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O local era o
Santo dos Santos no Templo; a pessoa era o sumo sacerdote; a época
era Yom Kipur. A epítome da santidade na tradição
judaica onde o tempo, espaço e alma mais sagrados se encontravam
se tocavam e se fundiam.O momento era impressionante; reluzia e irradiava,
então explodia e se incendiava. Sustentaria o mundo durante um
ano inteiro.
Onde e quando isso se passava? Como o momento era visto?
Uma Festa Sagrada
A descrição mishnaica dos momentos finais de Yom Kipur:
“… O sumo sacerdote santificava [lavava] suas mãos
e pés, se despia. imergia no banho ritual, e se vestia com a ‘veste
de ouro’. Ele santificava suas mãos e seus pés e entrava
no Santo dos Santos para queimar os incensos sagrados e para acender a
Menorá. Após santificar novamente as mãos e os pés,
ele se despia e recebia as próprias roupas. Era acompanhado até
em casa, onde era preparada uma festa para aqueles que ele amava, celebrando
sua partida pacífica do Templo.”1
Maimônides, ao fazer a mesma narrativa em seu código haláchico,
ajusta dois detalhes:
“[Após] ele vestir as próprias roupas, se dirigia
para casa e era acompanhado pela nação inteira até
chegar em casa, onde era preparada uma festa para celebrar sua partida
pacífica.”2
Segundo Maimônides, uns poucos acompanhantes de alguma forma evoluíram
para uma nação de acompanhantes.
Além disso, Maimônides abre a festa para todos, não
a limitando apenas “àqueles que ele amava.”
Esses beliscões são significativos:
Primeiro, eles transformam um ato do protocolo no Templo seguido por uns
poucos numa cerimônia religiosa realizada por todos. Em segundo
lugar, eles transformam a celebração pessoal do sumo sacerdote
numa festa nacional.
Além disso, como Maimônides não foi um historiador
mas um codificador, preferir notar essas mudanças deve de alguma
forma relacionar-se com a lei.
Foi então sugerido que, na opinião de Maimônides,
acompanhar o sumo sacerdote até seu bairro não era apenas
uma medida de precaução ou um ato da etiqueta do Templo;
era parte do serviço de Yom Kipur. Era um dever sagrado, e por
isso todo judeu fazia parte do comboio.
Mas por que estender um dia de prece e jejum até a noite? (Na verdade,
devido à enorme quantidade de pessoas que o rodeavam, o sumo sacerdote
muitas vezes chegava em casa após a meia-noite!3) O que poderia
ser tão importante sobre a caminhada do sacerdote de volta para
casa?
E por que, segundo Maimônides, a festa particular do sumo sacerdote
era aberta ao público?
Além do raciocínio haláchico,4 o simbolismo aqui
é absolutamente profundo.
Corrida para Casa
Várias doutrinas religiosas veem o casamento como uma concessão
à fraqueza humana. Serve também para descarregar determinadas
necessidades corporais entendidas como inerentemente mundanas. O celibato
é portanto considerado como um ideal.
Nada poderia estar mais longe da filosofia judaica, que afirma que a família
é o centro da religião. Longe de ser um pecado, a procriação
no Judaísmo é uma “grande mitsvá”, um
ato sagrado.5
Essa ideia revolucionária chega à total expressão
numa intrigante lei de Yom Kipur.
“Aharon [e todos os futuros sumo sacerdotes] deverão levar
um touro como sua oferenda de pecado, e expiar por si mesmo e por sua
família.”6
Nossos Sábios interpretam “sua família” como
“sua mulher”.7 Esse versículo ensina que para fazer
o serviço sagrado em Yom Kipur, o sumo sacerdote tinha de ser casado.
Um sacerdote cuja opinião sobre o mundo e estilo de vida excluíam
a família era impróprio para ser sumo sacerdote. Ele podia
ser sagrado, mas não o mais sagrado. Podia fazer atos sagrados,
mas não os mais sagrados. Pois a verdadeira santidade nao pode
ser completamente realizada no Santuário, mas em casa. Assim, o
serviço mais sagrado do ano não terminava nos portões
do Templo Sagrado, mas começavam nos portões da casa do
sumo sacerdote!
De fato, segundo alguns,8 antes de vestir suas roupas dos dias comuns
após concluir os serviços no Templo, o sumo sacerdote imergia
no micvê uma última vez, em preparação para
o ato culminante de Yom Kipur, e na verdade o clímax e finale dos
três mais sagrados – sua chegada ao lar.
Atravessar o batente da porta era como cruzar a placa do lar. Era então
que ele marcava um ponto.
O que se seguia então, segundo Maimônides, não era
uma celebração em família, mas uma celebração
da família.
Não admira que a festa estivesse aberta para todos!
O que há nisso para mim?
“Ao final de sua vida, você jamais se arrependerá de
ter passado mais um teste, nem vencido mais um veredicto, ou não
ter fechado mais um negócio. Você se arrependerá de
não ter passado tempo com seu marido, um amigo, um filho ou um
pai.” – Barbara Bush.
Vivemos numa época na qual o sucesso em grande parte é medido
pelas conquistas da pessoa no escritório, não em casa.
Uma casa linda, não uma estável, é que granjeia respeito.
Com a família, as pessoas antes buscavam realização
e satisfação, enquanto o local de trabalho estava associado
a responsabilidade e dever. Hoje, em números crescentes, o oposto
é verdadeiro.
Não admira, então, que relacionamentos fracassados e lares
problemáticos tenham se tornado a norma?
Uma mudança no modelo social precisa acontecer, o lar deve ser
reposicionado como o centro de nossas vidas.
Pessoas bem-sucedidas entoando louvores a si mesmas deveriam estar dizendo:
“Você deveria ver que boa mãe eu sou!” Ou “Minha
esposa e meus filhos são tão felizes.” Ou ainda: “Você
deveria ter visto o tempo que passamos justos a noite passada.”
O Fortune 500 deveria listar os casamentos mais notáveis!
Quando pisamos na entrada da nossa casa toda noite após um longo
dia de trabalho, como o sumo sacerdote do passado, deveríamos ver
a entrada não como o final do dia, mas como seu início.9
Notas:
1 – Mishná, Yoma 7:4
2 – Leis de Yom Kipur, final do cap. 4.
3 – Veja Sidur do Yaavetz no início das leis dos Dez Dias
de Arrependimento.
4 – Discutido em profundidade na palestra do Rebe na qual este ensaio
é baseado.
5 – Na verdade, segundo o Midrash Rabah, Vayicrá 20:8, um
dos motivos para a morte dos dois filhos de Aharon, Nadab e Abihu (veja
Vayicrá cap. 10), foi seu “crime” de permanecerem solteiros!
6 – Vayicrá 16:6.
7 – Veja Mishná no início do Tratado Yoma.
8 – Veja Talmud Babilônico e de Jerusalém, Mishná
Yoma 7:4 em parênteses.
9 – Baseado numa palestra do Rebe, registrada em Licutê Sichot
vol. 32, págs. 106-111. |
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