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O Segredo do Aficoman
Tributo ao
110º aniversário do Rebe (11 de Nissan/18 de abril 1902/2012)
Aficoman
Para as crianças, é o ponto alto do Seder. No decorrer dos
anos elas descobriram que como o Seder não pode ser concluído
até que este último pedaço de matsá seja ingerido,
elas podem “roubá-lo” a fim de forçar seus pais
exaustos, desesperados para dormir, a conceder-lhes quaisquer pedidos
que façam, por mais ridículos que pareçam, e vem
daí a ideia americana de “presentes do Aficoman”. Para
os adultos, parece um truque engenhoso para dar às crianças
um “recesso” autorizado, uma chance de correr por aí,
se divertir e ao mesmo tempo mantê-las envoldidas naquilo que está
ocorrendo à mesa.
O que é o Aficoman?
Uma das primeiras coisas que fazemos no Seder de Pêssach, após
o Kidush e carpás, é “Yachatz”, a quebra da
matsá. Tipicamente uma matsá se quebrará em dois
pedaços diferentes. O maior, o Aficoman, que literalmente significa
“deserto”, é guardado, para ser usado mais tarde, e
o pedaço menor é colocado à nossa frente. É
sobre este pedaço menor que agora recitamos a Hagada inteira. Muitas
das partes mais cruciais e integrais da experiência do Seder são
prefaciadas com a instrução: “Descubra a matsá
quebrada” ou “levante a matsá quebrada”. Esta
matsá, exatamente porque é pequena e quebrada, representa
nosso “Pão da aflição” e o “alimento
da pobreza”. É a matsá que por excelência, desempenha
um papel importante no decorrer do drama do seder. Se o seder fosse uma
peça teatral, este seria um dos atores principais. Finalmente,
após concluir a recitação da Hagada inteira, é
a primeira coisa a ser comida e com isso cumprimos nossa obrigação
bíblica de comer matsá.
Enquanto isso, o pedaço maior está escondido, reservado
e ausente; deve esperar pacientemente até seu retorno muito mais
tarde da noite. Somente após recitar a Hagada, após comer
matsá, maror, korech, o ovo e toda a refeição festiva,
nos lembramos dele e o retiramos de seu esconderijo, e se torna nossa
“sobremesa”. De preferência, é a última
coisa a ser comida nesta noite, assim dormimos com o sabor da matsá
perdurado em nossa boca e em nossa memória. Embora aparentemente
relegada a uma parte secundária na peça e tendo uma espécie
de papel secundário, o Aficoman é tão importante
e necessário à experiência do Seder quanto seu “irmão
mais jovem”.
Nossos Sábios nos dizem “ain maftirin ad acharei hapesach
afikoman”, que significa “O Seder não pode ser concluído
sem o aficoman”. Também substitui e representa aquele que
foi o destaque bíblico do Seder: o sacrifício pascal.
Um Conto de Duas Matsot
A história de Pêssach – escravidão
seguida de liberdade – é a eterna história do judeu.
“Pois não apenas eles ficaram contra nós para nos
destruir, mas em toda geração eles tentaram isso novamente.
E somente D'us nos salva das mãos deles”, declaramos na Hagada.
É fascinante observar o lugar de prestígio que o Seder desempenhou
e continua a desempenhar na vida de tantos judeus. Mais judeus conduzem
alguma forma de Seder de Pêssach do que frequentam os serviços
das Grandes Festas. O Seder toca uma corda profunda dentro de nós.
Muitas das nossas lembranças mais calorosas e prezadas da nossa
infância foram criadas à mesa do Seder de nossos pais e avós.
De alguma forma, o judeu sente que não pode ignorar a história
do Seder; é nossa história pessoal como indivíduos
e como um povo.
Agora podemos entender o simbolismo mais profundo por trás da quebra
e separação da matsá. Talvez a matsá represente
o povo judeu, a Congregação de Israel, que no decorrer da
história tem continuamente sido esmagada, achatada e humilhada
(como a matsá), e recebeu o “pão da pobreza e da aflição”.
Muitas e muitas vezes não pudemos esperar até a massa crescer,
tivemos de pegar o bastão de caminhante e partir sem nada além
da “matsá”, tanto de maneira literal, quanto figurativa.
A Divisão
Mas por um longo tempo agora, nossa matsá tem sido dividida; somos
um povo dividido. Uma parte do nosso povo, o pedaço menor de nossa
matsá, ainda se senta teimosamente à “mesa do Seder”,
ao redor da mesa de seus ancestrais, seguindo as tradições,
continuando os rituais, estudando as leis e contando a história.
Esta é a parte menor da matsá, a minoria do nosso povo,
que se recusa a abrir mão da mesa de Pêssach e encontrar
outras alternativas para a vida e para a felicidade. Sim às vezes
eles se sentam ali de olhos fechados, meio adormecidos, mas estão
presentes. Estes são os judeus que acordam toda manhã se
lembrando que fazemos parte de uma longa narrativa – começando
com Avraham, culminando com Mashiach – e devemos levar nossa vida
inspirado por essa narrativa. Eles usam um talit, colocam tefilin, vão
à sinagoga, rezam a D'us, e enviam os filhos para escolas judaicas
para receberem uma intensa educação de Torá. Estes
são os judeus que celebram o Shabat, comem casher, não fazem
uma refeição fora de uma sucá, nem usam uma roupa
feita de lã e linho.
