Cônsul em Vigo, na Galiza, cargo de muito prestígio.
Um amigo meu, funcionário interno do Palácio das Necessidades,
diz-me que fui escolhido, por motivo de confiança, pois o regime
militar vê em mim o funcionário próprio para inutilizar
os manejos conspiratórios dos emigrados políticos contra
a Ditadura. Os militares foram gentis, fizeram-me justiça mas estão
equivocados a meu respeito: não sou um denunciante, pedras eu não
atiro, nem a primeira, nem a segunda, nem qualquer outra.
Sonhar, às vezes é antecipar. Em 1928 Salazar sobe à
ribalta, é ele o novo Ministro das Finanças da Ditadura
Militar. Com o auxílio do exército impõe novas contribuições,
veta despesas públicas, alcança o equilíbrio do orçamento,
liquida a dívida flutuante e estabiliza a moeda. Já ninguém
consegue arredá-lo, ou ele ou a bancarrota. Em 1930 acontece o
óbvio: Salazar, de Ministro das Finanças galga a Presidente
do Conselho de Ministros. Talvez possa agora restaurar a monarquia. Poderia,
lá isso poderia... Poderia mas não quer pois, sem estirpe
nem coroa, quem está a converter-se em soberano absoluto é
o próprio Salazar, metamorfoses. Ilusão, triste ilusão
a minha e agora, de Lisboa, acabo de receber más notícias,
proibições…
Não correspondo às expectativas dos militares mas eles continuam
a prestigiar-me, não sei porquê. Em 1929 nomeiam-me Cônsul
em Antuérpia, na Bélgica. Ali permaneço durante 9
anos. Com apenas 50 anos já sou o decano do corpo diplomático.
O rei belga, Leopoldo III, simpatiza muito comigo, por duas vezes me condecora.
Mas em 38 sou nomeado Cônsul em Bordéus, França. Peço
para ser mantido em Antuérpia, cidade onde fiz tantos amigos. Salazar,
para minha consternação, recusa o pedido e sigo para Bordéus.
De Lisboa acabo de receber más notícias…
De outras vezes o sonho converte-se em pesadelo, ânsias, ao acordar
a minha apetência é gritar. Em 39 rebenta a II Guerra Mundial.
Os alemães invadem a Polônia e os Países Baixos e
a França, Paris é ocupada. Depois a horda ariana começa
a descer para sul e sudoeste, vêm aí os assassinos! Milhares
e milhares de refugiados de guerra acampam nos jardins do Consulado e
nas ruas vizinhas. Franceses, belgas, holandeses, checos, austríacos
e até alemães. Judeus mas também cristãos.
Querem vistos para o meu país, querem vistos para a Vida. Mas de
Lisboa acabo de receber más notícias, proibições:
com a Presidência do Conselho, Salazar acumula agora a pasta de
Ministro dos Negócios Estrangeiros e proíbe que se passem
vistos a refugiados de guerra, principalmente a israelitas. Outra vez
me desilude o moço… Que faço eu? Acato a ordem do
Presidente do Conselho? Impassível, vou então ficar à
janela a assistir à matança dos inocentes? Não, não
e não! Não sou cúmplice da chacina, vou desobedecer
a Salazar, vou passar os vistos e salvar os perseguidos. Tenho de salvar
estas pessoas, quantas eu puder. Se estou desobedecendo ordens, prefiro
estar com D’us e contra os homens, que com os homens contra D’us.
De Schmil
Goldberg
Meu nome é Schmil Goldberg. Mas, se quiserem, podem tratar-me por
Samuel. Sou judeu e americano. Em 1941 estou em Portugal para dar assistência
a refugiados de guerra, trabalho voluntário. Na Cozinha organizada
pela Comunidade Israelita de Lisboa tenho a oportunidade de conhecer o
Dr. Aristides de Sousa Mendes. Foi ele o diplomata, o Cônsul que,
na França, passou milhares e milhares de vistos a judeus fugidos
do nazismo. Uns já partiram para a América, outros ainda
estão em Portugal.
