Beber até rolar... uma mitsvá de Purim?  
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Bem, não faço parte de nenhum clube de Alcoólicos Anônimos nem corro em defesa da "lei seca" a ser aplicada a todos. Inclusive admiro quem se abstém ou procura ajuda para controlar este impulso incontrolável de recorrer ao vício, vício este que ao invés de salvá-lo somente produzirá uma sensação temporária de alívio e doce (mais tarde, amarga) alegria.

A bebida e o ato de beber no judaísmo é apenas um canal para estabelecer e estreitar o elo de conexão com D'us. O kidush, a prece recitada sobre o vinho, é realizada para santificar o Shabat e dias festivos. Um "lechayim" (brinde à vida), é sempre levantado em ocasiões felizes e especiais ao compartilharmos elas com nossos familiares e amigos.

Entretanto, há uma ocasião especial, que é a festa de Purim, quando então a bebida passa a ser um elemento essencial para cumprir a mitsvá de alegrar-se, de confundir imagens e personalidades, de não conseguir mais distinguir entre o bem e o mal, o certo e o errado.

Mas será que é correto embriagar-se quando tentamos sempre agir o mais sobriamente possível ao nos conectarmos com o Criador? Será que beber até rolar, é uma mitsvá de Purim?

Muitos de vocês já podem ter assistido a cenas que colocam em dúvida se este preceito é uma lei ou apenas um costume. Como alguém tão distinto e comportado repentinamente pode transformar-se e mudar completamente? Afinal sabemos bem sobre a transformação de comportamento de quem bebe, e isto nos arremessa a uma visão, a um "resquício" da cultura pagã e pode influenciar negativa e erroneamente algumas interpretações ou opinião na mente de quem assiste a esta metamorfose. Além disto, você poderá afirmar que a bebida, além de danificar o tecido cerebral, rins e fígado, através da ingestão de grande quantidade de álcool é um conhecido carcinógeno, bem como fator causador de doença cardiovascular.

Será que não existe uma única exeção a esta regra e sob nenhuma circunstância é aceitável ficar-se bêbado até não saber mais a diferença entre "Mordechai e Haman", como é o caso de Purim?

No entanto, o ditado "uma pessoa é obrigada a beber em Purim até não saber mais a diferença entre 'amaldiçoado seja Haman' e 'abençoado seja Mordechai'" não é um costume, mas uma Halachá, lei estabelecida pela Torá e não um caso de interpretação.

O significado dessa declaração de Ravá, um dos maiores Sábios do Talmud, é claro e insofismável: Ravá está dizendo que o judeu é obrigado a ficar bêbado em Purim, na medida em que sua razão fique incapacitada, ao ponto de não conseguir mais distinguir entre o mal de Haman e o bem de Mordechai.

A pergunta não é o que Ravá quis dizer, mas se o Talmud contém ou não uma outra opinião, contrária à de Ravá. Muitos de nossos grandes legisladores seguem a ordem de Ravá entre os quais Maimônides que escreve: "Qual é a obrigação da Festa de Purim? De que a pessoa deveria comer carne... e beber vinho até ficar bêbado e cair no sono."

O Rif, Rosh, Tur e Shulchan Aruch, todos citam o dito de Ravá. O Ramá, por outro lado, comenta que "há outros que dizem que a pessoa não precisa ficar bêbada deste modo, mas que deve beber além do que é seu costume." O Ramá conclui: "Se a pessoa bebe mais ou menos, o principal é que sua intenção seja por amor aos Céus."

Resumindo: todas as autoridades haláchicas são unânimes em dizer que é mitsvá beber em Purim, embora haja diferenças de opinião sobre se a obrigação é ficar tão bêbado como Ravá recomenda ou em menor grau. De qualquer jeito, o conceito de ficar embriagado em Purim ao ponto da razão tornar-se totalmente obliterada é uma legítima posição haláchica, o que requer entendimento e validade, independente do fato de se é ou não aceito ou realizado na prática. Certamente uma opinião haláchica aceita por Rava (séc. III, Babilônia), Maimônides (séc. XII, Egito) e o Tur (Rabi Yaacov ben Asher, séc. XIV, Espanha), não é o resultado de confraternizar demais com camponeses embriagados.

Como, de fato, reconciliaremos essa Halachá com nosso entendimento do tipo de vida que a Torá nos manda levar? Sem considerar os problemas de saúde (não conheço nenhum médico que diria que beber muito apenas uma vez ao ano causa dano significativo ou permanente ao corpo humano), pode o judeu permitir-se relaxar o controle sobre seu comportamento por um único momento?

Durante 364 dias ao ano, nossa mente deve exercer completo controle sobre as emoções e comportamento, a fim de que os instintos animais em nós existentes sejam contidos para não nos tornarmos incontroláveis ou agressivos sem medir nossos atos. Além disso, precisamos da mente não apenas como um guardião e regulador, mas também como canal apropriado para expressar nosso mais alto potencial. É a mente que permite nos manter e aplicar nossa vida ao serviço Divino; reconhece a bondade e conveniência em certas coisas e o mal e perigo em outras, assim guiando, desenvolvendo e aprofundando nossos afetos e aversões, nossas alegrias e medos.

Mas há um dia ao ano no qual desfrutamos acesso imediato e direto a verdades ocultas. Esse dia é Purim. O judeu que se alegra nesta ocasião - se alegra na sua ligação inequívoca com D'us. Não precisa mais racionalizar sobre a diferença entre "amaldiçoado seja Haman" e "abençoado seja Mordechai". Ele simplesmente coloca a sua mente para dormir por algumas horas, permitindo que seu "eu" verdadeiro aflore.

Neste Purim você verá pessoas que beberão até atingir o esquecimento cognitivo. Verá expressões de alegria extrema e sem rédeas desinibidas pela centelha Divina que existe dentro de cada um e que neste momento, como expressão da essência mais pura da alma humana, tem prioridade.

Você não precisa "rolar", mas que tal um lechayim neste Purim?!

     
   
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