A parte maior da matsá – a maioria do nosso povo –
se afastou da mesa do Seder, para campos estranhos. Encontraram alternativas
para a Torá. Na verdade, a maior parte da nossa nação
permanece ignorante e de muitas maneiras apática ao nosso legado
e nossa sabedoria, milhões de nossos irmãos se sentem alienados
de nosso povo e sua história.
E podemos identificar o momento na história em que a matsá
foi “partida”.
Há cerca de 250 anos, com a Revolução Francesa, e
o que ficou conhecido como “O Iluminismo” ou a “Idade
da Razão”, os muros do shtetl ruíram e muitos, na
verdade a maior parte dos judeus, disse adeus à sua ideologia antiga
e partiu para as ideologias liderantes da época. Voltaire substituiu
Moshê, Rousseau substituiu Rashi. Kant e Nietzsche suplantaram Abaye
e Rava. Na França e na Alemanha, o iluminismo levou à alienação
de centenas de milhares de judeus da tradição. Algumas décadas
depois, na Europa Oriental, milhões de judeus deram adeus à
Torá para uma profusão de novos “ismos” que
pareciam mais promissores que o antigo Judaísmo.
O nacionalismo sionista secular, por exemplo, captou a imaginação
de incontáveis judeus jovens, substituindo um D'us transcendente
por um país concreto. Na Rússia, judeus em massa apoiaram
o Marxismo, comunismo e socialismo. Na América, mais de um milhão
de judeus se assimilaram entre 1840 e 1930. Nas últimas décadas
nos Estados Unidos, perdemos mais um milhão dos nossos filhos.
E a quebra da matsá continua. Ainda somos um povo dividido. A parte
pequena da matsá com frequência olha com desdém para
o pedaço maior da matsá. “Eu estou à mesa do
seder; você está perdido e afastado”; enquanto a parte
maior da matsá frequentemente olha para a parte pequena com espanto
e piedade, perguntando-se como ele consegue manter-se tão isolado
e afastado da modernidade e do mundo novo.
Aqui iremos descobrir o segredo do Aficoman. Abra seu coração…
O Chamado do Rebe
Celebramos o aniversário de nascimento do Rebe, Rabi Menachem Mendel
Schneerson (1902-1994), ocorrido em 11 de Nissan em 1902, na Ucrânia,
poucos dias antes de Pêssach. Crescendo no auge da revolução
que varreu o mundo e capturou corações e almas de milhões
de judeus, o Rebe observou em primeira mão a “matsá”
sendo fragmentada e quebrada, e então quase completamente consumida
pelas chamas do Stalinismo e Nazismo.
A Providência fez a alma do Rebe agraciar nosso mundo poucos dias
antes do Seder, talvez porque a mensagem de sua vida captava a grande
história do Aficoman.
Qual a mensagem do Rebe para a nossa geração?
Que a parte maior da matsá pode estar ausente da nossa mesa do
Seder, mas é o nosso Aficoman; que nossa matsá pode estar
dividida, mas ainda somos uma matsá. Milhões de judeus podem
estar ausentes da mesa do Seder, mas eles jamais serão esquecidos.
E o mais importante, não podemos concluir nosso Seder se não
trouxermos de volta o pedaço maior da matsá que foi levado
da mesa do Seder.
O pedaço pequeno de matsá jamais será capaz de atingir
o auge de seu Seder se não atingirmos nosso irmão-matsá
e o trazermos de volta à mesa do Seder, reconhecendo a verdade
de que somos um povo e cada um de nós tem um lugar de dignidade
na mesa eterna da história judaica e sua consciência.
Isso, o Rebe acreditava, foi a missão do nosso tempo. O Seder está
quase completo, a história quase terminada. Mashiach está
no limiar da porta. A refeição foi consumida, e temos nossa
cota de maror, ervas amargas e sofrimento. E agora devemos nos lembrar
do Aficoman. Devemos procurar o Aficoman e com muito amor e sensibilidade
levá-lo de volta à mesa, e deixá-lo se reunir com
sua essência, com sua história, com sua própria alma.
Às vezes o Aficoman é difícil de localizar, o judeu
assimilado é difícil de identificar. Às vezes ele
se esforça para identificar a si mesmo. Mas no final da noite,
ao final do seu exílio, ele retornará, para ouvir a história
do Êxodo, participar da mitsvá e passá-lá aos
seus próprios filhos. Pois nenhum judeu será deixado para
trás.
Somente então poderemos concluir nossa jornada e verdadeiramente
estar “No próximo ano em Jerusalém”.
O autor agradece a Rabino Zalman Schmukler (Los Angeles)
por partilhar o núcleo da ideia acima, e a Rabino Avi Shlomo pela
sua ajuda em transcrever o ensaio.
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