Também prestamos auxílio ao Dr. Sousa Mendes, pois ele e
a família estão muito carentes. Foi demitido, não
recebe qualquer pensão do Governo e, apesar de licenciado em Direito,
está proibido de exercer a advocacia e os seus filhos foram impedidos
de frequentar a Universidade. O seu irmão, que era embaixador,
também foi demitido. Vê-se que Salazar jamais perdoará
o gesto humanitário do Dr. Sousa Mendes.
Num povoado do Distrito de Viseu, o ex-Cônsul possui um palácio
onde chegou a albergar muitas famílias de refugiados, às
quais, na França, passara vistos para entrada em Portugal. Mas,
para atender às necessidades da sua numerosa família, foi
obrigado a hipotecar todo o recheio. O Dr. Sousa Mendes já não
dispõe de meios financeiros para sobreviver, está condenado
à miséria.
Temos o dever de auxiliá-lo e auxiliamos. Até lhe proporcionamos
condições para que alguns dos seus filhos emigrem para os
Estados Unidos e Canadá. Os que lá se estabelecerem mandarão
cartas de chamada para os outros, estou certo disso.
De Rabino Kruger
Na Polônia já estou acostumado ao anti-semitismo e não
me espanta que, no outro lado, na Alemanha, Hitler tome o poder. Pelas
ruas de Berlim judeus são perseguidos, espancados e mortos - é
o que nos escrevem, é o que nos dizem, é o que lemos, oi
gewalt. O meu nome é Chaim Kruger e sou rabino num klein shtatle,
[pequeno povoado]. A guerra é inevitável, prevejo, e em
breve os nazis estarão aqui. Não é fácil mas,
com economias feitas penosamente, com a minha mulher e as nossas seis
crianças, em 1938 conseguimos escapar de Varsóvia para Bruxelas.
Em 1939 os alemães invadem a Polônia e, logo a seguir, os
Países Baixos. Com a minha família, outra vez estamos em
fuga. Chegamos a Paris, mas logo fugimos para sudoeste porque os alemães
já estão invadindo a França. Milhares, dezenas de
milhares de refugiados, judeus e outras minorias, pejam os caminhos; são
antinazis franceses, belgas e holandeses, checos e alemães, também
algumas famílias ciganas. Uma, ou duas vezes por dia, caças
alemães mergulham em vôo razante sobre as estradas e metralham
os caminhantes. Há dezenas de mortos nas bermas, todos eles ensanguentados.
Ainda ouço os gritos, choros, lamentações, oi wais
mir. Quis D’us que eu, e os meus, tenhamos escapado sempre ilesos,
graças a D’us, dank main G-ot. Para fugir à hecatombe,
agora a nossa esperança é chegar à fronteira, atravessar
a Espanha, entrar em Portugal e dali embarcar para América, onde
nossos parentes nos esperam.
Chegamos a Bordéus em Maio de 1940 e a cidade está repleta
de fugitivos. Procuro o Consulado espanhol para obter o visto no passaporte
da minha família, mas um funcionário diz-me que sem antes
obter o visto português não conseguirei o espanhol. Saio
meio atordoado com a informação; não entendo o que
se passa. Cá fora um francês, também ele refugiado
e, ao que suponho, comunista, explica-me:
- Rabi, Franco foi ajudado pelos nazis durante a guerra civil espanhola.
É por isso que não quer no seu território fugitivos
do nazismo. Só os deixa passar se forem rumo a Portugal. Salazar,
o primeiro ministro português, está entalado. Portugal tem
uma aliança antiquíssima com a Inglaterra e um pacto recente
com a Espanha. Se hoje pender para os Aliados, será invadido pelos
alemães através de Espanha. Se pender para os alemães,
a Inglaterra desembarcará tropas em Portugal. É claro que
a simpatia do fascista Salazar vai para Hitler. Mas tem que fingir uma
estrita neutralidade para evitar a intervenção quer do Eixo,
quer dos Aliados. Por isso acredito que Salazar lava as mãos e
vai impedir a entrada de refugiados em Portugal. Aliás o Dr. Mendes
já me disse que tem enviado centenas de telegramas para Lisboa,
pedindo autorização para dar vistos e até agora não
obteve qualquer resposta.
- Quem é o Dr. Mendes?
- É o Cônsul de Portugal em Bordéus, Dr. Aristides
de Sousa Mendes.
Mendes, Mendes... O nome bate-me nos ouvidos, reconheço-o, é
marrano, é judeu. Tenho que falar com o Dr. Mendes.
Dirijo-me ao Consulado de Portugal. O jardim e as ruas vizinhas estão
repletas de refugiados, todos a aguardar vistos para seguirem viagem,
são milhares em desespero. Identifico-me, peço para falar
com o Dr. Mendes. Três horas depois sou recebido. É um cavalheiro
muito distinto, porém com feições angustiadas. Deve
estar a viver uma grande tragédia, bem posso imaginar qual seja
ela. Apresento-lhe a minha mulher e os meus filhos, conto-lhe do nosso
êxodo de Varsóvia até Bordéus. Entende o meu
sofrimento porque também ele tem muitos filhos, acho que doze.
Convida-nos a pousar em sua casa para darmos algum descanso às
crianças.
"Tenho
de salvar estas pessoas, quantas eu puder. Se estou desobedecendo
ordens, prefiro estar com D’us e contra os homens, que com
os homens contra D’us."
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Aceito, agradeço
e pergunto-lhe se também ele é judeu. Sorrindo, esclarece:
- Rabi, não se iluda com o meu apelido Mendes. Em Portugal a religião
do estado é quem nos guia, outra não podemos seguir ou mencionar.
Se, por acaso, tivemos um ancestral judeu, não é nada que
nos desmereça, mas disso não podemos demonstrar conhecimento.
Errei o alvo. Não sei como continuar a conversa. Engasgo-me. Depois
ouso perguntar-lhe quando podemos contar com os vistos para seguir viagem
para Portugal. Acabrunhado, diz-me que nada pode garantir, ainda não
tem a necessária autorização do seu Governo.
- Então, Dr. Mendes, vamos ficar aqui em Bordéus à
espera da matança?
Levanta-se. Amargurado, segura-me o braço.
- Rabi, tenha fé, nem tudo está perdido, confie na Divina
Providência.
Conduz-nos a sua casa, que fica no Quai Louis XVIII, por trás do
Consulado. Apresenta-nos à sua esposa, D. Angelina, e a três
dos seus filhos mais velhos. Indica os aposentos que nos destina. Deseja-nos
um bom descanso.
É um espanto, este Dr. Mendes. Na manhã do dia 17 de Junho
de 1940 avisa-me:
- Rabi, sossegue, vou passar vistos a toda gente.
Nos dias 17, 18 e 19, ele e dois dos seus filhos mais velhos trabalham
sem parar, nem sequer para almoçar ou jantar, a exaustão.
Passam milhares e milhares de vistos, os refugiados já organizados
em filas. Os passaportes são coletivos, familiares. No meu constam
oito nomes, o meu, o da minha mulher e os dos meus filhos. Assim acontecendo
com quase todos, calculo que o Dr. Mendes, nesses três dias, tenha
passado uns 30 mil vistos, dos quais 10 mil a judeus, pelo menos.
Não se dá por contente. Obedecendo às instruções
que recebera de Lisboa, o Cônsul de Portugal em Bayonne recusa-se
a passar vistos aos refugiados de guerra. Porém o Dr. Mendes é
seu superior. Desloca-se a Bayonne, que fica junto da fronteira franco-espanhola,
e é ele mesmo quem, mais uma vez, passa milhares de vistos. O mesmo
acontece com o Consulado de Portugal em Hendaye. Também aí
o Dr. Mendes passa milhares de vistos. No dia 24 de Junho o Dr. Mendes
mostra-me e traduz-me um telegrama que acabara de receber. É chamado
imediatamente a Lisboa e acusado por Salazar, o Primeiro Ministro português,
de "concessão abusiva de vistos em passaportes de estrangeiros".
Depois de 32 anos de serviço, o Dr. Mendes vai ser demitido sem
receber qualquer reforma ou indenização, e tem 12 filhos
para criar. Já teve 14, mas morreram 2, o segundo e o último,
se não me engano. Cuidar de 12 filhos é obra! Eu que o diga,
que só tenho 6 e bem sei como custa criá-los. Compadeço-me,
voz embargada, ihre mazle, [má sorte a sua]. Mas é ele quem
atalha, quem me anima:
- Rabi, se tantos judeus sofrem por causa de um demônio não-judeu,
também eu posso sofrer com o sofrimento de tantos judeus...
A grosse Mensche, [um grande Homem], este Dr. Mendes!
De um familar
Lisboa, 3 de Abril de 1954.
Estou no Hospital da Ordem Terceira, na Rua Serpa Pinto. Abro a mala,
retiro o lenço, enxugo os olhos. O meu tio, Dr. Aristides de Sousa
Mendes, acaba de falecer, trombose cerebral agravada por pneumonia. Sua
esposa, minha tia Angelina, morreu em 1948 com uma hemorragia cerebral
e ficou vários meses em coma, coitada.
Todos os seus filhos, meus primos, vivem hoje nos Estados Unidos e no
Canadá, conseguiram escapar a tempo deste purgatório...
Sou eu a única familiar presente. O meu tio era um homem bom, sempre
a pensar no bem dos outros.
É por isso que morre pobre e desonrado.
Homenagem póstuma
Em 1967, em Nova Iorque, o Yad Vashem, organização judaica
para a recordação dos mártires e heróis do
Holocausto em Israel, homenageia Aristides de Sousa Mendes com a sua mais
alta distinção: uma medalha comemorativa com a inscrição
do Talmud: "Quem salva uma vida humana é como se salvasse
um mundo inteiro". A Censura salazarista impede que a imprensa portuguesa
noticie o acontecimento.
*Encorajada com a homenagem de Israel, Joana Sousa Mendes, filha de Aristides,
em 1969 escreve ao Presidente Américo Tomás um pedido para
a reabilitação da memória do seu pai. Não
obtém qualquer resposta.
*Em Portugal, o caso "Sousa Mendes" só vem a público
em 1976 com um artigo de Antônio Colaço no Diário
Popular. Tema retomado em 1979 por Antônio Carvalho num outro artigo
em A Capital.
*Ainda em 1979 o Presidente Mário Soares concede, a título
póstumo, a Ordem da Liberdade a Aristides de Sousa Mendes.
*Em 1988, depois de muitas resistências do Antigamente infiltrado
no Abril, a Assembleia da República e o Governo português,
pressionados pelos filhos de Sousa Mendes e pelos americanos (entre estes
o congressista Tony Coelho), finalmente procedem à reabilitação
do Cônsul.
Após a morte de Aristides foram executadas as hipotecas do recheio
da Casa do Passal. Esta ficou ao abandono e os vizinhos passaram a usá-la
como galinheiro, pocilga e curral. As novas autoridades portuguesas, as
democráticas, estimularam uma fundação para recuperá-la
como hotel ou museu. Projeto congelado: a Casa do Passal continua a desfazer-se,
é hoje uma cariada cabana de Viriato. Com o seu desaparecimento,
ainda há quem tema que também desapareça a memória
de Aristides.
Como judeus salvos por um homem justo, é nossa obrigação
recordar sua vida e de todos que tiveram a mesma coragem. Agradecer a
seus filhos e todos seus familiares e recordar a bondade, dignidade e
princípio de um homem, que contra tudo e todos em sua época,
lesou a si mesmo em prol de salvar vidas condenadas pelo nazismo na quase
absoluta indiferença que dominava o mundo.
Hoje continuamos a precisar de "Aristídes", que lutam
por um mundo melhor e mais justo para todos. Parafraseando o Talmud no
monumento de Yad Vashem:
"Quem salva uma vida humana é como se salvasse um mundo inteiro". |